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Chris Hedges

Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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O fetiche das armas nos EUA

"Não haverá controle de armas, não só por causa do lobby, mas porque para muitos estadunidenses a ideia da arma é único poder que lhes restou", diz Chris Hedges

(Foto: ABr)
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Por Chris Hedges 

(Publicado no site The Chris Hedges Report, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247)

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As armas foram uma parte onipresente da minha infância. O meu avô, que foi um sargento-mestre no exército [dos EUA], tinha um pequeno arsenal na sua casa em Mechanic Falls, no estado de Maine. Ele me deu um rifle Springfield 2020 com ação de ferrolho quando eu tinha 7 anos de idade. Quando eu fiz 10 anos, fui promovido a um [rifle] Winchester 30-30 com alavanca. Segui adiante no Programa de Qualification de Pontaria da 'National Rifle Association' (NRA – Associação Nacional [dos EUA] de Rifles), ajudado por um acampamento de verão onde o tido de fuzil era mandatório. Como muitos meninos na zona rural dos EUA, eu era fascinado por armas, mesmo não gostando de caçar. No entanto, depois de passar duas décadas como repórter em zonas de guerra, desenvolvi uma aversão profunda às armas. Eu ví o que elas faziam à corpos humanos. Eu herdei as armas do meu avô e as dei a um tio.

As armas fizeram a minha família – pessoas da classe trabalhadora mais baixa – sentir-se poderosa, mesmo que não o fossem. Tire as armas deles e o que sobra? Pequenos vilarejos em decadência, usinas têxteis e de papel fechadas, trabalhos sem futuro, bares decadentes, quase todos os homens da minha família eram veteranos de guerra que afogavam os seus traumas na bebida. Tire deles as armas e a força bruta da miséria, do declínio e do abandono lhe batem na cara como um maremoto.

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Sim, o lobby das armas e os fabricantes de armas alimentam a violência disponibilizando facilmente o acesso a armas de assalto cujas balas de pequeno calibre de 5,56 mm as tornam praticamente inúteis para a caça. Sim, as frouxas leis sobre armas e os risíveis atestados de antecedentes têm uma parte da culpa. Mas os EUA também fetichizam as armas. O fetiche tem se intensificado entre homens brancos trabalhadores, que têm visto tudo escapar do seu alcance: estabilidade econômica, um sentimento de ter um lugar na sociedade, a esperança para o futuro e o empoderamento político. O medo de perder a arma é o golpe esmagador final à autoestima e a dignidade, uma rendição às forças econômicas e políticas que destruiu as suas vidas. Eles se agarram à arma como uma ideia, uma crença de que, com ela, eles são fortes, inatacáveis e independentes. As areias movediças da demografia, com as pessoas brancas sendo projetadas para tornarem-se uma minoria no EUA até o ano de 2025 (https://www.brookings.edu/blog/the-avenue/2018/03/14/the-us-will-become-minority-white-in-2045-census-projects/), intensifica este desejo primal, que eles dizem ser uma necessidade, de possuir uma arma.

Houve mais de 200 massacres com tiros neste ano (https://www.washingtonpost.com/nation/2022/06/02/mass-shootings-in-2022/). Existem cerca de 400 milhões de armas [privadas] nos EUA – umas 120 armas para cada 100 estadunidenses (https://www.bbc.com/news/world-us-canada-41488081). Metade das armas privadas pertencem a 3% da população (https://news.northeastern.edu/2016/09/26/study-70m-more-firearms-added-to-us-gun-stock-over-past-20-years/#_ga=2.130490438.814604189.1654280320-254802065.1654280320), segundo um estudo de 2016 (https://www.rsfjournal.org/content/rsfjss/3/5/38.full.pdf). O nosso vizinho no estado do Maine tinha 23 armas. Leis restritivas sobre armas e leis sobre armas que são aplicadas de forma desigual, bloqueiam a propriedade de armas para muitos negros, principalmente nos bairros urbanos. A lei federal, por exemplo, proíbe a propriedade de armas para a maioria das pessoas que tem condenações criminais, o que barra efetivamente a propriedade legal de armas a um terço dos homens negros [nos EUA]. A ilegalidade de armas para os negros faz parte de um extenso contínuo. O direito às armas foi negado aos negros sob os Códigos Antibélicos dos Escravos, pelos códigos para negros após a Guerra Civil e as leis de Jim Crow [discriminação racial legalizada].

