Heba Ayyad avatar

Heba Ayyad

Jornalista internacional e escritora palestina-brasileira

183 artigos

HOME > blog

O fenômeno da migração reversa e o colapso do mito israelense

Uma fuga ou a busca por ambições pessoais em países ocidentais, em vez de contribuir para o esforço coletivo destinado a assegurar o caráter judaico do Estado

Israel bloqueia o recebimento de 1 milhão de vacinas para vacinar crianças na Faixa de Gaza (Foto: Reuters/Dawoud Abu Alkas)

A emigração de Israel — ou “Yerida”, que significa literalmente “descida” — é uma das questões sociais mais sensíveis da sociedade israelense.

Esse termo carrega profundas conotações, sugerindo declínio e deterioração, em contraste com “Aliyah”, ou “ascensão”, que simboliza a imigração para a Terra Prometida.

Desde a fundação do Estado de Israel, em 1948, a ideia de “ascender” a Israel tornou-se um pilar da identidade sionista, enquanto a emigração passou a ser vista como uma forma de abandono do projeto nacional — uma fuga ou a busca por ambições pessoais em países ocidentais, em vez de contribuir para o esforço coletivo destinado a assegurar o caráter judaico do Estado e seu futuro.

O primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin descreveu esses emigrantes, durante as comemorações do Dia da Independência em 1976, como “a queda dos covardes”, expressão que ainda hoje reflete a atitude coletiva em relação a esse grupo.

Israel — um Estado fundado essencialmente sobre o conceito de imigração judaica para a “Terra Prometida” — enfrenta, pela primeira vez desde a sua criação, uma onda de emigração que cresce rapidamente, com o número de pessoas deixando o país superando o número de chegadas nos últimos dois anos.

O Desmoronamento do Mito do “Refúgio Seguro”

Desde 1948, a obsessão com a segurança tem sido central na formação da consciência coletiva israelense e no discurso sionista, que apresentava Israel como a “pátria segura do povo judeu” e o “último refúgio” para os judeus expulsos da Europa.

No entanto, esse mito desmoronou em 7 de outubro de 2023, com a Operação “Inundação de Al-Aqsa”, que abalou profundamente os alicerces do sistema de segurança e destruiu a sensação coletiva de proteção dentro das fronteiras do país.

Naquele dia, os israelenses descobriram que aquilo que havia sido alardeado por décadas — uma suposta imunidade de inteligência e uma barreira absoluta de dissuasão — não passava de uma ilusão coletiva. A violação das fronteiras fortemente fortificadas pela resistência palestina e a transformação de símbolos de segurança em cenas de desamparo e caos abalaram a confiança dos cidadãos israelenses em suas instituições de defesa, convertendo uma crise militar temporária em uma crise existencial de identidade nacional.

De acordo com um relatório do Instituto da Democracia de Israel (2024), mais de dois terços dos cidadãos afirmaram que sua confiança no exército diminuiu drasticamente após o ataque, enquanto mais da metade relatou “medo constante de perder a segurança pessoal, mesmo nas principais cidades”.

A partir desse momento, a ideia de um “porto seguro”, que durante décadas atraiu imigrantes judeus da Europa e de diversas regiões do mundo, passou a ser fonte de dúvida e ansiedade, levando milhares de famílias a buscar um “refúgio alternativo” fora das fronteiras do país. A emigração deixou de ser apenas uma escolha econômica ou profissional e passou a funcionar como um mecanismo de sobrevivência diante da perda da sensação de segurança interna.

O Tsunami da Partida

Israel — um Estado fundado principalmente no conceito de imigração judaica para a “Terra Prometida” — enfrenta, pela primeira vez desde a sua criação, uma onda de emigração em rápida ascensão, na qual o número de pessoas que deixam o país supera o número de chegadas nos últimos dois anos.

De acordo com dados oficiais do Centro de Pesquisa e Informação do Knesset, Israel tornou-se, entre 2023 e 2024, um “país que exporta mais pessoas do que recebe”, após um aumento sem precedentes nas taxas de emigração desde a década de 1970.

