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Moisés Mendes

Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre.

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O guri que desafiou o fascista

“Rapper de 18 anos incomoda Javier Milei por tentar levar 20 mil jovens ao prédio em que a ditadura torturava e matava”, escreve o colunista Moisés Mendes

Rapper Milo J (Foto: Reprodução/Twitter)

Dessas coisas que só acontecem na Argentina. Tem 18 anos e milhões de seguidores nas redes sociais o mais recente inimigo do fascista Javier Milei. Mas não é um influencer, é o rapper Milo J.

Desde a tarde de quarta-feira, Milo J não sai das capas dos jornais de esquerda e de direita. É o cantor que virou personagem político, por ter sido censurado descaradamente pelo governo.

Milo J iria lançar um álbum em show no Museu Sítio da Memória da antiga Esma, a Escola de Mecânica da Armada, onde os militares argentinos torturavam e matavam durante a ditadura. Seria na noite de quarta.

Milei foi à Justiça e impediu o show. Mas já estavam no entorno da Esma mais de 20 mil adolescentes. A Justiça determinou que eles fossem embora, com a desculpa, usada pelo governo, de que o lugar não se prestava para esse tipo de evento e não havia como dar segurança a tanta gente.

Com a serenidade de um astro maduro, Milo J gravou um vídeo pedindo aos fãs que não enfrentassem a polícia e voltassem para suas casas. 

E foi parar nas manchetes dos jornais Página 12, El Destape, Clarín e La Nación. Porque Milei não estava apenas censurando um artista ativista, mas um guri politizado que compõe e canta desde os 11 anos e virou o maior fenômeno pop recente na Argentina.

Um artista que os jornais apresentam como gênio, por ser um poeta que fala do seu lugar, Morón, no entorno de Buenos Aires, afetos e desamores e, o que incomoda a extrema direita, faz também ativismo pelos direitos humanos. E ainda é amigo das mães e das avós da Praça de Maio.

Milo J nasceu numa família de classe média, chama-se Camilo Joaquín Villaruel e já fez referências diretas a um slogan caro à resistência argentina, o “memória, verdade e justiça”. E deixa claro que é um artista antifascista. 

Em resposta à censura ao show, disse logo depois de ser impedido de cantar, num recado direto a Milei: “Suponho que ao governo de agora não agrade ver 20 mil pessoas juntas em um espaço de memória”.

A esquerda está em êxtase. Porque Milei entra em confronto com um ídolo jovem, a censura expõe a exacerbação do fascismo e o duelo virou manchetes que podem durar vários dias, com repercussão nas redes sociais e apoio de Charly García.

Milo J mexeu com os adoradores da ditadura. A antiga Esma é o edifício do terror, por onde pode ter passado a maioria dos presos que um dia seriam assassinados. Milei não quer ver um guri com engajamento político usando o espaço que atiça nos jovens a memória dos crimes dos generais.

Para as esquerdas, em meio à crise do peronismo kirchnerista, Milo J é uma arma rara, num país em que, ao contrário do que aconteceu com o bolsonarismo no Brasil, os jovens deram suporte à ascensão de Milei. 

Milo J não é um ativista que compõe e canta, mas um rapper que mistura gêneros musicais e recupera sons do passado para falar da sua vida de suburbano. E assim ser também uma força assumidamente política, ou não teria peitado Milei ao falar de memória.

A arte pode estar fazendo pela política o que os políticos não conseguem fazer pela democracia na Argentina. Milei também tem brigado nas redes sociais com duas cantoras celebridades, Lali Espósito e María Becerra, que atacam o governo. 

Um detalhe sobre os prepostos de Milei que deram encaminhamento ao pedido de censura ao show do rapper. A iniciativa foi formalizada pelo secretário de Direitos Humanos, Alberto Baños, e pelo ministro da Justiça, Mariano Cúneo Libarona. 

Baños disse que impediu o evento porque “ninguém tem o privilégio de realizar este tipo de ato político à margem da lei". O governo não escondeu o abalo. O show não saiu, mas a turma de Milo J está vencendo a guerra na internet.

Dá uma certa inveja da vitalidade dos artistas argentinos, que não encontram equivalência no Brasil, não pelo menos no momento e no mesmo tom. Por que os artistas brasileiros deixaram de incomodar a extrema direita?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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