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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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O Imperador do mundo e Senhor da guerra mira o coração da América do Sul

Depois do bloqueio à Venezuela, a Doutrina Trump avança para transformar a Amazônia no novo palco de sua guerra híbrida

O presidente dos EUA, Donald Trump, no avião presidencial a caminho do Japão - 27/10/2025 (Foto: REUTERS/Evelyn Hockstein)

O novo mapa da guerra

O cerco à Venezuela deixou de ser apenas um episódio de confronto diplomático. É o esboço de uma estratégia mais ampla que mira o coração da América do Sul. Sob o pretexto de combater “narcoterroristas”, a Doutrina Trump reativa o velho princípio da Doutrina Monroe — “América para os americanos”(do Norte) — e o traduz em linguagem de guerra preventiva.

O alvo imediato é Caracas, mas a mira já se desloca para a floresta amazônica e para o subsolo brasileiro, onde repousam reservas estratégicas de petróleo, gás e minerais raros. O que parece uma ofensiva pontual é, na verdade, a fase preparatória de uma reconfiguração geopolítica que recoloca os Estados Unidos como árbitro militar e moral do continente.

Como advertiu o economista Jeffrey Sachs, “a retórica muda — de ‘democracia’ para ‘narcoterrorismo’ —, mas o objetivo permanece: controlar os recursos e as rotas estratégicas”. A lógica da “mudança de regime” que devastou o Oriente Médio reaparece agora com sotaque tropical.

Da Venezuela ao Brasil

Com o deslocamento do porta-aviões USS Gerald Ford e a multiplicação de sanções, Trump ensaia o que especialistas como Castro Rocha e Richard Wolff já chamam de “Vietnã latino” — um conflito sustentado por propaganda, bloqueios financeiros, operações especiais e ameaças de invasão.

O Brasil, sob o governo Lula, tornou-se peça central desse tabuleiro. Washington testa os limites da diplomacia brasileira e a consistência de sua política externa soberana. O discurso sobre “segurança hemisférica” funciona como disfarce para conter a aproximação entre o Brasil de Lula e os BRICS+ e preservar o controle ocidental sobre cadeias críticas de energia e tecnologia.

Nos bastidores, fala-se em “cooperação amazônica” com fins ambientais — mas o subtexto é militar. A “proteção da floresta” converte-se, aos poucos, em proteção do capital, e o verde da Amazônia passa a ser visto como ativo geopolítico, não como bem planetário. Coincidência ou não, o fato é que Trump recusou o convite de Lula para participar da COP30, que se realizou no meio da Amazônia, em Belém do Pará.

O império que nunca dorme

Jeffrey Sachs, professor da Columbia University e ex-assessor especial da ONU, descreve o que chama de “padrão fixo da política externa norte-americana”: sempre que um governo independente busca caminhos próprios, o império reage. O rótulo muda conforme a década — “anticomunismo”, “guerra às drogas”, “combate ao terrorismo", agora, "narcoterrorismo" —, mas o método é idêntico: sanções econômicas, sabotagem financeira, apoio a elites financeiras e à extrema-direita locais e, quando decidem ser necessário, golpes de Estado.

Sachs recorda o roteiro de setenta anos de intervenções dos EUA: Irã (1953), Guatemala (1954), Chile (1973), Nicarágua, Haiti, Honduras, Paraguai, Bolívia, Venezuela — sempre sob o pretexto da “liberdade”. Cada caso significou a substituição da soberania por submissão econômica. 

No caso do Brasil em 1964 — que instalou a ditadura que durou 21 anos de sangue, muito sangue, tortura e morte — não houve invasão militar. Mas os EUA estavam preparados com navios de guerra ancorados nas costas brasileiras para — se houvesse resistência — invadir o Brasil: a famosa Operação "Brother Sam."

Na Venezuela, diz Sachs, o manual foi aplicado à risca: sanções, bloqueios, apoio a “governos interinos”, congelamento de ativos, sabotagem energética. “As sanções não derrubam ditaduras”, afirma. "Mas, destroem sociedades civis e preparam o terreno para o caos.” É a política de asfixia moral que mata silenciosamente — o mesmo roteiro usado no Iraque e na Líbia, agora dentro do hemisfério ocidental.

