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Daniele Barbosa Bezerra

Doutora em Educação (UFC), professora, pesquisadora de gêneros biográficos e memorialísticos, contista e cronista.

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O Filho de Mil Homens e o Silêncio Fundante

Filme imperdível

O Filho de Mil Homens e o Silêncio Fundante (Foto: Captura de tela/Vídeo)

Nessa semana, durante um hiato ou outro das minhas atividades laborais, assisti ao filme, O Filho de Mil Homens, do roteirista e diretor, Daniel Resende. Fiquei verdadeiramente impactada pela beleza do filme extensiva ao roteiro, à fotografia, à interpretação dos atores e sobretudo ao silêncio, não como ausência da palavra, mas sim como elemento importante na construção do que se quis dizer.

O não dito, no filme, assim como na vida, tem uma importância fundamental na construção das narrativas cotidianas; apesar de que, na vida, este elemento passou a ser abafado em meio à verborragia barulhenta dos nossos tempos, cuja palavra, dita ou gritada, acaba por dispersar e esconder a essência do que é vital.

O Filho de Mil Homens, feito de muitos sonhos, é um desses filmes que precisa ser visto sem esperar a eloquência da palavra, mas ficar atento à comunicação inconfundível da quietude sentida pela alma. Enquanto o assistia, lembrei-me do conceito de silêncio fundante concebido pela linguista, Eni Orlandi, em sua obra “As Formas do Silêncio”. A acadêmica o considera como o real da significação, o real do discurso. Pela perspectiva da autora, o silêncio não é pensado como falta, mas a linguagem é que é pensada como excesso, e é exatamente essa a dinâmica dessa obra cinematográfica.

O diretor e roteirista ao construir a obra macera a matéria-prima do cinema, a imagem. E a partir dela nos propõe a reflexão e o mergulho profundo sobre as vilanias da sociedade que inserem o machismo, o capacitismo, a homofobia e todos os tipos de chagas sociais que aviltam os indivíduos durante sua senda pessoal. Em poucos diálogos, nos sugere repensar sobre todas essas mazelas, além do conceito de família explorado e divulgado pela sociedade patriarcal. 

Em O Filho de Mil Homens, família é aquela que acolhe amorosamente os seus, independente das peculiaridades de cada indivíduo. É uma família montada pelo afeto sincero cuidadosamente cultivado por indivíduos massacrados pela sociedade que os criminalizam, que os debocham, que os castigam, simplesmente por serem quem são. Na simplicidade da casa do pescador Crisóstomo cabem todos, unidos pelas dores, pela solidariedade e pela descoberta de uma nova família; a que partilha o alimento para o corpo e para o espírito feito pelas mãos calejadas do protagonista, a família-sonho de uma sociedade menos adoecida.

Crisóstomo, interpretado pelo grande ator, Rodrigo Santoro, é de uma beleza poética indescritível (não estou tratando da beleza do ator, que é tão óbvia) que geleifica até as psiques mais petrificadas. A personagem é um homem totalmente desconstruído, apesar de rústico, que não tem receio de mostrar sua sensibilidade, mesmo que seja alvo de comentários jocosos dos habitantes da vila que habita. Com um olhar miúdo e afiado para a natureza e para a vida, não gasta palavras com os não merecedores da sua atenção; apenas observa esses miseráveis de alma com um misto de empatia e compaixão. Monossilábico, suas palavras, quando ditas, são arrebatadoras pela precisão da mensagem, mas isso é para poucos. Quando dói ser quem ele é, ele grita e alto, muito alto, tendo como testemunha a natureza com quem dialoga constantemente, interpretando as sutilezas dos seus sinais, seja ouvindo os sons do mar numa concha ou apenas mirando o horizonte. 

Filme imperdível aos amantes da literatura, do cinema e da vida.  

Arrebatada pela obra, reflexiva, encontro o meu silêncio por aqui. 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.