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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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O fim do Califa: “Ele morreu como um cão”

A volta triunfal, na versão cinematográfica de Trump, enterra a embaraçosa história de empregar tanques para "proteger" os campos de petróleo da Síria

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Por Pepe Escobar, publicado originalmente no Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres

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"Ele morreu como um cão". Trump não poderia ter criado uma tirada melhor para marcar seu momento Osama bin Laden tendo o mundo inteiro como plateia.

Abu Bakr al-Baghdadi, falso califa, líder do ISIS/Daesh, o homem mais procurado do planeta, foi "trazido à justiça" sob as ordens de Trump. O califa cachorro morto agora ocupa a posição de troféu máximo da vitória na política externa, antes da reeleição de 2020.

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As cenas-clímax - tão inevitáveis quanto a morte ou o imposto de renda - do filme ou da série da Netflix que estão por vir já foram escritas. (Trump: "assisti como a um filme"). O uber-terrorista covarde, encurralado em um túnel sem saída, oito helicópteros de combate pairando acima, cães latindo no escuro, três crianças aterrorizadas tomadas como reféns, o covarde detona um colete suicida, o túnel desaba sobre ele e as crianças.

Competentes especialistas em medicina forense recolheram amostras do DNA do falso califa e, ao que tudo indica, concluíram seu trabalho em tempo récorde. Os restos do alvo da auto-explosão - então já  hermeticamente embalados em sacos plásticos - o confirmam: era mesmo Baghdadi. Na calada da noite, é hora da unidade de comando voltar a Irbil, em um voo de setenta minutos sobre o nordeste da Síria e o noroeste do Iraque. Corte para a entrevista coletiva de Trump. Missão cumprida. Ao final, rolam os créditos.

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Tudo isso aconteceu em um conjunto murado, a apenas trezentos metros de distância do vilarejo de Barisha, em Idlib, no nordeste rural da Síria, a apenas cinco quilômetros da fronteira sírio-turca. O conjunto já não existe mais, e foi reduzido a pó para que não viesse a se tornar um santuário (sírio) para um iraquiano renegado.

O califa já estava em fuga, e havia chegado ao seu cafundó rural apenas 48 horas antes do ataque, segundo a inteligência turca. Uma pergunta séria é o que ele estaria fazendo no noroeste da Síria, em Idlib - um verdadeiro caldeirão Donbass em 2014 - que o exército sírio e a força aérea russa estão apenas esperando o momento certo para destruir.

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Não há praticamente jihadistas do ISIS/Daesh em Irbil, mas há muitos do Hayat Tahrir al-Sham, antes conhecido como Jabhat al-Nusra, a al-Qaeda na Síria, conhecidos no Beltway de Washington como "rebeldes moderados", incluindo brigadas de turcos radicais previamente armados pela inteligência turca. A única explicação racional é que o Califa talvez tivesse identificado Idlib, esse fim-do-mundo próximo a Barisha, afastado da zona de guerra, como o passaporte ideal, abaixo da linha de radar, para cruzar a fronteira para a Turquia.

Os russos sabiam?

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O caldo engrossa quando examinamos a longa lista de agradecimentos de Trump, ao falar do ataque vitorioso. A Rússia em primeiro lugar, seguida pela Síria - ao que tudo indica curdos sírios, e não Damasco -, Turquia e Iraque. Na verdade, os curdos sírios, nas palavras de Trump, só receberam crédito por "um certo apoio". Seu comandante, Mazloum Abdi, entretanto, preferiu louvar o ataque como uma "operação histórica", que contou com a essencial contribuição da inteligência dos curdos da Síria.

Na entrevista coletiva de Trump, que alongou bastante os agradecimentos, a Rússia novamente veio primeiro ("grande" colaboração), e o Iraque foi "excelente": o serviço Nacional de Inteligência Iraquiano mais tarde comentou a sorte que teve graças um sírio que havia contrabandeado as mulheres de dois dos irmãos de Baghdadi, Ahmad e Jumah, para Idlib via Turquia.

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Não há a menor possibilidade de as Forças Especiais dos Estados Unidos terem conseguido esse feito sem a participação complexa e coordenada dos serviços de inteligência turcos, iraquianos e curdo-sírios. Somado a isso, o presidente Erdogan realiza mais uma obra-prima tática, equilibrando-se nos papéis contraditórios de aliado bem-comportado da OTAN e, ao mesmo tempo, dando abrigo seguro aos remanescentes da al-Qaeda em Idlib, sob o olhar vigilante dos militares turcos.

É  significativo o que Trump disse a respeito de Moscou: "Nós dissemos a eles": "Estamos entrando"... e eles disseram "Obrigada por nos avisar". Mas, "eles não sabiam sobre a missão".

Eles decididamente não sabiam. De fato, o Ministro da Defesa da Rússia, por intermédio do porta-voz Major General Igor Konashenkov, disse não ter "qualquer informação confiável sobre militares dos Estados Unidos conduzirem uma operação para "mais uma" eliminação do ex-líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi na parte da zona de desescalada de Idlib controlada pela Turquia.

E quanto ao "nós dissemos a eles" de Trump, o Ministro da Defesa da Rússia foi enfático: "Não sabemos nada sobre qualquer tipo de ajuda ao voo de uma aeronave dos Estados Unidos para o espaço aéreo da zona de desescalada de Idlib no curso dessa operação".

