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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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O Futuro do Multilateralismo: Da Ásia ao BRICS

O avanço do multilateralismo asiático e o protagonismo do BRICS redesenham a ordem global, desafiando sanções, tarifas e hegemonias

O Futuro do Multilateralismo: Da Ásia ao BRICS (Foto: CGTN)

As reuniões recentes da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) e da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC, na sigla em inglês), realizadas na Coreia do Sul, reacenderam um debate essencial para o nosso tempo: por que o multilateralismo ainda importa? O economista Jayant Menon, em artigo intitulado “Why multilateralism matters for the Asia-Pacific region”, publicado no China Daily em 31 de outubro de 2025, lembrou que as preocupações que inauguraram a APEC em 1989 — protecionismo, nacionalismo e disputas comerciais entre as grandes potências — voltam a assombrar o mundo.

O que mudou é o cenário: a globalização está em refluxo, a inteligência artificial altera as cadeias produtivas e a crise climática exige novas formas de cooperação internacional. Menon observa, com razão, que as instituições multilaterais asiáticas — ASEAN, APEC, Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP) e Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP) — funcionam como um antídoto à fragmentação.

Mas o raciocínio pode e deve ser ampliado. O multilateralismo asiático não é apenas um modelo regional; é o novo eixo de um mundo que procura escapar da lógica imperial das sanções, das tarifas e das guerras comerciais. E é aqui que entra o papel histórico do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Do Pacífico ao Sul Global

A região Ásia-Pacífico abriga o que Menon chama de “multilateralismo construtivo”: mecanismos que, mesmo sem integração política, criam regras compartilhadas e ampliam o comércio. O Acordo de Parceria Econômica Regional (RCEP), liderado pela China e pelos países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), já é o maior pacto comercial do planeta englobando 15 países. Sua lógica é a da abertura mútua e da convergência regulatória — exatamente o oposto da política de cercamento que hoje marca a estratégia dos Estados Unidos.

O BRICS, por sua vez, ampliou esse espírito para uma escala global. A adesão recente de países como Egito, Arábia Saudita, Etiópia e Indonésia — o chamado BRICS+ — consolidou o grupo como o núcleo articulador do Sul Global. 

Se na Ásia a integração se faz por cadeias produtivas, nos BRICS ela se expressa em cadeias financeiras, tecnológicas e ambientais, buscando alternativas concretas à hegemonia do dólar, ao controle das patentes e à desigualdade climática.

Enquanto Menon defende o multilateralismo como salvaguarda do livre comércio, o BRICS o redefine como instrumento de soberania compartilhada. Não se trata de preservar o sistema criado após Bretton Woods (1944), mas de reconstruí-lo sobre bases mais equitativas.

O retorno do império

A ironia é que os Estados Unidos — um dos fundadores do sistema multilateral — tornaram-se, sob Donald Trump, seus maiores sabotadores. A retomada do poder por Trump em 2025 marca uma ruptura ainda mais profunda com o multilateralismo. O novo “tarifaço” contra China, Brasil e Canadá, o boicote às reformas da Organização Mundial do Comércio (OMC) e a retirada de fundos de organismos climáticos revelam um país que voltou a enxergar o comércio e a cooperação como armas geopolíticas.

A política de Trump é a institucionalização do unilateralismo punitivo. Em vez de reconhecer que as cadeias de valor são globais, ele busca fragmentá-las; em vez de investir na transição verde, aposta em tarifas e sanções; em vez de reconstruir a confiança internacional, multiplica ameaças. Menon lembra que, em 1989, o temor era uma guerra comercial entre Estados Unidos e Japão. Hoje, o risco é mais amplo: uma guerra sistêmica entre o império e o mundo multipolar que emerge.

A nova gramática do multilateralismo

O desafio atual é reinventar o multilateralismo — não apenas defendê-lo. A China, ao propor a Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative — BRI) e a Iniciativa de Desenvolvimento Global (Global Development Initiative — GDI), oferece um caminho prático para reconstruir a conectividade, reduzir custos de comércio e integrar cadeias produtivas de maneira sustentável.

O BRICS, com o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e sua agenda de moedas locais, traduz essa visão em instrumentos financeiros concretos. O “novo multilateralismo” é, portanto, policêntrico e solidário. Não se baseia em zonas de influência, mas em convergências funcionais: energia limpa, infraestrutura digital, combate à pobreza, ciência aberta.

A cooperação entre China e ASEAN para harmonizar regras de origem no comércio é um exemplo disso; a criação de fundos climáticos pelos países do BRICS é outro. Ambos sinalizam que a globalização pode sobreviver — desde que se torne mais justa e inclusiva.

De Bandung a Belém

Setenta anos depois da Conferência de Bandung (1955) — realizada na Indonésia, reunindo líderes de 29 países recém-independentes da Ásia e da África para afirmar a autonomia do chamado Terceiro Mundo diante das potências coloniais e da Guerra Fria —, o espírito de solidariedade entre as nações do Sul ressurge com nova força., 

 Se Bandung foi o grito da descolonização política, o BRICS+ é o movimento da descolonização econômica. O multilateralismo, como lembra Menon, é essencial para evitar a fragmentação. Mas é também o instrumento que pode libertar o mundo do domínio financeiro, tecnológico e narrativo das antigas potências.

O caminho até Belém, onde ocorrerá a COP 30 (30ª Conferência das Partes da UNFCCC) de 10 a 21 de novembro de 2025, passa por esse realinhamento. A agenda ambiental, que o multilateralismo liberal não conseguiu cumprir, pode ser retomada sob a liderança do Sul. A integração de infraestrutura, tecnologia e finanças verdes pode transformar a Ásia-Pacífico e a América do Sul nos dois polos complementares da nova economia global.

Reconstruir, não preservar

O multilateralismo que sobreviveu à Guerra Fria não basta para enfrentar os desafios do século XXI. É preciso reinventá-lo — e é isso que a Ásia e o BRICS estão fazendo. O primeiro produz as regras; o segundo, a nova legitimidade. Juntos, eles podem conter o retrocesso imposto por Trump e pela direita global, oferecendo ao mundo uma alternativa baseada não na força, mas na interdependência.

O século XXI será decidido não por quem impõe tarifas, mas por quem constrói pontes. E essa ponte, cada vez mais, tem pilares em Xangai, Brasília, Jacarta e Pretória.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.