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O jogo da democracia interrompida

A agenda do século XXI só pode ser verdadeiramente colocada em marcha pelas forças de uma esquerda ampla, não sectária, realista e progressista. Se o passado é, ainda, um espaço de disputa, o futuro é campo aberto aos desafios daqueles que se põem a agir no presente

A agenda do século XXI só pode ser verdadeiramente colocada em marcha pelas forças de uma esquerda ampla, não sectária, realista e progressista. Se o passado é, ainda, um espaço de disputa, o futuro é campo aberto aos desafios daqueles que se põem a agir no presente (Foto: Luiz Cláudio Machado dos Santos)
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O atual quadro de grave tensionamento e profunda incerteza da vida nacional tem levado a reflexões acerca da democracia brasileira que, não tratando da sua sazonalidade constitutiva, pretende compreendê-la a partir de rigor eminentemente formal e esquemático, empobrecendo o debate e transformando o rico e dinâmico jogo das trocas sociais em mero conceito disfuncional, distante da realidade objetiva das coisas.

A primeira questão a pontuar refere-se ao fato de que, ao contrário do que muitos acreditam, a democracia não é construída a partir de uma linearidade positiva no tempo histórico. Ou seja, ela não se fortalece necessariamente com o tempo, não se aperfeiçoa obrigatoriamente pela prática constante de suas rotinas e suas dinâmicas. Se esse conceito de progresso, filho dileto do Iluminismo, nossa grande aventura humanista, vinculasse as relações na polis, sairíamos, no longo percurso da vida ocidental, da selvageria para viver, hoje, em um mundo de racionalidade, civilização e convivência harmônica com o outro. Definitivamente, não é esse o solo que pisamos!

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A historicidade das relações de poder nos mostra que a organização da democracia é tarefa falhada, intermitente e sem qualquer garantia de sucesso no horizonte que se pode perscrutar. Tal como a vida, a democracia não carrega em si nenhum sentido de devir, mas assume como destino o sentido que lhe dermos.

Portanto, para uma mais adequada avaliação de nossa presente condição cidadã, é preciso compreender a democracia representativa como algo efetivamente menor que nossa idealização, artesanato dos homens, experiência precária, vivência tumultuada, coisa interrompida.

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A condição e oportunidade, (como, quando, porque) da interrupção da democracia determina, com clareza meridiana, os reais limites da ação das forças populares nos quadros do jogo democrático consentido. Ação que, avançando a linha do que é aceitável/suportável, efetivamente, pelo controle nuclear sistêmico, passa a sofrer ataques organizados e distribuídos no tempo e espaço pelas entidades que compõem as forças da ordem, para, no organograma do golpe, difamar, desconstituir, desmoralizar, torturar e condenar pessoas, partidos, organizações sociais, projetos e concepções de mundo.

A democracia burguesa moldada nos cânones do ocidente afluente, mais que adjetivação, valor substantivo estrutural e filiação inequívoca, sinaliza permanentemente as fronteiras interditadas ao livre trânsito da cidadania.

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No centro do sistema global, uma população permanentemente saciada e hipnotizada pela escolha e posse de uma miríade de bens que desfilam diante de seus olhos, só muito raramente questiona os limites do jogo político, contentando-se em manifestar seu inconformismo quanto a pautas que lhe atingem diretamente enquanto indivíduo, sem, no entanto, transpor os sulcos do sagrado território da democracia representativa estruturada/imposta pelos vencedores da Segunda Grande Guerra.

Na periferia, contudo, onde a decrepitude chega antes da maturidade, a democracia interrompida é uma modalidade de (re)legitimação das estruturas conservadoras, que permanentemente se reinicia sem que se chegue ao proclamado objetivo final do jogo: o poder como expressão direta dos interesses do povo, portanto, a serviço da maioria. A cada interrupção, a pressão social é inicialmente dissipada e são desorganizados/perseguidos os agentes da "subversão", de forma a embaralhar as cartas e reescrever as regras do certame.

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É da natureza e, condição funcional essencial, que a cada interrupção se estabeleça um longo tempo de discussão e organização do próximo período que se encerrará quando novos desafios forem lançados contra os limites ciosamente guardados pelas forças sistêmicas.

A mais recente interrupção, inaugurada com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, teve como característica marcante um longo período de obstrução e desgaste do poder legitimamente constituído (pelo menos desde de 2005) dado o caráter popular dos governos petistas. Algo semelhante, guardadas as devidas proporções, ao processo sofrido pelos governos JK e Jango que, de alguma forma, reivindicaram a representação dos interesses das massas trabalhadoras.

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Deve-se ressaltar que, em cada momento histórico, a interrupção aprofunda as contradições em todas as instâncias produzindo esgarçamento e anomia do tecido social. Assim, a reorganização da sociedade civil torna-se mais lenta, precária e inconstante. As interrupções se apresentam, não raro, como cirúrgicas, mas são de sua natureza, o corte profundo e largo, seguindo-se longa convalescência do organismo violentado por ação arbitrariamente invasiva.