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As pessoas brancas construíram a sua supremacia nos EUA e no mundo com violência. Eles massacraram os Nativos Americanos e lhes roubaram a terra. Eles raptaram africanos, os embarcaram como carga para as Américas e depois os escravizaram, os lincharam, os aprisionaram e empobreceram as pessoas negras por gerações. Eles sempre alvejaram com tiros as pessoas negras com impunidade – uma realidade histórica que só recentemente se tornou perceptível para a maioria das pessoas brancas devido aos vídeos de matanças feitos com telefones celulares

“A essência da alma estadunidense é dura, isolada, estoica e assassina”, escreveu D.H. Lawrence. “Até agora, isso jamais se derreteu.”

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Algumas vezes de maneiras aberta e outras vezes de maneiras inconscientes, a sociedade branca teme profundamente a retribuição dos negros pelos seus quatro séculos de ataques assassinos.

De novo, eu digo que durante os últimos 300 anos, cada um e todos os negros possuem aquela herança de uma enorme carga de ódio pelos EUA, mais do que eles próprios sabem”, assinala Richard Wright no seu diário (https://archives.yale.edu/repositories/11/resources/972). “Talvez esteja bem que os negros tentem ser tão não-intelectuais quanto possível, porque se alguma vez eles começarem realmente a pensar sobre o que ocorreu com eles, eles se tornarão selvagens. E talvez seja este o segredo dos brancos que querem acreditar que os negros realmente não têm memória; porque se eles pensassem que os negros se lembram [da sua própria história], eles começariam a fuzilá-los todos em pura autodefesa.”

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A Segunda Emenda [da Constituição dos EUA], como escreve a historiadora Roxanne Dunbar-Ortiz escreve no seu livro 'Loaded: A Disarming History of the Second Amendment' [Carregado: Uma História Desarmadora da Segunda Emenda] (https://www.rt.com/shows/on-contact/452901-amendment-supremacy-immigrants-constitution/), foi projetada para solidificar os direitos, muitas vezes exigido sob a lei do estado, dos brancos de portar armas (https://www.thecanary.co/feature/2019/08/06/amid-mass-shootings-leading-historian-says-white-supremacy-is-baked-into-the-us-constitution/). Os homens brancos sulistas não só exigiram ter a propriedade de armas, mas de servir nas patrulhas para policiar os escravos. Estas armas eram usadas para exterminar a população indígena, caçar pessoas escravizadas que escapavam do cativeiro e para esmagar violentamente as revoltas de escravos, as greves e outros levantes de grupos oprimidos. A violência dos vigilantes [milícias brancas] está impressa no nosso DNA.

“A maior parte da violência nos EUA – e isso também ilustra a sua relação com o poder do estado – foi iniciada com uma viés 'conservador'” - escreve o historiador Richard Hofstadter (https://books.google.com/books?id). “Ela foi lançada contra os abolicionistas, os católicos, os radicais, os trabalhadores e organizadores sindicais, os negros, os orientais e outras minorias étnicas, raciais ou ideológicas, e tem sido usada ostensivamente para proteger os estadunidenses, os sulistas, os protestantes brancos, ou simplesmente a estabelecida maneira de viver e a moral da classe média. Por isso, uma alta proporção das nossas ações violentas [nos EUA] vem dos grandes cães ou dos cães médios. Assim tem sido o caráter da maior parte dos movimentos das turbas e dos vigilantes [milícias]. Isso pode ajudar a explicar por que tão pouco desta violência tem sido usada contra as autoridades do estado e por que, por sua vez, ela tem sido tão facilmente e indulgentemente esquecida.”

