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Valéria Dallegrave

Jornalista, escritora e dramaturga

35 artigos

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O Dilema de Glenn, o jornalismo e seus limites

Como gosto de deixar perguntas mais do que dar respostas, tenho mais duas que me parecem indispensáveis: o quanto o ego pode atrapalhar o trabalho de um jornalista? E quem precisa de fake news quando pode criar notícias questionáveis que terão espaço no jornalismo e trarão, de um jeito ou de outro, repercussões que podem ser decisivas!?

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Glenn Grenwald, com seu dilema, voltou a ser um dos temas mais comentados pela mídia progressista no Brasil. Há quem prefira enquadrá-lo, de forma simplista, como herói ou bandido (salvador da pátria através da Vaza-Jato ou pró Trump), mas uma avaliação séria precisa ir bem além disso, analisando a fundo o contexto da situação, e seu histórico como jornalista. 

Ao declarar a saida do The Intercept, com acusações de ter sido censurado, Glenn provocou um torvelinho na mídia  internacional, que passa por discussões a respeito do papel da imprensa como influenciadora do público na política (em específico nas eleições para Presidente dos EUA). Não são muitos os jornalistas capazes disso, mas não é para menos, ele já recebeu um Pulitzer (em 2014) pelas matérias com as denúncias de Snowden sobre o sistema de vigilância digital dos Estados Unidos, publicadas no jornal britânico The Guardian. Também recebeu, no Brasil, o Prêmio Esso de Reportagem por artigos publicados no jornal O Globo sobre o mesmo tema.

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Antes mesmo de receber tais prêmios, Glenn já havia construido uma boa reputação como profissional da comunicação, embora sua formaçao seja na área do Direito. Por isso mesmo foi escolhido para fazer parte da equipe que trabalhou na formatação jornalística das denúncias de Snowden. O que, por sua vez, o qualificou para ser procurado, no Brasil, para receber e destrinchar as gravações do escândalo da Vaza-Jato, em que os interesses corruptos por trás da Lava-Jato tornaram-se evidentes...

Entre as dúvidas colocadas quanto à forma como administrou as gravações da Vaza-Jato, a mais recorrente é a de que estas não teriam sido aproveitadas ao máximo. Porém, haveria mesmo mais alguma informação importante no material, que não foi divulgada? Como saber!? Para justificar não ter aberto o material ao público, ele destaca o grande volume de gravações e, ainda, o fato de entre elas haver muito da vida privada das pessoas envolvidas (um dos limites da divulgação de “verdades” no jornalismo). O grande cuidado na exposição do material também seria essencial, segundo ele, para a preocupação de relacionar os áudios com os fatos da época de cada trecho, o que lhes daria maior credibilidade.  

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Outra crítica que surge neste caso é a de o The Intercept Brasil não ter feito parcerias com a mídia progressista, privilegiando a mídia convencional, com quem compartilhou o acesso ao material. Entre as parcerias feitas estão Uol/Band (Reinaldo Azevedo), Folha de São Paulo, El Pais, Veja (!) e Agência Pública (que pode ser considerada uma exceção, pelo perfil mais independente).  Com a Globo houve uma tentativa de parceria frustrada, e é interessante aprofundar o que se sabe sobre isso...

Segundo declarações dadas pelos representantes da Globo na reunião com Glenn, a resposta a ele  foi de que só poderiam aceitar a parceria se soubessem do que tratava a tal “bomba jornalística” (mesmo já tendo existido a parceria bem sucedida no caso Snowden). Em entrevista para a Agência Pública, Glenn declarou que “a Globo foi, para a Força-Tarefa da Lava Jato, aliada, amiga, parceira, sócia. Assim como a Força-Tarefa da Lava Jato foi o mesmo para a Globo.” A Globo soltou logo uma nota, procurando desmoralizar Glenn com alegações no minimo duvidosas. Glenn respondeu no twitter, destacando o desinteresse da empresa pelas denúncias da Vaza-Jato, que falaria por si ao demonstrar a preferência do conglomerado midiático por abafar, e não revelar, os desvios da Lava-Jato e de Moro. 

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Tanto na entrevista para a Agência Pública quanto em seu pronunciamento no twitter, Glenn fez questão de distinguir os profissionais, elogiando os jornalistas com quem fez parceria no caso Snowden, da empresa, a Globo, o que foi muito correto. Quem quiser saber mais sobre essa polêmica, mais detalhes em https://apublica.org/2019/06/glenn-greenwald-a-globo-e-a-forca-tarefa-da-lava-jato-sao-parceiras/

A estratégia de buscar parcerias para divulgar um material polêmico, que poderia provocar reações do governo brasileiro, foi a mesma usada no caso Snowden. Relembrando brevemente: O jornal The Guardian fez estrategicamente uma parceria com o New York Times e outros veículos, a fim de não ficar totalmente suscetível às pressões vindas do governo britânico, que considerou os vazamentos uma “ameaça à segurança nacional”. 