“A derrubada de Dilma, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro foram lidas em Washington como vitória estratégica”

O Brasil aparece, com destaque, no radar desse império. Sachs lembra que, desde 2016, o país vive uma disputa entre soberania e subordinação. “A derrubada de Dilma, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro foram lidas em Washington como vitória estratégica”, observa. O retorno de Lula, em 2023, e sua política de aproximação com o Sul global reacenderam o alarme nos círculos de poder norte-americanos. O risco atual é a reedição do mesmo manual, agora travestido de ‘guerra ao narcoterrorismo’ e ‘proteção da Amazônia’ — o velho intervencionismo disfarçado de ecologia.

O professor Jeffrey Sachs alerta também para os golpes invisíveis, conduzidos por algoritmos, agências de rating e redes digitais. “O que a CIA fez com rádios e jornais nos anos 1960, hoje se faz com plataformas digitais e inteligência artificial.” É o império de 24 horas — sem tanques, mas com dados e sanções; sem invasão, mas com chantagem financeira.

Sachs lança um apelo que ecoa o discurso de Lula: “Os países do Sul precisam agir de forma coordenada, integrar suas estratégias, para escapar do ciclo de dependência. Se não criarmos um sistema alternativo, viveremos eternamente sob a ilusão da democracia enquanto obedecemos a um império que jamais dorme.”

A resposta de Lula

Em discursos recentes — da ONU às reuniões da CELAC e à COP30 —, Lula alertou para o risco de “abrir brechas a intervenções externas” ao adotar o enquadramento do “narcoterrorismo” em legislações nacionais. Sua advertência é direta: a guerra sem fronteiras dos EUA ameaça transformar o combate ao crime em justificativa para ocupações disfarçadas.

A estratégia de Lula é fortalecer o eixo sul-americano — Colômbia, Bolívia, Guiana, Suriname — e reativar a UNASUL como muralha diplomática. Mas o tempo corre. Enquanto o discurso da “liberdade” serve de cobertura para o avanço militar, a Amazônia pode se tornar a nova Síria verde do século XXI.

O jogo sujo para impedir a reeleição de Lula em 2026

Enquanto o porta-aviões e outros 12 doze navios de guerra norte-americanos navegam pelo Caribe e as sanções contra Caracas apertam o nó em torno da Venezuela, Trump prepara o cerco político ao Brasil. O objetivo, que circula na cabeça coroada do dublê de imperador e senhor da guerra é o de impedir a reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2026 e reinstalar, em Brasília, um “brother” dócil — alguém disposto a repetir o papel submisso que Jair Bolsonaro desempenhou entre 2019 e 2022.

Trump enxerga o Brasil não como parceiro comercial, mas como peça de controle estratégico sobre toda a América do Sul. Um governo não aliado em Brasília significa o enfraquecimento da integração latino-americana, o afastamento do BRICS+ e o retorno do país à condição de vassalo nas cadeias globais de energia e tecnologia. A disputa eleitoral brasileira, portanto, ultrapassa o plano doméstico e torna-se uma questão de segurança nacional para o império. Uma questão geopolítica.

“Combater o comunismo” e “salvar a Amazônia dos chineses”

Fontes diplomáticas e analistas convergem num mesmo ponto. A campanha de 2026, que já começou e aponta para a reeleição de Lula, já é alvo de interferência estrangeira — digital, econômica e simbólica. As armas já conhecidas — fake news, manipulação religiosa e cooptação midiática — são reeditadas em escala industrial. As empresas de tecnologia, os think tanks de ultradireita e as fundações que financiaram o bolsonarismo são reativados sob nova embalagem, prometendo “combater o comunismo ateu” e “salvar a Amazônia dos chineses”.

Trump usará a América do Sul como vitrine e moeda de troca. Sua narrativa é simples e brutal: “um novo eixo do mal” estaria se formando entre Caracas, Brasília, Pequim e Moscou — e a missão dos Estados Unidos seria salvar o hemisfério. Esse enredo, travestido de defesa da liberdade, é o combustível para desestabilizar governos e legitimar ações.

No Brasil, a tentativa de reconstruir um bolsonarismo reciclado — religioso, digital e armado — será o braço local dessa ofensiva. Como alertou o filósofo Jason Stanley, “os autoritários não voltam iguais: voltam aprimorados, com novas tecnologias e velhos ressentimentos”. Trump sabe disso. E aposta que, se não puder derrubar Lula pelas urnas, o caos interno pode fazer o serviço.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.