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Hilan Bensusan

Hilan Bensusan, filósofo e judeu. Ensina na Universidade de Brasília (UnB)

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O estado colonial das coisas e o Estado não-judeu

Vejo as marchas pela supremacia judaica em Jerusalém. E os bombardeios de Gaza, cada vez menos cirúrgicos, cada vez mais parecidos a massacres. Nada pode justificar o bombardeio de uma cidade permanentemente sitiada. Nada pode justificar a limpeza étnica em Sheik Jarrah. Nada pode justificar a solução final nazista

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É como judeu que cresceu sentindo com todas as forças a história desse povo e mesmo as lutas em torno do sionismo é que eu olho para o que ocorre agora e penso que quem fala pelos judeus e quem fala pelo sionismo não entendeu nada. Ou seja, eles não lêem essa história dos judeus; não leem uma história de sobrevivência na adversidade que faz germinar forças insuspeitas e capacidades de resistência insuspeitas – como eu li – mas a não-história de um povo esperando sua vez para agir como via seus algozes fazerem. Os judeus que bombardeiam Gaza e defendem sua supremacia nos territórios ocupados e nas cidades onde palestinos residem fazem de sua história uma variante das histórias das nações européias que colonizaram o mundo porque tinham armas e certezas para tanto.

O discurso parece com aquele da superioridade da pureza e da pureza da superioridade que faziam os alemães no terceiro reich acerca de judeus, eslavos e ciganos e de quase todas as nações colonizadoras da europa ocidental por muitos séculos acerca dos africanos, dos asiáticos, dos ameríndios, dos árabes (e dos judeus). A experiência judaica na diáspora foi trocada por uma escopeta e por milhas de arame farpado. Foi trocada por uma posição de subalternidade privilegiada, Houria Bouteldja expressa isso de uma maneira direta falando a um judeu de hoje (que é um sionista de hoje): “Posso me permitir pensar que em seu coração, é a parte que ama o mundo branco que o fez assinar este acordo com o diabo? É assim que, no espaço de cinquenta anos, vocês deixaram de ser párias, para serem, por um lado, dhimmis da República para satisfazer as necessidades internas do estado-nação, e do outro, atiradores senegaleses - homens prontos para satisfazer as necessidades do imperialismo ocidental” (em White, Jews and Us, p. 55, tradução minha). Dhimmis são aqueles que em troca de favores financeiros recebiam hospitalidade e proteção a terra islâmica. A europa encontrou uma função para seus judeus: enviá-los à empreitada (pós-)colonial de transformar todo o mundo em estados nacionais mais ou menos étnicos e que, em sua maioria, são subalternos como bantustões de maior ou menor intensidade. De judeu, no estado judeu, pouco mais que monumentos antigos e sinagogas sobraram. Como diz o ativista judeu pelos direitos humanos na palestina Ronnie Barkan, o estado de Israel é judeu não é judeu por religião – mas por supremacia. Assim como, ele completa, a África do Sul antes de Mandela era branca por supremacia.

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Ou seja, olho, como minha leitura da história dos judeus e vejo algo assim: os palestinos são os novos judeus. Talvez por isso me sinto mais próximo deles – mas não entendo seus cânticos, não entendo seus ritos. Fomos, os judeus do mundo todo, forçados a se sentirem desterrados de sua própria história. A nos tornarmos agentes coloniais – e os agentes coloniais, franceses no Niger, belgas no Congo ou espanhóis no Peru, não tem uma história, tem apenas a obrigação de defender sua história (seja ela qual for). Já foi dito muitas vezes, inclusive por israelenses como Amos Oz, que aquilo que separa a vítima de seu algoz é a ocasião. De fato, o sionismo foi um desafio perigoso: dêem-me uma chance de ter uma terra, poderiam ter dito os judeus aos europeus guardiões das fronteiras na primeira metade do século XX, e mostraremos como podemos fazer diferente. Era talvez um desafio cuja vitória era impossível na sua própria formulação. De fato, a vitória não veio. Ainda que no canto dos contrafáctuais que são cruciais para que a história não seja contada apenas pelos vencedores podemos pensar que ela poderia ter vindo, ela não veio. E como ela não veio, sobrou o gosto amargo de que a complacência com a colonização é um produto da ocasião.

E os moradores judeus da Palestina, e os sionistas, e os defensores não-judeus do Estado de Israel repetem que querem ou um país grande sem árabes ou um país pequeno sem árabes. Ou seja, ou os outros ao mar ou os outros ao bantustão. E essa discussão – que parece aquela tão não-judia dos europeus que escolhiam para os judeus entre a expulsão ou o gheto – é até onde alcança o novo problema judeu de Israel: o problema palestino. O sionismo se revelou simplesmente uma farsa: uma repetição do embroglio nacionalista e racista que se assolou os europeus até que eles tivessem o mundo ao seus pés – e pudessem terceirizar às elites do mundo, inclusive aos israelenses, o controle de um mundo feito sob medida para sua primazia. O pior da colonização não é produzir entre suas vítimas colonizados, mas produzir nelas colonizadores-mirins à espera de sua chance de repetir recursivamente as façanhas da colonização. Depois do fracasso do desafio sionista – um destes fracassos que ensina que não é possível dançar com o colonizador sem dormir com ele – resta a lição pedagógica: a resistência ensina muito mas suas lições são todas condicionais. Mesmo aprendendo tanto na diáspora, os judeus que se tornaram colonizadores se tornaram…colonizadores.

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E é colonial o impasse entre uma população cada vez mais convencida de que sua pureza não permite outros circulando em suas ruas e uma população de nativos que devem portanto escolher entre a segregação e a subalternidade. O sionismo é a última tentativa européia de resolver seu problema judeu – e a solução é uma tercerização, não aos povos residentes da Palestina, mas aos judeus eles mesmos. A solução, mais uma vez, não eliminou os resíduos do problema – como a conversão não exorcizou o marrano insistente, a segregação acabou em catástrofe. É o problema mesmo que é o problema: os judeus são simplesmente outros. O sionismo, e o pseudo-problema judeu do qual ele é irremediavelmente tributário, é uma figura da tirania do mesmo. Do shtetl à Gaza.

E vejo as marchas pela supremacia judaica em Jerusalém. E os bombardeios de Gaza, cada vez menos cirúrgicos, cada vez mais parecidos a massacres. Nada pode justificar o bombardeio de uma cidade permanentemente sitiada. Nada pode justificar a limpeza étnica em Sheik Jarrah. Nada pode justificar a solução final nazista. Mas vejo um transeunte da cidade nova de Jerusalém, tão judia que parece um enclave americano, dizer que Deus mandou castigos, os nazistas e os palestinos. E penso que o anti-semitismo europeu gerou também um anti-semitismo sionista. Se Deus castiga, Deus também oferece desafios. Anti-semita é quem pensa que todos os judeus defendem que os palestinos são castigos. O anti-semitismo sionista atua, como todos os anti-semitismos, colocando novos significados na palavra “judeu”. Desta vez o judeu se torna aquele que é cúmplice da supremacia colonial ocidental na Palestina. Tento evitar palavras como nazionismo até porque o jogo da comparação com o nazismo é um jogo desigual forjado pelo sionismo como projeto que fracassou em seu desafio. Mas o gesto – e apenas o gesto – de quem resiste à ocupação israelense com gritos, pedras ou mísseis é o mesmo de quem destrói um crematório de Birkenau.

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