O Fed sob pressão, o retorno do dinheiro fácil e a aceleração silenciosa da desdolarização
Cada rodada de flexibilização monetária sob pressão política enfraquece a narrativa ortodoxa do dólar
O corte de juros anunciado pelo Federal Reserve (Fed), em 10 de dezembro de 2025 não foi apenas mais um ajuste de política monetária. Foi um sinal inequívoco de que o centro do sistema financeiro global opera, cada vez mais, sob constrangimentos políticos e fiscais que limitam sua autonomia. Ao reduzir a taxa básica para o intervalo entre 3,5% e 3,75% — o terceiro corte consecutivo desde setembro — o banco central dos Estados Unidos revelou não apenas preocupação com a conjuntura doméstica, mas as tensões estruturais de um modelo que já não consegue sustentar sua centralidade sem recorrer a mecanismos extraordinários.
A queda de juros já era esperada. A grande surpresa da reunião de dois dias do Comitê Federal de Mercado Aberto (FOMC, da sigla em inglês) foi o anúncio de que o Fed começaria a expandir seu balanço patrimonial comprando US$ 40 bilhões em títulos do Tesouro por mês.
De um lado, o Fed reconhece a perda de dinamismo no mercado de trabalho e os riscos crescentes à atividade econômica. De outro, expõe as fraturas entre independência institucional, pressão política e a própria sustentabilidade da hegemonia do dólar. O debate que se abriu nos Estados Unidos desde então é menos sobre a “correção” técnica da decisão e mais sobre o que ela revela: os limites do modelo macroeconômico norte-americano em um mundo que já não gira em torno de um único centro financeiro.
Um Fed menos autônomo em um cenário político mais agressivo - A justificativa formal apresentada por Jerome Powell foi clara: sinais de desaquecimento do mercado de trabalho e perspectiva de desaceleração da economia doméstica. Ainda assim, o contexto político é impossível de ignorar. Donald Trump voltou à Casa Branca com uma agenda abertamente hostil à política monetária restritiva, pressionando publicamente o Fed por cortes de juros enquanto defende políticas fiscais expansionistas, tarifas comerciais e estímulos seletivos à indústria doméstica.
Essa combinação cria uma armadilha clássica. Déficits elevados e dívida pública crescente exigem juros mais baixos para se manterem administráveis, enquanto as próprias políticas do governo tendem a gerar pressões inflacionárias potenciais.
Nesse ambiente, o Fed deixa de operar exclusivamente como guardião da estabilidade de preços e passa a atuar, de forma cada vez mais explícita, como gestor indireto da dívida soberana americana. A política monetária se desloca: menos instrumento de estabilização macroeconômica, mais engrenagem de sustentação do sistema fiscal.
Esse deslocamento é central para compreender a inquietação atual dos mercados.
O retorno funcional do Quantitative Easing - Embora o Federal Reserve tenha concentrado sua comunicação recente nos sucessivos cortes da taxa básica de juros, notícias divulgadas a respeito da retomada de compras de ativos e operações de provisão de liquidez, envolvendo cerca de US$ 40 bilhões em títulos de curto prazo, surpreendeu o mercado. A linguagem adotada é cuidadosamente técnica — “ajustes de balanço”, “operações de mercado” —, mas a função é conhecida: conter a volatilidade dos juros longos, sustentar o mercado de títulos e preservar a fluidez do sistema financeiro.
Mais do que uma escolha discricionária, esse movimento revela uma necessidade funcional. Em um ambiente de desaceleração econômica, volatilidade financeira e elevada sensibilidade do Tesouro norte-americano ao custo de rolagem da dívida pública, os instrumentos tradicionais de política monetária tornam-se insuficientes. Um aperto via juros aprofundaria a retração e elevaria o desemprego; a manutenção de juros elevados pressionaria ainda mais o mercado de títulos públicos.
Nesse contexto, a expansão do balanço do Fed — mesmo sem o rótulo explícito de Quantitative Easing (QE) — passa a funcionar como mecanismo de estabilização financeira. Seu objetivo não é combater a inflação, mas conter a volatilidade dos mercados de dívida, reduzir prêmios de risco e garantir condições mínimas para o financiamento do setor público. A sobreposição entre política monetária e gestão fiscal deixa de ser exceção e passa a integrar o funcionamento regular do sistema.
Os rumores sobre o retorno do QE – afrouxamento quantitativo - foram acompanhados por uma valorização expressiva do ouro, tradicionalmente visto como ativo de proteção em ambientes de expansão monetária, enfraquecimento do dólar e aumento da incerteza institucional. O movimento revela menos temor inflacionário imediato e mais uma percepção difusa: a de que o sistema financeiro norte-americano volta a operar sob condições extraordinárias, em que a autonomia do banco central se mostra cada vez mais limitada.
Efeitos das políticas de Quantitative Easing - As políticas de Quantitative Easing afetam a economia norte-americana por canais que ultrapassam amplamente o sistema bancário. Ao expandir seu balanço e reduzir artificialmente os juros de longo prazo, o Federal Reserve barateia o crédito imobiliário, o financiamento ao consumo e o custo de capital das grandes corporações, sustentando a demanda agregada em momentos de desaceleração. Esse mecanismo ajuda a conter o desemprego e a evitar recessões mais profundas, mas o faz de maneira desigual: a valorização de ações e imóveis beneficia sobretudo os detentores de ativos, enquanto os salários reais permanecem pressionados. O resultado é uma recuperação apoiada no efeito riqueza e no endividamento, com impactos sociais assimétricos e aumento da desigualdade patrimonial.
