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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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O futuro de uma ilusão ou como o campismo obliterou o internacionalismo proletário no conflito russo ucraniano

A invasão não trará a paz, mas apenas a retroalimentação de uma guerra de ocupação permanente

(Foto: REUTERS/Mikhail Palinchak)
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Num obra pouco lida e discutida no Brasil (infelizmente), denominada de Questão de método (in Crítica da razão dialética), Sartre troçava de um certo historicismo marxista nada racional, que ele acusava de ser antidialético, já que prejulgava em lugar de analisar. Não por outra razão, Sartre escusava o termo materialismo dialético (que ele via como uma absolutização reificada da dialética), mas defendia o materialismo histórico. Este pequeno texto não é sobre Sartre, então não vou discutir os embates entre a ala fenomenologista existencialista de esquerda versus materialismo dialético, mas começo o texto, que, se em termos de metodologia geral, continuo a me colocar do lado dos materialistas dialéticos; no entanto, com relação a reificação e dogmatização de uma teoria, Sartre tinha sobradas razões.

É o que é reificação de uma teoria? É quando esta teoria se torna uma realidade à parte. Assim como os moinhos diante de Quixote se tornam verdadeiros gigantes, o que vale são os pré juízos da teoria que apenas classificam uma realidade sem fazer a síncrese, a síntese a análise. Há um pré julgamento teórico para o qual a realidade tem que se encaixar, em geral, de forma moralista e maniqueísta, e todo aquele que discordar desta forma de se analisar história tem que ser denunciado como um ímpio e um traidor.

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Esta forma de pré julgamento, apenas pretensamente científica tem dois inconvenientes. O primeiro é que elide fatos. Trabalha sempre por aproximação. Todos aqueles fatos que forem contra a minha conclusão, eu os ignoro, para que meu pré juízo faça sentido, e realço aqueles que são a meu favor. Todos os que os apresentem, basta eu apresentar o argumento, falácia, ad hominem, de serem inimigos da minha causa, para dar, por fim, a meu juízo apodítico, a forma perfeita de um julgamento moral, do qual não cabe dúvida.

O segundo inconveniente é que, quando este tipo de pré juízo moral se torna prática cotidiana, a preguiça de pensar cria imensos guetos de pensamento único que transformam partido em seita. Não há espaço para dúvidas em casos muito complexos, como, por exemplo, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia, e, em lugar de um debate encarniçado sobre desdobramentos de um fato, cujo desenrolar, absolutamente nenhum ser sobre o planeta Terra tem qualquer previsão segura, há uma previsão segura e uma certeza absoluta. 

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Nas seitas dos juízos apodíticos, qualquer dúvida sobre esta certeza tem que ser combatida como uma conspiração de quintas colunas egressos da CIA.

Sartre exemplificava com as posições da esquerda europeia sobre as invasões da URSS sobre a Tchecoslováquia e a Hungria em 68 e 56. Dias após a invasão dos tanques do pacto de Varsóvia, ambos os lados da contenda teórica da esquerda, stalinistas e trotskystas já tinham certeza absoluta sobre os fatos. Para os stalinistas, a URSS estava salvando o mundo da Otan, da contrarrevolução e do capitalismo; do outro lado, trotskystas, peremptoriamente dizia que a burocracia stalisnista, de um país de capitalismo de Estado, afogava em sangue a experiência revolucionária de 2 povos. Sartre apenas perguntava, como poderiam ter tanta certeza, em poucos dias, de fatos, cuja compreensão e análise nos escapam até hoje.

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Os movimentos de 56 e 68 nos ex Estados de socialismo real, mas que não passaram por uma revolução e tiveram regimes pró URSS instituídos a partir da guerra de libertação do exército vermelho, tinha fatores tão complexos que iam desde realmente a tentativa de restauração de formas de mercado nestes países, a movimentos de esquerda dissidentes pró autonomia e participação política, a movimentos de libertação nacional que nutriam um ódio secular à dominação anterior do Império Russo. Nada disto entrava na balança ou era simplesmente considerado, os juízos apodíticos não ligam para os fatos, se os fatos não se encaixam em meus argumentos, danem-se os fatos.