Informações divulgadas pelo Departamento Central de Estatísticas de Israel (2024), juntamente com relatórios internacionais de agências como a Associated Press e o The Times of Israel, indicam que o período entre outubro de 2023 e meados de 2025 registrou uma das maiores ondas de emigração das últimas duas décadas.

Segundo estimativas do Departamento Central de Estatísticas, entre 82 mil e 85 mil pessoas deixaram Israel em 2023 — o maior índice anual desde a Segunda Intifada.

A Associated Press observa que os primeiros meses de 2024 apresentaram um aumento de 59% no número de emigrantes em comparação ao mesmo período do ano anterior.

O The Times of Israel relatou ainda que o número de pessoas que retornaram ao país caiu 21% durante o primeiro semestre de 2024, refletindo uma mudança clara no equilíbrio demográfico entre emigração (Yerida) e retorno (Aliyah).

Essa queda no retorno a Israel evidencia a erosão do antigo apelo de “porto seguro” na consciência coletiva israelense. A decisão de emigrar deixou de ser interpretada apenas sob perspectivas econômicas ou profissionais e passou a ser também uma resposta às preocupações de segurança desencadeadas pelos acontecimentos que se intensificaram após 7 de outubro de 2023.

Com a ampliação das tensões regionais e o aumento da sensação de instabilidade, esses números começam a sugerir uma mudança demográfica estrutural de longo prazo, levantando questões importantes sobre o futuro socioeconômico do país na próxima década.

Duas Fases da Nova Onda Migratória

As estatísticas demonstram que essa onda migratória não seguiu um padrão uniforme, mas ocorreu em duas fases principais:

Fase 1 (outubro de 2023 – março de 2024)

Período marcado pelo “choque coletivo” que se seguiu à Operação “Inundação de Al-Aqsa”. Nesse intervalo, as preocupações com a segurança combinaram-se com a mobilização militar generalizada, ampliando a sensação de instabilidade entre as famílias.

A migração foi predominantemente defensiva e temporária — uma espécie de “migração preventiva”, destinada a escapar de tensões imediatas.

Fase 2 (abril de 2024 – verão de 2025)

Fase de “estabilidade relativa”, em que a saída do país passou a ser uma escolha mais estratégica para certos grupos, especialmente profissionais qualificados e famílias urbanas.

Nesse período, viajar deixou de ser apenas uma fuga do perigo e passou a representar a busca por um estilo de vida mais estável, oportunidades de trabalho e educação no exterior.

Uma reportagem publicada pelo Times of Sarajevo em 15 de outubro de 2024, intitulada “Israelenses Deixam o País em Massa: Um Êxodo Sem Precedentes, Principalmente em Idade Militar”, apontou que Israel está vivenciando uma crescente onda de emigração entre sua população jovem e produtiva.

A reportagem afirmou que a idade média dos emigrantes do sexo masculino era de 31,6 anos, enquanto a das mulheres era de 32,5 anos. Explicou ainda que indivíduos na faixa dos 20 e 30 anos constituem aproximadamente 40% do total de emigrantes, apesar de representarem apenas 27% da população.

Esses números, de acordo com análises estatísticas, mostram que Israel está perdendo um segmento crucial de sua força de trabalho qualificada — jovens em idade universitária, profissionais liberais e militares — o que prenuncia consequências econômicas e sociais de grande alcance.

O relatório também afirmou que 48% dos emigrantes do sexo masculino e 45% do sexo feminino eram solteiros, enquanto 41% se mudaram com seus parceiros, indicando que uma parcela significativa dessa população está emigrando de forma permanente, e não temporária.

Em relação à origem, 59% dos emigrantes nasceram no exterior, enquanto 41% nasceram em Israel. Entre os nascidos fora do país, 80% vieram da Europa, sendo a grande maioria (72%) oriunda de ex-repúblicas soviéticas. Este último grupo havia se beneficiado anteriormente de amplo apoio governamental, incluindo moradia subsidiada e hipotecas, antes de reinvestir no exterior os lucros provenientes da venda dessas propriedades (Sarajevo Times, 2024).

