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Cristiano Addario de Abreu

Doutor do Programa de Pós-graduação de História Econômica/USP (PPGHE/USP).

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O espectro do confronto de Rui Barbosa e Hermes da Fonseca ronda a República

O Brasil está novamente numa encruzilhada histórica

Esplanada dos Ministérios, com o Congresso Nacional ao fundo, em Brasília (Foto: REUTERS/Ricardo Moraes)

Eis que neste tão alongado, e adiado, julgamento histórico de um ex-presidente da República do Brasil, e seus comparsas, por planejarem e conspirarem um golpe de Estado (um coup d’état) no seio das Instituições nacionais, já começou com a defesa de Bolsonaro violentando a História, e toda a memória republicana, ao testemunhar o advogado de defesa do réu Jair Bolsonaro, o sr Paulo Cunha Bueno, fazer uma invocação do affaire Dreyfus na finalização da sustentação da defesa de seu cliente, comparando os dois julgamentos. O criativo advogado admoestou o STF do risco deste incorrer num erro judicial absurdo ao condenar seu cliente, comparando o réu com o capitão francês, Alfred Dreyfus, condenado por alta traição à França, em um julgamento eivado de erros judiciais, ausência de provas contundentes, e manipulação das “provas” usadas neste histórico caso Dreyfus.

Não se pode negar coragem da defesa em fazer isso... Claro que é papel, e obrigação, da defesa, lutar com argumentos retóricos em favor dos acusados, e o uso de figuras imagéticas da memória coletiva é um recurso legítimo. O lastimável é que como a memória coletiva não é devidamente regada e cuidada, tal aberração retórica torna-se possível: a condenação do capitão Alfred Dreyfus é um símbolo internacional de uma injustiça cometida em defesa do status quo do ancien régime na França. Pois a condenação do capitão Alfred Dreyfus, judeu oriundo da região da Alsácia, região esta que foi tomada pelos alemães da França na derrota francesa na guerra FrancoPrussiana(1870-1871), foi uma injustiça cometida para acobertar um militar de origem aristocrática, que espionou para os alemães na guerra: o comandante Ferdinand Walsin Esterhazy, que foi o verdadeiro traidor da França ao passar informações aos alemães.

Tal fraude da justiça militar francesa deu origem ao famoso L'affaire Dreyfus, o Caso Dreyfus, que foi um escândalo jurídico que tomou dimensões internacionais Tal condenação (ocorrida em 1894) ganhou o debate público mundial, com a publicação, quatro anos depois, pelo consagrado escritor Émile Zola do manifesto J’Accuse...! (eu acuso) em 1898, denunciando a fraude jurídica.

Émile Zola denunciou na imprensa o caso, expondo as falhas do contencioso Dreyfus, explicando o caso em chave jurídica, investigativa e militar e convocando a opinião pública a um juízo racional. Sob o trauma da derrota na guerra, prosperaram revanchismo e caça às bruxas. Nesse ambiente, a investigação conduzida pelo militar du Paty de Clam — viciada desde a origem — fez do judeu alsaciano Alfred Dreyfus um bode expiatório, enquanto preservava o status quo do alto oficialato, a absoluta maioria dele de origem aristocrática.

Tal escândalo representou uma sobrevivência indigna do Antigo Regime na França, mais de cem anos após a Revolução: até a Revolução Francesa os nobres tinham o privilégio de acesso às armas de fogo, sendo toda a estrutura da alta oficialidade militar exclusividade da nobreza. E a nobreza só poderia ser julgada pela nobreza: o julgamento, condenação, e execução de Luís XVI na guilhotina em 21 de janeiro de 1793, na Place de la Révolution (atual Place de la Concorde), em Paris, foi um marco histórico da Revolução. Ali o povo viu que o sangue nobre não era azul...

Pois eis que o affaire Dreyfus simbolizou a resistência dos privilégios legais da nobreza, ainda encastelada na estrutura militar, naquela III República da França. Logo, o exato oposto do que a devida condenação do ex-capitão, e infelizmente ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro significará na História da República brasileira.

República com castas privilegiadas: a Lei é para os pobres

Bolsonaro, e seus comparsas golpistas, cometeram crimes em série, e demonstram exigir que a Justiça os absolva de antemão: a obsessiva invocação de anistia, por todas os lados do bolsonarismo, é o atestado de que eles se situam acima da Lei, em um ancien régime próprio. A Lei é para os outros, na cabeça deles...

Assim, a alegada inocência de Bolsonaro feita pela defesa, encontra um ruído que a atrapalha na gritaria por ANISTIA. A palavra de ordem do eclipse do regime militar, volta como um espectro orwelliano hoje, mas indica evidências de culpa: quem é inocente quer provar sua inocência, e não apelar para a exceção judicial da anistia, antes mesmo do julgamento ocorrer. Pedir anistia em um processo marcado por visível ampla defesa e cuidado judicial: exatamente o oposto do ocorrido no processo contra Dreyfus, é muito curioso. A obsessiva campanha por anistia dos golpistas é forte indício de culpa.