Numa coisa Sartre estava muito correto. Isto nem é dialética! Nunca foi. Marx e Lenin nunca analisaram história assim e nunca elidiram os povos e classes sociais em suas análises.

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O internacionalismo proletário e o princípio das guerras justas e injustas não é um princípio abstrato, amorfo, “dado para sempre”, absoluto. Está ligado, desde o princípio à análise da situação concreta. Não por outra razão, Lênin, tornando-se pequena minoria no movimento social-democrata, em 1914, junto com Rosa Luxemburgo, Liebknetch e outros poucos, denunciou desde o primeiro segundo as guerras nacionais e nacionalistas.

Lênin nunca teve dúvida em que “pátria” defender, na batalha entre um imperialismo dominante (inglês) e um que tentava ascender (alemão). A consigna, baseada na análise da realidade e do caráter de classes era, foi e será, o proletariado não pode apoiar nenhuma guerra em que os trabalhadores se matem em nome dos seus patrões. Paz entre nós, guerra aos senhores. Que as nossas balas sejam destinadas aos nossos generais. Lênin foi caçado como um cão, tachado de espião alemão, sua cabeça estava a prêmio e, se fosse preso durante a guerra, seria executado. Rosa Luxemburgo, sua parceira de primeira hora na luta contra todas as guerras imperialistas, foi executada com um tiro na cabeça. 

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Estas posições deles têm pouco, na verdade, nada que ver, com os juízos apodíticos sobre a invasão (sim, o nome é invasão), da Rússia contra a Ucrânia.

O que a esquerda brasileira passou a utilizar para analisar a realidade é muitas coisas, menos marxismo e menos dialético. O campismo no Brasil se parece muito mais à escola reacionária “histórica” alemã, positivista, que vê o mundo “a partir da geopolítica” e dos aparatos estatais e militares. Escola, que, à primeira vista, parece realista, mas, que, no fundo, é reacionária e positivista.

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Primeiro, porque é positivista, porque a história é feita pelas grandes lideranças, pelos grandes “estadistas” e “grandes generais” que comandam seus exércitos. Os povos, bucha de canhão, são um mero detalhe. Esta paixão, por parte da esquerda brasileira, pelo ex agente da KGB e que hoje faz parte de uma elite que assaltou o Estado russo, Vladimir Putin, tem a mesma raiz positivista. A história é feita pelos grandes líderes. 

Nem Marx, nem Lênin, muito menos Sartre acreditavam nisto. O povo, as classes sociais, os coletivos de pessoas desaparecem e não são importantes. 

 Não à toa, escutei às maiores banalidades serem tratadas com ares científicos nas últimas semanas. “Na análise da história temos que ser pragmáticos” – como se o pragmatismo não fosse dele também uma ideologia e uma superestrutura, e que poderia justificar tudo, até Hitler. “Não há moralismo na análise histórica”. 

Óbvio que não há, mas são vocês, senhores, que escolheram um lado como portador de uma moral supra-histórica, e querem nos convencer que uma guerra de invasão é boa, desde que seja empreendida por um inimigo do meu inimigo. Poderia encher páginas com a coleção de frivolidades apodíticas, que dão uma aparência moral progressista ao pré juízo que existe por trás do apoio a esta guerra, mas sairia e muito do escopo deste artigo.

A análise “geopolítica” é apenas pretensamente científica, porque é, acima de tudo, reacionária. Através dela somem os verdadeiros atores coletivos e tudo fica subsumido a uma disputa entre potências, nas quais devemos tomar lado como numa decisão de copa do mundo. A Real Politik, sem dialética, se transforma no fim da história no qual não há opção possível.