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Na Vaza-Jato, mesmo com as parcerias, Glenn e The Intercept tiveram sua credibilidade duramente atacada no Brasil, assim é importante nos perguntarmos se Glenn não fez, de fato, as escolhas mais corretas possíveis para divulgar o material. Se ele tivesse procurado a mídia progressista, a Vaza-Jato não teria ficado mais vulnerável para críticas quanto aos interesses que poderia estar ocultando? Se não tivesse procurado parceria alguma, o The Intercept - e ele mesmo, como indivíduo -, não teriam sido obrigados a ceder às pressões do governo brasileiro? Glenn foi ameaçado de prisão e deportação, e em momento algum acovardou-se. Relata: “Eu e meu marido estivemos juntos no caso do Snowden e nós lutamos contra os governos mais poderosos do mundo e a CIA, NSA, Reino Unido… Estávamos sendo ameaçados o tempo todo. Então, nós já conhecemos essas questões muito bem. Eu moro aqui no Brasil há 14 anos, então conheço o Brasil muito bem. Eu sei como funciona. Nós ficamos muitas semanas planejando como proteger a nós e a nossa fonte contra os riscos físicos, riscos legais, riscos políticos, riscos que vão tentar sujar a nossa reputação...”

A alegação de que poderia haver algo mais na Vaza-Jato, não revelado, pode ter vindo das grandes expectativas surgidas no anúncio do material. Teria o The Intercept exagerado na importância do mesmo? Talvez. Mas não é normal um veículo informativo exaltar os “furos” conseguidos, como uma estratégia de marketing? Havia, ainda, muito trabalho cansativo de “garimpar” nos áudios o que mereceria ser denunciado, como saber o real valor antecipadamente? 

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Mas também é importante perguntar: Nossas expectativas foram frustradas devido ao  material revelado ser realmente fraco, ou pela pouca repercussão do mesmo no sistema jurídico/politico/midiático brasileiro? Se Moro e a Vaza-Jato estavam - e estão - blindados, e o próprio sistema nega-se a reagir às denúncias de crimes, que não foram poucos, a culpa é de Glenn e do The Intercept? Será que, em vez de criticá-lo quanto aos procedimentos, não deveriamos estar - reivindicando, como cidadãos, com mais veemência, as devidas providências punitivas para o juiz-polícia Moro e  seus moretes -os procuradores?

Considerando todo o histórico, que dá ao jornalista méritos indiscutíveis, vamos agora analisar o caso atual, da matéria contra Biden, que motivou o pedido de desligamento do The Intercept. Os questionamentos surgidos podem passar até por questões filosóficas a respeito do valor absoluto da verdade. (aliás, algum valor pode existir acima de tudo? A liberdade, por exemplo, tem limites, como o de não causar mal a outros, interferindo na liberdade alheia... ) Ou ainda: a “verdade” pode, de fato ser apreendida? Considerando que cada sujeito que julga tê-la descoberto está imerso no ponto de vista de sua própria identidade, o que o jornalismo pode fazer para precaver-se de não abrir espaço para mentiras mascaradas de verdades? Checar fatos, buscar o máximo de fontes e confirmar a credibilidade delas e de suas informações. Quando uma fonte está comprometida com um dos lados que se enfrentam na denúncia, um alerta deve soar: Não será uma tentativa de manipulação? 

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É pertinente lembrar que, no jornalismo, a “verdade” obedece a estes critérios de cautela, que incluem também a pertinência de sua divulgação em determinado momento. “Requentar” notícias é algo notadamente oportunista, que serve, com certeza, a interesses diferentes dos jornalísticos (uma noticia é um acontecimento recente). Glenn diz, em seu texto, que: “A publicação pelo New York Post de duas semanas atrás de e-mails do laptop de Hunter Biden [...], provocou esforços extraordinários por uma união de meios de comunicação, gigantes do Vale do Silício e a comunidade de inteligência para suprimir essas histórias.” Duas semanas atrás? Não estaria o assunto já um tanto ultrapassado? E o que Glenn interpreta como “esforços extraordinários dos meios de comunicação” para suprimir as histórias não seria a percepção de que há pouco embasamento, muitas suposições, fontes comprometidas e ligações nebulosas?  

Um dos personagens que faz parte desta trama é o dono da loja de conserto de computador https://www.poder360.com.br/internacional/entoriconda-a-historia-sobre-a-possivel-ligacao-de-joe-biden-e-de-seu-filho-com-a-ucrania/ “que afirmou que é legalmente cego”, mas estava “quase certo” que o filho de Biden (Hunter) teria deixado o MacBook em sua loja para conserto, e após tentar diversas vezes entrar em contato sem sucesso com Hunter, entregou o HD a um partidário de Trump...  Estranho, não!?