Para os parceiros econômicos dos Estados Unidos, o QE funciona como um poderoso transmissor internacional de liquidez e volatilidade. Juros persistentemente baixos no centro do sistema financeiro empurram capitais para economias emergentes, pressionando moedas locais, inflando mercados de ativos e criando ciclos de entrada e saída abrupta de recursos. Ao mesmo tempo, a expansão monetária tende a enfraquecer o dólar no curto prazo, afetando a competitividade comercial de terceiros países e impulsionando os preços globais de commodities. Para economias dependentes de importações de alimentos e energia, isso se traduz em inflação importada; para exportadores, em ganhos temporários acompanhados de maior vulnerabilidade macroeconômica.
Em termos sistêmicos, o QE revela um paradoxo central da hegemonia monetária americana. Ao mesmo tempo em que sustenta o financiamento da dívida pública dos EUA e preserva o papel internacional do dólar, o Federal Reserve exporta instabilidade para o resto do mundo e expõe o caráter cada vez mais político da gestão da moeda global. Essa assimetria tem incentivado movimentos defensivos de diversificação de reservas, ampliação de acordos em moedas locais e busca por mecanismos alternativos de liquidação financeira, especialmente entre países do BRICS+ e do Sul Global. Assim, o QE deixa de ser apenas um instrumento de estabilização doméstica e passa a atuar como catalisador silencioso da fragmentação monetária internacional.
Fed, dólar e ouro: sinais de desgaste no centro - Em condições normais, a queda dos juros nos Estados Unidos estimularia a migração de capitais para economias emergentes como o Brasil que tem uma das taxas de juros mais elevadas do planeta. Contudo, o que se observou foi um fluxo significativo de capitais em direção ao ouro. Esse desvio do padrão esperado é revelador. Ele sinaliza não apenas maior aversão ao risco, mas um desgaste da credibilidade da moeda hegemônica no próprio mercado norte-americano.
No curto prazo, juros mais baixos nos EUA aliviam pressões financeiras globais, especialmente sobre países endividados em dólar. Esse alívio, contudo, vem acompanhado de maior volatilidade cambial, fluxos especulativos instáveis e riscos de reversão abrupta de capitais.
No longo prazo, o efeito é mais profundo: cada rodada de flexibilização monetária sob pressão política enfraquece a narrativa ortodoxa do dólar como ativo neutro, tecnicamente gerido e imune a disputas domésticas.
O dólar permanece dominante, mas sua autoridade simbólica se desgasta.
É nesse ponto que entram o BRICS+ e a China.
BRICS+, China e a desdolarização como resposta sistêmica - A desdolarização não nasce de discursos ideológicos, mas de incentivos econômicos concretos. Quando o principal emissor da moeda internacional passa a utilizá-la como instrumento de política doméstica — seja por meio de sanções, seja pela gestão monetária voltada à rolagem da dívida — outros países buscam reduzir sua exposição sistêmica.
A China tem sido a principal articuladora desse movimento, ampliando acordos bilaterais em moedas locais, fortalecendo o uso do renminbi no comércio internacional e defendendo, no âmbito dos BRICS, mecanismos alternativos de liquidação e financiamento. O Novo Banco de Desenvolvimento e os acordos de swap entre bancos centrais não representam rupturas abruptas, mas elementos de uma arquitetura paralela em construção.
Paradoxalmente, o corte de juros do Fed e os sinais de retorno do dinheiro fácil funcionam como catalisadores desse processo. Ao evidenciar que a política monetária americana está cada vez mais condicionada à política interna, Washington incentiva outros países a buscar proteção fora do circuito exclusivo do dólar.
Não é o fim do dólar — é o fim da exclusividade - É fundamental evitar leituras apressadas. O dólar não está em colapso, nem será substituído de forma abrupta. O que está em curso é um processo mais silencioso e estrutural: a perda gradual de exclusividade. O sistema monetário internacional caminha para uma configuração mais fragmentada, com múltiplos polos, moedas regionais fortalecidas e maior valorização de ativos reais.
Nesse cenário, os BRICS não atuam como um bloco ideológico homogêneo, mas como um espaço pragmático de coordenação diante da instabilidade do centro. A China, por sua vez, não propõe um novo padrão hegemônico clássico, mas uma transição para uma ordem menos dependente de uma única moeda e de um único banco central.
Quando o centro pede tempo, a periferia se reorganiza - O corte de juros do Fed em dezembro e os sinais de retorno do dinheiro fácil não são episódios isolados. Eles expressam as dificuldades de um sistema que tenta preservar sua centralidade em um mundo estruturalmente transformado.
Para os Estados Unidos, trata-se de ganhar tempo. Para o resto do mundo, trata-se de reduzir vulnerabilidades.
A história monetária mostra que hegemonias não caem por colapso, mas por adaptação forçada. O que se observa hoje é exatamente isso: os Estados Unidos seguem no centro do sistema, mas já não sozinhos. A desdolarização avança não porque o dólar seja fraco, mas porque sua gestão tornou-se politicamente exposta — e, quando alternativas deixam de ser exceção, o desgaste deixa de ser invisível e passa a ser estrutural.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