No caso concreto da invasão russa, a primeira coisa a se sacrificar na análise e a historicidade real, dialética (não esta reacionária tomada de empréstimo à escola alemã e salpicada como “geopolítica” marxista). Não, a Ucrânia não é nem uma invenção de Lênin, e nem apenas um acampamento de nazistas. Na análise maniqueísta, há que se tornar o inimigo do meu inimigo um grande Satã a ser aniquilado para que ao juízo apodítico não caiba nenhuma dúvida.

Nenhum marxista vai negar o papel agressor da Otan, muito menos a utilização de grupos pró nazistas ucranianos para estabilização não só da Rússia, mas de outros países. Ninguém vai negar a ilegitimidade da repressão em Donbass, ou a eclosão do sentimento anti-russo por parte do governo ucraniano. Mas, não, a nação ucraniana não é um acampamento de nazistas, o governo eleito, depois de um golpe, do qual podemos questionar a legitimidade, não é composto em sua maioria por elementos do partido nazista, que na verdade sequer conseguiu eleger um deputado para o novo parlamento. As hostilidades russas ucranianas remontam ao grande império russo, às nações que este império subjugou, e sua política de grão chauvinismo russo com relação às nacionalidades. 

Estes problemas não foram resolvidos com a revolução de 1917, muito menos com a guerra civil posterior. Durante a Segunda Guerra Mundial parte da Ucrânia teve um governo colaboracionista pró Hitler, um gigantesco exército de ucranianos lutou junto com os nazistas e houve até oficiais ucranianos que fizeram parte do corpo de estrangeiros da SS. Então, a conclusão, antidialética, que chegam os que analisam a Ucrânia é que ela já era pró nazista antes de Hitler chegar lá, e não que o sentimento pró nazista estava calcado num sentimento, primeiro anti-russo e, depois, anti-soviético, de bases históricas.

Os fatos históricos são substituídos por confusos genes ou DNAs fascistas ad eternum, que não são explicados por fatos históricos, mas por sentimentos que devem estar, a priori, na “alma dos ucranianos”. 

Depois da dissolução da URSS boa parte do revisionismo histórico nazi-fascistas na Ucrânia se alimenta exatamente desta rivalidade com o vizinho poderoso e permanentemente ameaçador ao lado. Os nazistas não tem nenhuma razão, mas se alimentam da ameaça real. Aliás, o nazismo e o fascismo sempre se utilizaram do imaginário do medo para avançar. Ainda assim, não, a maioria da população não votou e nem elegeu um governo pró fascista. Há alas deste governo que sim, são de extrema direita, mas o que verdadeiramente pode causar dano ao mundo e a aventura belicista da Ucrânia tentando abrir suas fronteiras para a OTAN.

Vejam, não escrevi nada ali em cima que seja novidade ou de desconhecimento público, mas, a contrário senso do povo da “geopolítica”, não consigo usar da dialética para apoiar a invasão, muito menos a ocupação da Ucrânia. O princípio das guerras justas e injustas de Lênin não é um princípio vazio. Ele parte do caráter de classe de uma guerra, se é progressista ou reacionário. Uma guerra de libertação popular, de revolução socialista ou revolução democrática contra uma tirania é uma guerra justa. Não é um princípio pacifista burguês, porque parte de que historicamente capitalismo significa guerra, é que só será possível pensar em um mundo sem guerras quando pensarmos em um mundo sem capitalismo.

Vi muita gente da geopolítica xingando quem está contra a invasão de pacifista liberal, o contraditório deste povo, é que citam Lênin só até a página 3. Lênin nunca disse que não era um pacifista, ele é um pacifista revolucionário comunista. O fim de todas as guerras é o fim do capitalismo, ou seja, ao fim, e ao cabo, Lênin é, sim, o maior dos pacifistas. 

Para um socialista, um comunista, um revolucionário, um internacionalista proletário, uma guerra só se justificar se for UMA GUERRA DE LIBERTAÇÃO.