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Payton Gendron – o atirador branco de 18 anos em Buffalo [estado de New York] matou dez pessoas negras e feriu outras três, uma delas negra, no Tops Friendly Markets [supermercado] num bairro negro – expressou num manifesto de 180 páginas o seu medo branco, ou a “grande teoria da substituição” [dos brancos pelos negros]. Gendron cita repetidamente a Brenton Tarrant – o atirador de 28 anos que assassinou 51 pessoas e feriu outras 40 em duas mesquitas em2019 (https://www.nbcnews.com/news/world/new-zealand-mosque-shootings) em Christchurch, Nova Zelândia (https://www.nbcnews.com/news/world/new-zealand-mosque-shootings). Assim como Gendron, Tarrant transmitiu o seu ataque ao vivo [na internet], de modo que – assim acreditava ele – ele pudesse ser ovacionado por uma audiência virtual. Robert Bowers, de 46 anos, matou 11 pessoas na Sinagoga 'Tree of Life' ['Árvore da Vida'] em Pittsburgh (https://www.nbcnews.com/news/us-news/active-shooter-reported-near-pittsburgh-synagogue-n925211) em2018. Patrick Crusius (https://www.npr.org/2019/10/10/769013051/el-paso-walmart-shooting-suspect-pleads-not-guilty) um homem de 21 anos, em 2019, dirigiu seu carro por mais de 11 horas para alvejar hispânicos, deixando 22 pessoas mortas e 26 feridas num Walmart [supermercado] em El Paso [Texas]. John Earnest (https://www.nbcnews.com/news/us-news/california-synagogue-shooter-pleads-guilty-deadly-attack-will-spend-life-n1274564), que se confessou culpado de assassinar uma pessoa e ferir outras três em 2019 na sinagoga de Poway, California, via a “raça branca” sendo suplantada por outras raças. Em 2915, Dylann Roof disparou 77 tiros com a sua pistola Glock calibre .45 contra os paroquianos que participavam de um grupo de estudos da Bíblia na Igreja Black Emanuel AME em Charleston, no estado da Carolina do Sul. Ele assassinou nove deles. “Vocês, negros, estão matando pessoas brancas nas ruas todos os dias e estuprando mulheres brancas todos os dias”, ele berrou para as suas vítimas enquanto disparava tiros sobre eles (https://www.nytimes.com/2017/01/10/us/dylann-roof-trial-charleston.html) segundo um diário que ele tinha na cadeia.

A arma fez aplicar a supremacia branca. Não deve ser uma surpresa que a arma seja assumida como o instrumento que evitará que os brancos sejam destronados.

O espectro do colapso social – cada vez menos sendo uma teoria da conspiração, à medida que nos engatilhamos para o colapso do clima – reforça o fetiche das armas. Os cultos sobreviventistas [survivalists], infundidos pela supremacia branca, pintam o cenário de quadrilhas de saqueadores negros e marrons fugindo do caos das cidades em caos e devastando as zonas rurais. Estas hordas de pessoas negras e marrons, assim acreditam os sobreviventistas, serão mantidas à distância com armas, especialmente com armas de guerra. Isto não está muito longe de propor o extermínio deles.

O historiador Richard Slotkin (https://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Slotkin) chama o nosso desejo por sacrifícios de sangue de “a metáfora estruturante da experiência estadunidense”, uma crença na “regeneração através da violência”. Na sua trilogia 'Regeneration Through Violence: The Mythology of the American Frontier, The Fatal Environment: the Myth of the Frontier in the Age of Industrialization, and Gunfighter Nation: The Myth of the Frontier in Twentieth-Century America' ['Regeneração Através da Violência: A Mitologia da Fronteira dos EUA, O Meio-Ambiente Fatal: O Mito da Fronteira na Era da Industrialização, e Nação Pistoleira: O Mito da Fronteira nos EUA do Século XX'] (https://www.oupress.com/9780806132297/regeneration-through-violence/, https://www.oupress.com/9780806130309/the-fatal-environment/, https://www.oupress.com/9780806130316/) ele escreve que o sacrifício de sangue é celebrado como a forma superior do bem, Algumas vezes, ele exige o sangue de heróis, porém mais frequentemente ele exige o sangue dos inimigos.

