O documento que escancara o projeto Trump: um mundo sem regras, sem Europa e sem democracia
A nova doutrina de Trump expõe um projeto autoritário que ataca a Europa, criminaliza migrantes, fortalece a extrema direita e ameaça a democracia no mundo
Há documentos que nascem para orientar governos, e há documentos que nascem para revelar, com nitidez rara, o projeto de poder que se esconde atrás de uma retórica de força. A nova Estratégia de Segurança Nacional divulgada no início de dezembro pelo governo Trump entra para a segunda categoria: um manifesto de ruptura, profundamente ideológico, que abandona décadas de construção multilateral e exibe, sem pudor, uma visão de mundo regressiva, autoritária e alinhada às forças mais perigosas que avançam hoje no Ocidente.
O texto não é apenas um diagnóstico sombrio sobre o planeta — é um programa político destinado a moldá-lo segundo um nacionalismo agressivo, antiliberal e contrário a qualquer forma de equilíbrio internacional. Se os Estados Unidos foram, desde 1945, um dos pilares do multilateralismo, Trump agora se converte em seu principal coveiro.
O ataque direto à Europa e o elogio à extrema direita
O trecho dedicado à Europa é um libelo contra tudo o que o continente construiu desde o pós-guerra: integração, multilateralismo, ampliação de direitos, tolerância religiosa, Estado de bem-estar social, pluralidade étnica e cultural. Trump descreve a região como civilização “em declínio”, ameaçada por imigração, diversidade e valores sociais modernos. Trata-se do mesmo léxico das novas direitas europeias — de Orban à AfD alemã, dos nacionalistas italianos à nova primeira-ministra japonesa que ecoa Thatcher no Pacífico.
O que mais assusta é o elogio explícito à ascensão de “partidos patrióticos” na Europa, como se o avanço da xenofobia, do autoritarismo e das pautas anti-direitos fosse um sinal de renovação democrática. É o oposto: é a legitimação, pelo presidente da maior potência militar do planeta, de forças que trabalham para dissolver consensos civilizatórios que levaram décadas para ser construídos.
Trump não apenas constata a emergência desses grupos: ele propõe que Washington “cultive resistência interna na Europa” — um eufemismo diplomático para dizer que os EUA devem apoiar, estimular e financiar políticos nacionalistas e antissistema capazes de desestabilizar a União Europeia e enfraquecer seus governos progressistas. O que está em jogo, portanto, não é apenas a política externa americana. É a arquitetura democrática do Ocidente.
O desprezo por migrantes — e o apagamento da própria história americana
No coração mais sombrio do documento, Trump afirma que a imigração representa “ameaça sistêmica” à segurança e à “continuidade civilizacional” dos Estados Unidos e da Europa — uma formulação que ecoa teorias conspiratórias da extrema direita e que jamais havia aparecido em um texto oficial da Casa Branca desde 1945. A estratégia descreve fluxos migratórios como “vetores de instabilidade” e associa diversidade cultural a “erosão da identidade nacional”, num desprezo frontal por aqueles que literalmente construíram os Estados Unidos. É impossível ler essas linhas sem lembrar que o país que hoje demoniza migrantes só existe porque foi erguido por eles: dos trabalhadores irlandeses e chineses que ligaram as costas leste e oeste com ferrovias, aos milhões de italianos, judeus, mexicanos, caribenhos e latino-americanos que sustentaram sua industrialização, sua agricultura, sua cultura urbana e seu dinamismo econômico.
Ao atacar migrantes como ameaça civilizacional, Trump apaga deliberadamente o fato histórico de que os EUA são, antes de tudo, uma nação de migrantes — e que negar essa origem é negar o próprio fundamento democrático e plural da sociedade americana.
O fim do multilateralismo e o retorno da Doutrina Monroe
A nova estratégia retoma, com verniz atualizado, a velha Doutrina Monroe: a primazia absoluta dos EUA sobre o hemisfério e o abandono — ou pior, a sabotagem — das instâncias multilaterais. Para Trump, a ONU é irrelevante, a União Europeia (UE) é decadente, a OTAN é um peso e tratados globais são obstáculos.
A cooperação climática desaparece. A lógica de comércio se desloca para um protecionismo ilimitado, sem contrapartidas ou previsibilidade. A retórica de “ordem internacional baseada em regras” — que já vinha fragilizada — é substituída por uma geopolítica do improviso, em que a força militar e o chantagismo comercial se tornam instrumentos rotineiros.