Outro personagem estranho - cuja confiabilidade pode ser questionada - é um ex-parceiro de negócios de Hunter, Bubolinski, citado por Glenn duas vezes (até aí tudo bem, ele mesmo disse que ainda faria uma revisão do texto com o propósito de encurtá-lo, corrigir erros de digitação e etc). Não é importante que nos perguntemos como foi terminada essa parceria entre Bubolinski e Hunter? Normalmente o fim de uma sociedade é traumático. Glenn faz esforços evidentes para lhe atribuir confiança: “Um dos ex-parceiros de negócios de Hunter, Tony Bubolinski, apresentou-se oficialmente para confirmar a autenticidade de muitos dos e-mails e insistir que Hunter, juntamente com Jim, irmão de Joe Biden, planejavam incluir o ex-vice-presidente em pelo menos um negócio em China...” Ao que podemos questionar: por que uma testemunha teria interesse em INSISTIR em seu depoimento? 

O segundo momento em que o ex-sócio de Hunter é citado na matéria diz: “Um ex-parceiro de negócios de Hunter declarou, inequivocamente e oficialmente, que não apenas os e-mails são autênticos, mas também descrevem os eventos com precisão, incluindo a proposta de participação do ex-vice-presidente em pelo menos um negócio que Hunter e Jim Biden estavam buscando na China.” O texto usa adjetivos para dar, artificialmente, credibilidade à declaração de Bubolinski, como “inequivocadamente”, “oficialmente”, e o depoente (ou delator, como os que foram considerados decisivos pela Lava-Jato, com convicções que compensavam a falta de provas) dá aos e-mails não apenas atestado de autenticidade (SEU atestado de autenticidade) como também o mérito de “descrever os eventos “com precisão” (não bastaria apenas descrevê-los?). E o próprio Glenn diz que “Até o momento, nenhuma prova foi oferecida por Bubolinski de que Biden efetive sua participação em qualquer um dos negócios discutidos”.

Ah, interessante também é que há um “pesquisador do Partido Republicano” que “parece confirmar a autenticidade dos e-mails”. Desde quando “parecer confirmar” merece virar parte de notícia? E o partido republicano não é fonte totalmente interessada em macular a honra de Biden? 

Glenn também destaca: “Um fator importante é a verdade inegável de que jornalistas com veículos nacionais baseados em Nova York, Washington e cidades da Costa Oeste não apenas favorecem Joe Biden, mas estão desesperados para ver Donald Trump derrotado.” Não estamos, todos que se preocupam com a humanidade, senão desesperados, seriamente preocupados com a possível reeleição de Trump, que inclusive inspira e fortalece Bolsonaro? Glenn não está!? Talvez seja o caso de perguntarmos, também: por quê!? 

E o jornalista continua: “É preciso muita credulidade para acreditar que qualquer ser humano é capaz de separar uma preferência partidária tão intensa de seu julgamento jornalístico. Muitos mal se dão ao trabalho de fingir: as críticas a Joe Biden costumam ser atacadas primeiro não por membros da campanha de Biden, mas por repórteres políticos em veículos de notícias nacionais que escondem sua ânsia de ajudar Biden a vencer.” Talvez eu esteja sendo repetitiva, mas o que Glenn interpreta como defesa parcial de Biden por parte dos repórteres não seria apenas o tratamento legítimo a ser dado para acusações não comprovadas, forçadas, que têm o claro interesse de interferir nas eleições para Presidente dos EUA? Por outro lado, há a questão: E Glenn, não tem preferência partidária alguma? Não estariamos sendo ingênuos ao acreditar nisso? Se sua preferência é pelo progressismo, seria ele o único a conseguir separá-la de sua atuação jornalística?

Glenn, no final da matéria que denuncia ter sido “censurada” pelo The Intercept, afirma: “A questão toda é que a imprensa perde o rumo quando se preocupa mais com quem se beneficia com a informação do que se ela é verdadeira.” Acontece que, na formação jornalística, aprendemos que, muitas vezes, para determinar se a informação é ou não verdadeira é preciso perguntar-se quem se beneficia com ela, e o quanto este beneficiado pode estar tentando interferir ou distorcer a suposta “verdade” para manipular jornalistas, inclusive aquele que se julga acima de todos,  o mais ferrenho e autêntico defensor da verdade...

Como gosto de deixar perguntas mais do que dar respostas, tenho mais duas que me parecem indispensáveis: o quanto o ego pode atrapalhar o trabalho de um jornalista? E quem precisa de fake news quando pode criar notícias questionáveis que terão espaço no jornalismo e trarão, de um jeito ou de outro, repercussões que podem ser decisivas!?

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