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Bia Willcox

Bia Willcox é advogada, jornalista e pesquisadora nas áreas de Empreendedorismo, Inovação e Marketing. Atua como mentora de negócios e escreve sobre os impactos da hiperconectividade, da inteligência artificial e das tecnologias emergentes nas relações humanas e no futuro da sociedade.

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O engano do ego digital

O ego digital é uma lente que deforma: faz o pequeno parecer gigante e o gigante duvidar de si

O engano do ego digital (Foto: Gemini)

Grandes filósofos sempre se debruçaram sobre o controverso dilema do tempo.

Saber usá-lo, afinal, é, e sempre será, uma prova de sabedoria.

Eis que chegamos à era da atenção fracionada, da economia do tempo e da arte de ser e de parecer produtivo. 

Eis o tempo das infindáveis performances e das demandas em looping.

Vivemos obcecados em administrar minutos, como se fossem moedas raras, mas quase nunca nos perguntamos para quê ou para quem o fazemos.

Será o tempo igual para todos?

Estará ele, de fato, passando mais rápido  ou somos nós que o empobrecemos ao medi-lo em agendas e métricas de eficiência?

Na economia da atenção, gerir o tempo virou fetiche. 

Virou hype. 

E quanto mais se fala em gestão, menos se vive o próprio tempo.

Como escreveu Sêneca, em Da Brevidade da Vida:

“Não é que tenhamos pouco tempo, mas sim que desperdiçamos grande parte dele. A vida é suficientemente longa, e foi concedido tempo generoso para a realização das mais altas coisas — se o utilizarmos bem. Mas quando o dissipamos em prazeres fúteis e em ocupações inúteis, e nada de valor fazemos, então, forçados pela última necessidade, percebemos que a vida passou sem que tenhamos realmente vivido.”

Chego aqui no cerne da minha relação com o tempo: o que fazemos de valor com nosso tempo? É o uso dele que mede o nosso valor? É o valor do tempo que baliza o nosso próprio valor?

Não. Ou não deveria.

Vivemos cercados por pessoas de todos os tipos, tamanhos e estilos nas redes.

Cada dia um desfile de egos, certezas e discursos inspiracionais atravessa nossas telas. A cada gesto, a cada “visto e não respondido”, a cada e-mail perdido, a cada emoji “joinha” que nos é enviado no lugar do vácuo profundo,  uma estrela se apaga no céu rsrs.

Muitas vezes, no grande tabuleiro das redes sociais, pobres mortais tentam se comunicar com as auto proclamadas Very Important Personas, ou os deuses do feed, ou ainda os  oráculos do algoritmo,  por mensagens diretas, privadas, quase confessionais.

E o que recebem, na maioria das vezes, é o mais eloquente dos silêncios.

Surge então a dúvida: será que quem não responde é importante porque não responde a ninguém, ou não responde a ninguém porque é importante demais?

O velho paradoxo Tostines - jovens, busquem refs! - ressurge aqui em sua versão digital: é a fama que infla o ego ou o ego que fabrica a (pseudo) fama?

A verdade, no entanto, é mais banal.

Quem se dopa de ego sintético nas redes vive a utopia tóxica de ser especial demais para compartilhar tempo com pessoas comuns.

Ninguém lhes ensinou, talvez, que somos todos grãos de areia  frágeis, transitórios e indistintos, mesmo sob a luz das telas.

E assim, embalados por coaches, mentores e best-sellers que pregam a inacessibilidade como virtude, muitos confundem empáfia ou soberba com inteligência e frieza com grandeza.

A antipatia, o desdém e o distanciamento tornam-se acessórios do figurino daqueles que aspiram à liderança — mas apenas exibem vaidade.

Muito provavelmente esteja aí a fronteira que separa o líder verdadeiro do personagem predominantemente digital: a capacidade de permanecer humano quando o mundo inteiro o convida a ser ídolo.

A inacessibilidade me parece uma estratégia estética, uma forma de parecer importante  quando o que realmente importa é o que permanece: o gesto, a presença, o cuidado e, sobretudo, a empatia.

E voltando aos personagens modernos que brincam de guru na internet, tais figuras (e graças a Deus existem admiráveis exceções)  querem ser grandes mas não grandiosos, querem liderar sem sequer entender o que é ter liderança. Querem likes mas não sabem costurar afetos para uma liderança orgânica e verdadeira.

Desse delírio nasce o ego digital, esse personagem pós-moderno que confunde inacessibilidade com valor e “boa gestão do tempo” com uma suposta superioridade moral.

A figura do influenciador-mentor-coach adquiriu contornos quase míticos — uma espécie de xamã corporativo que se alimenta de curtidas e monetiza o próprio reflexo. Como observou Byung-Chul Han, na Sociedade do Cansaço, vivemos sob o império da performance, onde o sujeito acredita que “pode tudo”, mas termina exaurido por uma liberdade auto exploratória.

O novo messias do mercado não promete salvação espiritual, mas “produtividade plena”. Constrói uma imagem, grava vídeos em estúdio, oferece conteúdos “exclusivos” em série e, entre um storytelling e outro, convence-se de que é uma referência iluminada para os demais — quando, na verdade, é apenas mais um espelho daquilo que Guy Debord chamou de sociedade do espetáculo: um mundo onde a aparência ocupa o lugar da verdade.

A mágica do ego digital: ele embriaga.

Pouco a pouco, a lógica das redes  feita de métricas, visibilidade e aplausos instantâneos, substitui a ética das relações reais.

A vaidade encontra uma infraestrutura perfeita nos algoritmos: quanto mais se exibe, mais é visto e quanto mais é visto, mais se convence de que é admirado.

O problema é que o tempo, ao contrário do que esses novos gurus imaginam, não se valoriza por escassez.

Tempo é valor quando é compartilhado.

E a grandeza, ao contrário do que o marketing promete, não está em fazer-se inacessível, mas, sim, em permanecer humano quando seria mais fácil ser prepotente.

A verdadeira liderança não se mede em views, mas em ecos.

O impacto de quem inspira não pelo palco, mas pelo gesto simples, aquele que transforma o outro em sujeito, e não em seguidor.

O ego digital é uma lente que deforma: faz o pequeno parecer gigante e o gigante duvidar de si.

Mas, como toda a ilusão, é passageiro.

Na longa cronologia da história, quem permanece?

E talvez, quando as notificações silenciarem, restará apenas uma pergunta: quem você foi quando ninguém estava vendo?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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