A economia política do caos: quando o medo viraliza
Trump aposta no medo como ferramenta de governo. Ao pintar a Europa como região sitiada por migrantes, decadência social e “apagamento civilizacional”, ele tenta normalizar a narrativa segundo a qual o capitalismo democrático europeu estaria condenado, e que somente políticas securitárias ultranacionalistas poderiam salvá-lo.
Mas isso é economicamente falso e politicamente perigoso.
A Europa tem desafios sérios — envelhecimento, desaceleração produtiva, déficit energético — mas nenhum deles se resolve com muros ou intolerância.
A extrema direita opera, em essência, por meio da fabricação de inimigos imaginários como mecanismo de desvio da atenção coletiva. Governos e movimentos ultranacionalistas — os mesmos que Trump celebra como “renovadores” da política europeia — procuram culpar migrantes por crises econômicas que, na realidade, derivam de escolhas fiscais equivocadas, de políticas financeiras desreguladas, de desindustrialização acelerada e da erosão de direitos sociais.
A diversidade cultural, longe de representar ameaça, é recodificada como fonte de insegurança, enquanto as causas estruturais da violência urbana — desigualdade, abandono estatal, fragmentação territorial — são estrategicamente silenciadas. Em vez de discutir concentração de renda, precarização do trabalho, estagnação salarial, captura do Estado por setores financeiros e ausência de políticas industriais modernizadoras, a extrema direita desloca o debate para a guerra cultural: banimento de livros, ataques a minorias, demonização de universidades e criminalização de valores progressistas.
Trata-se da criação de “culpados convenientes” — migrantes, mulheres, ambientalistas, professores, artistas, jornalistas — cuja função é absorver a frustração social e impedir que a população volte seu olhar para os verdadeiros responsáveis pelas crises contemporâneas. Essas agendas autoritárias não oferecem soluções reais; oferecem, isto sim, um espetáculo emocional permanente, uma coreografia política baseada no medo e no ressentimento, que produz engajamento sem produzir bem-estar.
Enquanto o cidadão é convidado a combater inimigos fictícios, os interesses que lucram com a desigualdade, com a financeirização excessiva, com a precariedade laboral e com a destruição da capacidade produtiva nacional permanecem intactos e até fortalecidos. É essa engenharia do desvio — essa economia política da distração — que sustenta a ascensão global da extrema direita e que o documento de Trump transforma, de forma inédita, em estratégia oficial de governo.
O impacto global
Três grandes movimentos emergem do documento:
- Uma ofensiva contra a integração europeia, enfraquecendo não apenas Bruxelas, mas a lógica de cooperação regional como alternativa ao hegemonismo.
- A legitimação da extrema direita global, que encontra em Trump não apenas inspiração, mas acolhimento estratégico.
- A desestabilização das normas internacionais, criando um ambiente em que a lei do mais forte substitui a negociação diplomática.
O que isso significa para a América Latina e o Brasil
Para o Brasil, o recado é claro: Trump deseja um continente disciplinado, alinhado e submisso. A nova doutrina mira diretamente projetos soberanos — sejam democráticos, progressistas ou desenvolvimentistas. Países que defendem autonomia tecnológica, política industrial verde ou cooperação Sul-Sul terão de enfrentar, outra vez, a máquina de pressão geopolítica dos EUA.
Mais grave: essa postura alimenta a extrema direita brasileira, que ecoa as mesmas narrativas de medo, declínio civilizacional e anticorrupção abstrata que sustentam a nova ordem trumpista. O documento é uma carta de legitimidade ao bolsonarismo, ao libertarianismo autoritário e à guerra cultural permanente.
Se a Europa é chamada de “civilização em declínio”, o que Trump diz — ainda que implicitamente — é que o Sul Global deve voltar ao lugar que os EUA desejam que ele ocupe.
Um alerta final
O documento de Trump é um aviso alarmante. Uma plataforma de poder que busca reorganizar o mundo com base em identitarismos, supremacismos e medo. Um mundo onde o multilateralismo vira ruína; onde a extrema direita deixa de ser anomalia e se torna método; onde governos progressistas europeus, latino-americanos ou asiáticos são tratados como obstáculos a serem contornados ou derrubados.
Cabe aos países que acreditam na democracia, no Estado de direito, na justiça social e na cooperação internacional erguer uma resposta coordenada. Não se trata apenas de preservar a ordem internacional: trata-se de impedir que a humanidade retorne às sombras que pensávamos ter deixado para trás.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