Portanto, é de se esperar que a superação da atual intervenção, com seu cortejo obscurantista de horrores, desmonte da economia, venda do patrimônio nacional, descaso com a educação básica, subfinanciamento da saúde, sucateamento das universidades, abandono do fomento à ciência e tecnologia, discriminação, exclusão e preconceito, com a odiosa polarização dos espíritos diuturnamente insuflada pelas mídias sistêmicas, venha a consumir vários anos, exigindo a permanência da luta pela liberdade, condição indispensável à dignidade humana.

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Além de outros elementos que confirmam a grave especificidade da crise em curso e sua permanência por um tempo mais longo do que inicialmente se podia prever, é fato inquietante e de consequências ainda imprevisíveis o recorrente apelo ao sentimento cristão militante como forma de resguardar os "valores fundamentais da sociedade ocidental", como desde sempre ameaçados, e no centro da ameaça, a família, instituição sagrada e mítica, contra a degradação moral de uma modernidade torta, depravada e que embaralha e anuvia o sentido da própria existência. Ontem, Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade; hoje, a infiltração institucional do fundamentalismo, principalmente neopentecostal, a vigiar e censurar. Antes, a instituição Igreja Católica, colocava o seu rebanho em marcha e guardava para negociação o trunfo do seu sucesso; hoje, as diversas igrejas reformadas, colocam em marcha suas lideranças nos diversos espaços do poder, para negociar, por dentro das instituições, seus interesses e desejos. O que era claramente perceptível, como posição da Igreja Católica, ao colocar suas cartas na mesa como mais um ente do establishment, transformou-se em "uma luta de posições" no interior das diversas instâncias do Estado e das mídias sistêmicas, no sentido de "tomar" os setores mais sensíveis e adestra-los para a verdadeira Cruzada, que dizem eles, pasmem, ainda não começou.

À atuação dos governos petistas que privilegiaram uma estratégia de acesso amplo ao mercado de consumo, esses grupos respondem com o desejo expresso de ditar os passos da educação e da cultura, bem como criar um ambiente onde decisões judiciais, claramente inconstitucionais, tenham publicidade e sejam, no debate público, valorizadas e assumidas por uma sociedade pouco informada como urgentemente necessárias. As últimas decisões de juízes evangélicos e/ou conservadores, censurando ações educativas ou obras de arte, não se destinam, verdadeiramente, aos tribunais, mas antes à inoculação social do vírus obscurantista, na medida em que geram polêmica e debate superficial na mídia hegemônica e, constituem decisões de autoridades constituídas, o que, no imaginário popular retira seu caráter de absurdo, pois emanam de um poder "imune à contaminação política" e, portanto, "isento" nas suas decisões.

Estamos, de novo, diante do abismo, o abismo que parece ser nosso destino, com a cor, o sentido e o espanto do tempo imediato e a dolorosa constatação de uma geografia repetida, dolorosamente conhecida, um deserto do qual não se escapa.

Para as esquerdas e as forças progressistas mais do que uma candidatura, se impõe um projeto.

Um projeto que compreenda a especificidade do modus operandi da interrupção golpista; que recuse as balizas da ação política consentida e imposta pela força da assimetria de classes; que assuma a reconstrução e ampliação das organizações sociais de base popular; que horizontalize a disputa política nas instituições e em todas as instâncias pulsantes da sociedade; que tome para si o enfrentamento à xenofobia e ao preconceito desumanizador das vidas das mulheres, negros, índios, lgbts; que articule e fortaleça a tessitura de uma rede de comunicações nas mídias sociais como espaço de resistência a toda sorte de opressão; que convoque, diante do impasse sem precedente que vivemos, uma Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, com intervenção ampla e direta dos cidadãos, como forma de romper as regras cerceadoras da liberdade impostas pelos pressupostos lógicos do funcionamento da democracia interrompida.

Condição primeira, estrutural e estruturante, a Assembleia Nacional Constituinte se impõe como caminho de múltiplas possibilidades para o empoderamento popular. Enganam-se, tragicamente, os que imaginam poder governar sem uma refundação da República. O monstro, acordado em 2013, está solto nas ruas. Nas condições atuais, a radicalização e o ódio tornaram impraticável o exercício diário da governabilidade. Só a construção popular de uma nova ordem constitucional será capaz de opor obstáculo efetivo ao golpismo, ao fascismo, a ditadura.

A agenda do século XXI só pode ser verdadeiramente colocada em marcha pelas forças de uma esquerda ampla, não sectária, realista e progressista. Se o passado é, ainda, um espaço de disputa, o futuro é campo aberto aos desafios daqueles que se põem a agir no presente.

Que a democracia, finalmente organizada e vivenciada como casa de todos, não mais se interrompa, mantendo generosamente as portas abertas, permanentemente, para a realização plena do instante de humanidade que habita em cada um de nós.

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