Uma defesa que invoca o Affaire Dreyfus para defender Bolsonaro tinha que ser mais cobrada pela parte republicana desta machucada sociedade brasileira. Onde está a falta de provas sobre o plano de golpe? Onde estão as falhas processuais? O que está tão viciado assim na investigação, e no processo de Bolsonaro para se ousar fazer tal comparação tão esdrúxula e indigna? Mas para não dizerem que nada foi encontrado de análogo no processo de Bolsonaro com o de Dreyfus, fica aqui uma lembrança feita pelo advogado Paulo Cunha Bueno: o fato de que ambos tinham a patente de capitão...

Mais de cem anos depois de 1889: República, ainda que tardia...

Orwellianamente, como tudo no mundo invertido do bolsonarismo, a invocação do caso Dreyfus pela defesa de Bolsonaro indica que eles buscam o privilégio do Antigo Regime para eles: que a Lei não se cumpra! A Lei é para os pobres!!! Bolsonaro, e seus associados, como adultos infantilizados, perversos que são, entendem que podem cometer crimes, sem precisar responder por eles: como a nobreza francesa do ancien régime, eles teriam privilégios legais, não respondendo sob a lei geral. Bolsonaro, e os generais golpistas, levaram o excepcionalismo introjetado da casta militar a um paroxismo distópico, ao buscarem neste julgamento escaparem da Lei. Mas hoje o republicanismo brasileiro roga que tais abusos, levados aos píncaros pelo bolsonarismo, gere a correção histórica dessas distopias neste julgamento histórico.

As elites brasileiras, geracionalmente articuladas dentro do Estado, estão hoje rachadas entre as elites militares e as elites jurídicas: os absurdos golpistas do bolsonarismo gerou uma crise crônica, que hoje caminha para uma solução justicialista (lembrando como foi na Argentina ao fim do regime militar lá).

E hoje nesse conflito, entre as elites militares e as jurídicas, ecoam muitos espectros da história do Brasil, que se levantam em memória de Policarpo Quaresma, João Cândido e de tantos outros personagens, literários e reais, que lutaram por uma República que cisma em escapar para o Futuro.

O caso de João Cândido, o Almirante Negro, merece ser lembrado: líder da revolta da chibata, de novembro de 1910, que ocorreu pela proibição do uso da chibata como castigo físico aos marinheiros, que se amotinaram em navios de guerra na baía de Guanabara, e conseguiram do governo, recém eleito naquele 1910, do Marechal/presidente Hermes da Fonseca, o fim do castigo físico sobre os marinheiros da baixa (em geral negros) da Marinha. E tais amotinados acordaram largar as armas ao conseguir o fim dos crudelíssimos castigos físicos e, também, uma ANISTIA aos amotinados! Hermes da Fonseca acordou dar anistia, deu sua palavra, mas depois o governo promulgou um decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem risco, e assim expulsou da Marinha os revoltosos. João Cândido foi expulso, mas antes passou mais de 2 anos preso na Ilha das Cobras

Assim o presidente militar Hermes da Fonseca ensinou que anistia não é para revoltosos da baixa... E João Cândido passou sua vida sempre perto da miséria, trabalhando como estivador, e outros serviços, tendo sido socorrido economicamente apenas quando o governador gaúcho, Leonel Brizola, lhe concedeu uma aposentadoria de 2 salários-mínimos, quando Cândido já era idoso.

A Revolta da Chibata ocorreu em 1910, ano da histórica campanha presidencial civilista de Rui Barbosa, contra o candidato situacionista, Hermes da Fonseca, que ganhou um pleito eivado de denúncias de fraudes eleitorais. Numa campanha que pode ser considerada a primeira a mobilizar as massas, a ter uma campanha de mídia na imprensa, nas charges, e nos cantos populares... Não foi coincidência a Revolta da Chibata ocorrer em novembro daquele fatídico ano eleitoral: a sociedade brasileira viveu ali um despertar republicano, comparável ao o que ocorreu na França do Affaire Dreyfus: as massas entraram em assuntos técnicos e políticos, a opinião pública despertava em uma aurora republicana nessas duas esquinas históricas.

Hoje, no julgamento dos golpistas do Bolsonaro, o Brasil está novamente numa encruzilhada histórica. Que o espectro que ronda a República desde a disputa presidencial de 1910, entre Hermes da Fonseca (sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca) e Rui Barbosa, seja exorcizado neste julgamento, com uma desforra civilista barbosiana da República.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.