Este sacrifício de sangue, seja doméstico [nos EUA] ou em guerras no estrangeiro, é racializado. Os EUA mataram milhões dos habitantes do planeta, incluindo mulheres e crianças, na Coreia, no Vietname, no Afeganistão, na Somália, no Iraque, na Síria e na Líbia, bem como em uma quantidade de guerras por procuração [proxy wars] – sendo a mais recente na Ucrânia, para onde o governo Biden enviará outros US$ 700 milhões para suplementar os US$ 54 bilhões em auxílio militar e humanitário.  

Quando a mitologia nacional inculca numa população que esta tem o direito divino de matar outros para purgar a terra do mal, como pode esta mitologia não ser ingerida por indivíduos inocentes e alienados? Mate-os no estrangeiro. Mate-os aqui [nos EUA]. Quanto mais o império se deteriora (https://chrishedges.substack.com/p/no-way-out-but-war?s=r), mais cresce o ímpeto de matar. A violência, em desespero, se torna o único caminho para a salvação.

“Um povo inconsciente dos seus mitos provavelmente continuará a viver segundo eles, mesmo que o mundo em volta daquele povo possa mudar e exigir mudanças na sua psicologia, na sua visão de mundo, na sua ética e nas suas instituições”, escreve Slotkin.

O fetiche das armas nos EUA e a cultura da violência dos vigilantes [milicias] faz dos EUA um país muito diferente de outras nações industrializadas. Esta é a razão pela qual jamais haverá um controle sério das armas [nos EUA]. Não importa quantos assassinatos em massa ocorram, quantas crianças sejam massacradas a tiro nas suas salas de aula, ou quanto aumente o índice de homicídios.

Quanto mais nós permanecermos num estado de paralisia política, dominados por uma oligarquia corporativa que se recusa a responder à crescente miséria da metade inferior da população, tanto mais a fúria das classes inferiores encontrará expressão na violência. As pessoas negras, muçulmanas, asiáticas, os judeus e LGBTQ, junto com os sem-documentos, os liberais, as feministas e os intelectuais – já rotulados como contaminantes – serão programados para execução. A violência gerará mais violência.

“As pessoas pagam pelo que fazem e, ainda mais, por aquilo que eles se permitiram tornar-se”, escreveu James Baldwin (https://www.amazon.com/James-Baldwin-Collected-Library-America/dp/1883011523/ref=sr) sobre o sul dos EUA. “Aqui, a questão crítica é que a soma destas abdicações individuais ameaça a vida em todo o mundo. Porque, em geral, enquanto entidades sociais e morais e políticas e sexuais, os estadunidenses brancos provavelmente são as pessoas mais doentes e certamente mais perigosas, de todas as cores, a serem encontradas no mundo atualmente.” Ele adicionou que ele “não estava chocado pela perversidade deles, porque aquela perversidade não era outra coisa senão o espírito e a história dos EUA. O que me chocou foi a incrível dimensão da tristeza deles. Eu me senti como se tivesse me perdido no inferno.”

Aqueles que se agarram à mitologia da supremacia branca não podem ser alcançados através da discussão racional. A mitologia é tudo que lhes sobra. Quando esta mitologia parece estar ameaçada, isto detona um contrataque feroz, porque sem o mito há um vazio, um vácuo emocional, um desespero esmagador.

Os Estados Unidos têm tuas escolhas. Eles podem reintegrar os despossuídos de volta na sociedade através de reformas radicais do tipo do New Deal, ou podem deixar a classe inferior chafurdar nas toxinas da pobreza, do ódio e do ressentimento, alimentando os sacrifícios de sangue que nos afligem. Me parece que esta escolha já foi feita. A oligarquia dominante não pega o metrô, nem voa em jatos comerciais, ela é protegida pelo FBI, pela Segurança da Pátria [Homeland Security], por escoltas policiais e por guarda-costas. Os seus filhos frequentam escolas privadas. Eles vivem em condomínios fechados com elaborados sistemas de vigilância. Nós não importamos.

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