Segundo fontes locais da Síria, o boato que circulava em Idlib era que o "cachorro morto" de Barisha poderia ser Abu Mohammad Salama, o líder do Haras al-Din, um subgrupo de menor importância da al-Qaeda na Síria. O Haras al-Din não se pronunciou a respeito.

De qualquer forma, o ISIS/Daesh já nomeou um sucessor: Abdullah Qardash, também conhecido como Hajji Abdullah al-Afari, também iraquiano e também ex-oficial das forças armadas de Saddam Hussein. Há uma forte probabilidade de que o ISIS/Daesh e a miríade de subgrupos e variantes da al-Qaeda na Síria venham agora a se unir, depois de sua cisão em 2014.

Quem fica com o petróleo?

Não há qualquer explicação plausível para o fato de Abu Bakr al-Baghdadi, durante anos, ter circulado livremente entre a Síria e o Iraque, sempre conseguindo escapar das formidáveis capacidades de vigilância do governo dos Estados Unidos.

Bem, também não há explicação plausível para o famoso comboio de 53 Hi-Luxes Toyota brancos, novos em folha, que cruzaram o deserto da Síria até o Iraque, em 2014, apinhados de jihadistas do ISIS-Daesh que acenavam bandeiras a caminho de capturar Mossul, eles também conseguindo escapar da cornucópia de satélites norte-americanos que cobrem o Oriente Médio 24/7.

E não há como enterrar o memorando vazado da Agência de Inteligência de Defesa (DIA) datado de 2012, explicitamente intitulado "O Ocidente, as monarquias do Golfo e a Turquia", que buscava um "principado salafista" na Síria (sob a oposição, significativamente, da Rússia, China e Irã, os polos principais da integração eurasiana). Isso ocorreu antes da irresistível ascensão do ISIS/ Daesh. O memorando do DIA era inequívoco: "Se a situação se resolver, há a possibilidade de estabelecer um principado salafista, declarado ou não-declarado, no leste da Síria (Hasaka e Der Zor), e é exatamente isso que querem as potências que apóiam a oposição, a fim de isolar o regime sírio, visto como a profundidade estratégica da expansão xiita (Iraque e Irã).

É verdade que o falso califa foi dado por definitivamente morto pelo menos cinco vezes, desde dezembro de 2016. No entanto, o timing, agora, não poderia ser mais conveniente.

Os fatos concretos, depois do último e revolucionário acordo negociado pela Rússia entre os turcos e os curdos sírios, mostram de forma gráfica a lenta mas segura restauração da integridade territorial síria. Não haverá balcanização da Síria. O último bolsão a ser liberto dos jihadistas é Irbil.

E então há a questão do petróleo. O filme "morreu como um cão" literalmente enterra - pelo menos por agora - uma história extremamente embaraçosa, que é o Pentágono empregar tanques pra "proteger" os campos de petróleo da Síria. Isso é tão ilegal, em qualquer interpretação possível do direito internacional, quanto, aliás, a própria presença das tropas dos Estados Unidos na Síria, sem nunca terem sido convidadas pelo governo de Damasco. Comerciantes do Golfo Pérsico me disseram que antes de 2011, a Síria produzia 387 mil barris de petróleo por dia, e vendia 140 mil, o equivalente a 25,1% da receita de Damasco. Hoje, os campos de Omar, de al-Shadadi e de Suwayda, não estariam produzindo mais que sessenta mil barris por dia. Mesmo assim, isso é essencial para Damasco e para o "povo sírio", tão admirado no interior do Beltway - os legítimos proprietários do petróleo.

As Unidades de Proteção Popular (YPG), em sua maioria curdas, de fato assumiram o controle militar de Deir er-Zor quando lutavam contra o ISIS/Daesh. No entanto, a maioria da população local é árabe sunita. Eles nunca irão tolerar qualquer possibilidade de um domínio curdo de longo prazo, e menos ainda simultâneamente a uma ocupação norte-americana.

Mais cedo ou mais tarde o exército sírio chegará lá, com o apoio da força aérea russa. O Estado Profundo talvez concordasse, mas Trump, em um ano eleitoral, jamais se arriscaria a uma guerra quente por causa de uns poucos campos de petróleo ilegalmente ocupados.

Ao final, o filme "morreu como um cão" pode ser interpretado como uma volta triunfal e o desfecho de um arco histórico que já vinha se desfazendo desde 2011. Ao "abandonar" os curdos das Forças Democráticas Sírias, Trump efetivamente enterrou a questão de Rojava - um Curdistão Sírio independente. A Rússia está no comando na Síria, em todas as frentes. A Turquia se livrou de sua paranoia  "terrorista" - sempre tendo que demonizar o PYD dos curdos sírios e seu braço armado, o YPG, como sendo um subproduto dos separatistas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) dentro da Turquia - e isso talvez ajude a solucionar a questão dos refugiados sírios. A Síria está a caminho de recuperar a totalidade de seu território.

O filme "morreu como um cão" também pode ser interpretado como a eliminação de um agente antes útil, que foi um elemento valioso do presente inesgotável, a infindável Guerra Global ao Terror. Outros espantalhos e outros filmes nos aguardam.

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