O Estado, a sociedade civil e a Maré: eu sei, mas mesmo assim...
A mídia hegemônica e a polícia apresentam a vítima como culpada, criminalizando pobreza e justificando assassinato
Este texto expressa minha indignação com a política de segurança, ou melhor, com a necropolítica em vigor nas periferias do Rio de Janeiro.
A Maré sofre, com frequência assustadora, operações policiais arbitrárias e violentas, imobilizando o bairro e aterrorizando os moradores que se veem impedidos de realizar suas atividades mais cotidianas. Não conseguem sair para trabalhar. São escolas, clínicas de saúde, unidades do SUS, comércio e serviços básicos fechados. Enfim, esta situação não é mais novidade para ninguém e se repete ao longo dos anos sem que nenhuma instituição consiga barrar esta atuação da polícia, pois nem mesmo a decisão do STF de suspender as operações durante a pandemia foi cumprida...
Sou psicanalista e integro o coletivo de psicanalistas Psi Maré que surgiu a partir do PUD (Psicanalistas Unidos pela Democracia). Desde 2020, com o início da pandemia, realizamos atendimentos online de pessoas da Maré. Nossa atuação na Maré se ampliou e estamos iniciando atendimentos presenciais no território, através do projeto RAAVE – Rede de Atendimento a Afetados pela Violência de Estado, financiado pelo Ministério da Justiça.
Gostaria de dar um depoimento do que se passa neste momento na Maré e os impactos subjetivos desta normalização da violência que é divulgada como política de segurança pública pelo governo de Claudio Castro.
Nas últimas semanas, a Maré está refém da violência instalada pela polícia desde que iniciou uma operação de demolição de imóveis que, por estarem em situação irregular, justificariam a ação da polícia. Ainda que os imóveis não estejam regularizados, nada justifica a forma como está sendo conduzida a questão. Moradores estão sendo colocados arbitrariamente na rua, seus bens estão sendo destruídos e, principalmente, instalou-se um clima de terror entre polícia e traficantes que atinge todos os moradores.
Esta conduta é normalizada nas incursões policiais nas favelas, policiais invadem as casas, enfiam o pé na porta, esvaziam as geladeiras, humilham moradores, ocupam casas e instauram praças de guerra com tiroteios que atingem inocentes com uma desfaçatez inaceitável instalando, de fato, uma guerra civil nas periferias da cidade, com traumas subjetivos permanentes e muito difíceis de reverter.
Desde meus primeiros atendimentos aos moradores da Maré, foi chocante tomar contato com esta normalização da arbitrariedade e da violência dentro de um país supostamente democrático. Uma coisa é saber do funcionamento das democracias contemporâneas através de autores como Judith Butler3, Achile Mbembe4, Joel Birman5, Éric Alliez e Maurizio Lazzarato6, entre muitos outros, outra é ser tomada por relatos pungentes de pessoas que precisam lutar diariamente para existir como cidadãos, para terem direito à vida e ao luto.
São pessoas constantemente expostas a balas “perdidas” que encontram quase sempre o endereço certo, um corpo jovem e negro, como explica Lélia Gonzales7 . Parafraseando Caetano Veloso, o Haiti é aqui e ninguém é cidadão: “Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos). Como é que pretos, pobres e mulatos. E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados.”
É deste lugar de afetação pela escuta que desejo falar. Desde o início dos atendimentos, nos defrontamos com uma população que tem uma proximidade cotidiana com a morte, algo que nos espanta e atormenta. Impactada pelo que escutava, fui anotando algumas frases de pessoas que perderam um familiar próximo, em operações policiais, seja por um policial, seja por um traficante, seja por estar no meio de uma guerra civil não reconhecida pela sociedade como tal.
Estas frases exprimem os efeitos subjetivos desta normalização da violência:
“Eu passei uma vida de luto, porque aqui a gente vê muita morte, mesmo assim, eu conseguia sonhar. Agora não consigo mais, tenho medo de sonhar e perder.”
“Perdi a vontade de sonhar, quando encontro alguma coisa que eu quero, algo de ruim acontece.”
“Parece que eu não faço outra coisa na vida, só juntar cacos. Todo o tempo morre alguém, não dá pra respirar, é muito difícil sair dessa caverna escura.”
Nestas últimas semanas foram mortos dois policiais do Bope numa operação. Sempre que morrem policiais impõe-se um clima de vingança onde vale tudo. Novamente serviços de saúde fechados, escolas sem aulas, terror a ser enfrentado por quem precisa sair cedo pra trabalhar. Clima de guerra aberta. Os traficantes andam nas ruas ostentando as armas, são muito jovens e “brincam” manuseando as armas perigosamente, atiram em plena luz do dia, no meio das ruas, em alvos aleatórios para marcar território e poder.
Tenho um paciente que perdeu um filho saindo de casa para ir trabalhar, ele viu o filho cair morto em sua frente. Ontem o atendi e estava em frangalhos, havia sido parado pela polícia, sendo intimado violentamente a exibir seus documentos. Ele me diz: “voltei àquela cena em que encontrei meu filho morto e ela não sai da minha cabeça.”
A mídia hegemônica e a versão oficial da polícia, na maioria das vezes, rapidamente apresentam a vítima como culpada, criminalizando a pobreza e justificando o assassinato; transformam o jovem, vítima da violência de Estado, em alguém indesejável para a sociedade, uma vida descartável que não merece ser pranteada.
Atendo este paciente desde 2020, num processo de luto muito doloroso, mas que vinha avançando e permitindo que, de algum modo, retomasse sua vida. O luto destas vidas estigmatizadas é extremamente difícil porque o sujeito precisa lidar não apenas com a perda violenta e injusta de um ente querido, mas também lutar diariamente para resgatar a memória de seu filho como um cidadão digno e trabalhador.
Quando meu paciente diz que diante da abordagem policial voltou à cena traumática, constata-se que foi submetido a uma nova violência de Estado, uma atualização do trauma, e boa parte do trabalho de luto que vinha sendo feito e das possibilidades de retomada da vida foram destruídos. Então, é preciso dizer que o Estado mata e continua matando ao perpetrar violências continuadas impedindo a recuperação de um sentido para que a vida prossiga e mantendo o clima de terror nas favelas.
Eu trabalho com a elaboração da dor e com a construção de caminhos e a polícia se encarrega de destruí-los. No final, ainda escuto suas palavras resignadas: “as coisas só vão melhorar depois da eleição porque os políticos param de precisar mostrar serviço.” E, eu, na minha solidão segura, engulo a impotência e um sentimento de vergonha por esta impotência.
1 Frase de Octave Mannoni que mostra em um texto clássico como opera psiquicamente a recusa da realidade. in Katz C. Psicose, uma leitura psicanalítica, Ed. Escuta, 1991.
2 Psicanalista, membro do EBEP-Rio –Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, membro do coletivo Psi Maré (PUD – Psicanalistas Unidos pela Democracia), participante da RAAVE.
3 Vida precária – Os poderes do luto e da violência, Ed. Autêntica, 2019.
4 Necropolítica, N-1 edições, 2018.
5 Guerra e política em psicanálise, Ed. Civilização Brasileira, 2024.
6 Guerras e capital, Ed.Ubu, 2020
7 Racismo e sexismo na cultura brasileira https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7395422/mod_resource/content/1/GONZALES%2C%20L%C3%A9lia% 20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