Que a Rússia (que não é um Estado socialista) houvesse apoiado a guerra de independência dos povos separatistas da Ucrânia, seria completamente incensurável para qualquer leninista. Está dentro das obrigações da luta pelo socialismo. Que o país capitalista Rússia invada a Ucrânia, destrua seu exército, derrube seu governo e mantenha indefinidamente um governo pró Moscou lá, não tem nenhum suporte nos princípios tanto das guerras justas, quanto do internacionalismo proletário.

Sim, estes princípios e esta análise foram substituídos por uma outra teoria, NÃO MARXISTA, chamada desde há muito de “geopolítica” (pseudocienticifista) e que passa por cima de toda a história e tradição do marxismo-leninismo.

Todos os argumentos pró-invasão são mais emocionais que “científicos”. Demos nome aos bois. Invasão é invasão, e nenhuma guerra de invasão jamais foi vencida na humanidade. Nenhuma, a não ser que você extermine o povo que antes morava naquele território. Israel até hoje não conseguiu subjugar a Palestina, e nunca conseguirá, será um encrave e um território ocupado, permanentemente, uma ocupação militar mantida a ferro e fogo. Não foram diferentes Vietnã, Iraque e Afeganistão, que foi ocupado pelas duas potências, que acabaram sendo expulsos de lá, tanto a URSS quanto os EUA.

Não há saída para uma “guerra limitada” na Ucrânia, é uma grande mentira que queremos contar para nós mesmos. A única maneira de a Rússia manter o controle da região é deixar permanentemente um exército de ocupação (como os EUA em Kosovo) será um governo tutelado pelos militares (como na Bielo Rússia). Isto tem muito pouco que ver com socialismo, autodeterminação ou emancipação dos povos. Poderemos dourar a pílula se queiram. Não é possível uma vitória parcial, não é possível uma vitória sem ocupação permanente e sem tutela permanente da Ucrânia.

Isto não avança em nada o multilateralismo, reforça as soluções de forças nos conflitos, a ideia da legitimidade da ocupação do mais forte e, num momento em que se criava um consenso entre os povos da Europa e se abria um debate sobre a desnecessidade da OTAN, retroalimenta seu papel como uma “aliança defensiva”. Se a ideia era fazer a Otan recuar, o contingente e o investimento militar nas ex repúblicas do socialismo real, como Hungria e Polônia só aumentará nos próximos anos.

Parece um jogo de cartas marcadas, todos aqueles que consigam uma “vitória espetacular” da Rússia, omitem o fato de os EUA jubilosamente reconhecer que não pode ajudar um país “não membro da OTAN”, enquanto dobra ou triplica sua presença nos outros países circunvizinhos. Se antes da guerra os EUA era o único vilão, depois da guerra, passa a ser visto com simpatia por húngaros, poloneses, tchecos, etc. Se isto não é um gol contra, as análises devem estar sendo feitas evitando todas as contradições.

No calor da luta, no qual, 99% da esquerda brasileira decidiu vestir uma camisa de urso e fingir que Putin é Stálin, combatendo o avanço de Hitler pelo mundo, é quase impossível que se analisem as contradições. Guerra de invasão é guerra de invasão, e não há justificativa para ela nos princípios socialistas e comunistas.

Cabe alertar para o futuro de uma ilusão. A guerra começou há poucos dias, mas não será breve. Os resultados futuros dela estão condicionados à derrubada de um governo, que se, legítimo ou não, cabe ao próprio povo ucraniano optar e decidir (e não ao governo do país vizinho). Ela gerou um sentimento anti-russo na Ucrânia, que foi durante mais de um século uma nação sem Estado (assim como são os curdos, os bascos, os irlandeses, os palestinos) que perdurará durante décadas e décadas. 

Toda guerra de invasão é muito fácil de se vencer na sua primeira fase (invasão) e absolutamente impossível de se vencer numa segunda fase (ocupação). Uma ocupação permanente russa gerará permanentemente uma legítima guerra de auto-determinação ucraniana, que, por sua vez, sempre será gestada exatamente contra os russos. 

A invasão não trará a paz, mas apenas a retroalimentação de uma guerra de ocupação permanente.

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