Esses números indicam que Israel está perdendo sua elite jovem, produtiva e instruída — o próprio segmento que compõe a espinha dorsal de sua força de trabalho, sistema educacional e serviço militar — o que prenuncia impactos humanos e econômicos de longo prazo.

Os jovens em Israel já não veem o Estado como um projeto coletivo nacional com futuro, mas como uma entidade ameaçada, “prisioneira da realidade do conflito em curso”.

Fuga de Cérebros

Nos últimos anos, surgiu uma tendência paralela à emigração juvenil: um êxodo crescente de acadêmicos e profissionais das áreas de tecnologia, medicina e engenharia.

De acordo com uma sessão especial realizada pela Comissão de Imigração e Absorção do Knesset em maio de 2024, o Centro de Pesquisa e Informação do Knesset observou que, embora dados oficiais precisos ainda não estejam disponíveis, estimativas iniciais indicam que aproximadamente 12% dos emigrantes em 2024 possuíam títulos de pós-graduação (mestrado ou doutorado), refletindo uma grave perda de capital humano qualificado em Israel (Comunicado de Imprensa do Knesset, 2025).

Por sua vez, a ScienceAbroad — uma rede internacional que conecta pesquisadores israelenses que trabalham no exterior — revelou em seu relatório anual de 2024 que mais de 3.500 cientistas e pesquisadores israelenses se mudaram para universidades da Europa e da América do Norte desde o início da guerra em Gaza, em comparação com cerca de 2.000 nos dois anos anteriores somados, representando uma duplicação do ritmo da “fuga de cérebros” em decorrência do conflito militar e político (Relatório Anual da ScienceAbroad, 2024).

De maneira semelhante, o pesquisador Yagil Levy, da Universidade Aberta de Israel, afirma que esse fenômeno representa uma forma de “fuga de conhecimento” que ameaça a infraestrutura da economia israelense, baseada na inovação e na pesquisa científica. Ele alerta que a perda contínua de conhecimento acadêmico e tecnológico criará, a médio e longo prazo, uma lacuna difícil de ser preenchida (Relatório do Haaretz, 2025).

Em conclusão, esses indicadores demográficos sugerem que Israel está à beira de uma transformação estrutural profunda e duradoura.

A crescente emigração de jovens e de indivíduos com formação superior não constitui um fenômeno populacional passageiro; ela afeta o próprio núcleo da sociedade israelense, sua composição etária e sua estrutura profissional.

A continuidade dessa fuga de capital humano provoca um desequilíbrio crescente na pirâmide etária da força de trabalho e um declínio em setores vitais, como tecnologia e pesquisa científica — áreas que formam a base da economia israelense moderna há décadas.

As repercussões desse fenômeno ultrapassam a dimensão econômica e impactam o tecido social e político do Estado. Muitos dos que partem o fazem não apenas em busca de melhores oportunidades, mas também de um sentido perdido de segurança e estabilidade. Já aqueles que permanecem tendem a estar vinculados à terra por motivações religiosas ou por nacionalismo simbólico.

Assim, aprofunda-se a divisão entre os que enxergam a permanência no país como um dever nacional e os que veem a saída como uma legítima forma de preservação individual e familiar.

A longo prazo, essa trajetória aponta para uma redução no crescimento populacional, declínio da produtividade e, possivelmente, uma redefinição da própria identidade do Estado. O modelo sionista, fundado na ideia de um “porto seguro”, enfrenta agora um teste existencial: seu simbolismo se desgasta diante de uma realidade em que a confiança nas instituições diminui e a capacidade de garantir segurança às gerações futuras se enfraquece.

Diante dessa transformação, o conceito de “Aliá” — outrora sinônimo do sonho coletivo de ascender à “Terra Prometida” — corre o risco de se tornar apenas uma memória simbólica de uma era passada.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.