O julgamento
A esquerda viu no Julgamento a derrota do autoritarismo, sempre um naco velho e ultrapassado a se defenestrar. Já a direita viu a derrota do próprio Direito
Em entrevista no dia do voto-testamento, de Fux, 10/9/25, expliquei questões jurídicas para o jornal O Globo, com o repórter Caio Sartori. Foi uma conversa leve, com obviedades espontaneamente surgidas, um destino infalível. O voto e seu votador foram infalíveis, e nada paradoxais, uma pena. Mas Alexandre de Moraes também não inovou. Assim, como situar, aí, estranhezas, sempre interessantes?
O escritor Samuel Johnson, no século XVIII, que demonstrou a canalhice do patriotismo, com a famosa frase que liga este àquela, seria hoje odiado por patriotistas brasilentos. Odiar é fácil, não exige fundamento sofisticado. E a polarização é ingênua, famélica mesmo, pensa com o fígado. Não contempla, não medita, não raciocina, mas, principalmente, não aprende. Ressuscite-se Ruy Barbosa e o orgulhoso estudante de Direito, ou de Medicina, tanto faz, enxarcados de certezas matemáticas, saberão mais Direito do que ele. Clovis Bevilaqua, famoso jurista, chamado de “colega” por um recém-formado devolveu irônico – eu não sabia que o senhor também era dentista! Pois é, a felicidade e a tragédia estão à disposição no mundo.
Mas e o Julgamento? Ah, ele já era. Agora é pretexto para delírios e espumas que, isto sim, valem a vida. Muito melhor que os mais de 20 conceitos científicos de Direito Penal, cabíveis no caso, que se autoexibem vaidosamente abaixo. Como Feyerabend (Adeus à Razão) diria: “A abordagem teórica é convencida, ignorante, superficial, incompleta e desonesta.”
Praticamente toda a classe média hoje, no Brasil, é bolsosseguidora. Ainda que muitos jurem que não o sejam. Só rindo. Praticamente tudo que se ouviu contra o Julgamento, de abanadores gaúchos de celular sobre a cabeça, invocando extraterrestres salvadores da pátria, passando por quem acredita que o atual presidente já morreu e o que governa é sósia, até governadores sanguessugas de momento, é pelo motor da crença, da fé, essa mágica mística que alegra a tantos.
A esquerda viu no Julgamento a derrota do autoritarismo, sempre um naco velho e ultrapassado a se defenestrar. Já a direita viu a derrota do próprio Direito, afinal se são 213 milhões de brasileiros técnicos de futebol, agora são de juristas também. Sapientíssimos. Mas aí são duas farinhas e dois sacos diferentes. Alguém está bem mais certo, e alguém bem mais errado.
Radicalizações, extremismos e outros identitarismos inflamados só conseguem gerar exageros, não conhecimento. O Direito Penal continua difícil, como se mostra abaixo. Também, telecomentaristas de TV, ou de implorações, do tipo “Não esquece de dar aquele joinha, compartilhar nas suas redes sociais e se inscrever no canal”, quererem que o Julgamento tenha sido tão e somente um fenômeno da política, e nada mais. É um reducionismo malandro, mas obviamente equivocado. Quando a turba imagina que xandões possam ser, ao mesmo tempo, vítima, investigador, acusador e juiz, é o triunfo da tolice mancomunada. Noções assim se tornam traços culturais reverberadores, não só pela ausência de inteligência singular ou um mínimo de pensamento sistêmico, mas, sobretudo, pela falta de identificação sobre o que é e o que não é conhecimento.
Lados ideológicos são legítimos. Direita e esquerda são sentimentos, ou visões de mundo. Bobbio (Direita e Esquerda) na mesma página que relativiza Sartre, sobre direita e esquerda serem duas caixas vazias, mostra que o “pensar por díades” existe da sociologia à economia, do direito à estética, da filosofia à política. Ainda que só o pensamento diário seja simplório.
O Julgamento não podia ser diferente do cipoal de provas, atos processuais válidos e necessários que foi. No Júri, por exemplo, advogados, vez em quando saem, isso mesmo, retiram-se do plenário, quando tecnicamente a Defesa é violada, gerando um colapso processual. Numa não de toda proibida comparação, no Julgamento nenhuma defesa se insurgiu assim.
Há quem diga, com ares triunfalistas, frases demolidoras. Que o processo foi um festival de ilegalidades. Um mar de arbítrios. Um arremedo de julgamento. Todas as cartas ali estavam marcadas. Frases são sempre fáceis. Mas xingar não torna o xingado o que se xingou. É um misto de futurologia blasé, adivinhação mágica e obviedade. E tudo sempre sem fundamento. É a vegetação de palavras, vazias, parafraseando Baudrillard (O Sistema dos Objetos) com sua vegetação de objetos.
O Julgamento envolveu “coisas” difíceis do Direito Penal, como abordei noutro artigo*. Assim, tentativa acabada e inacabada; autoria mediata; solução conjunta e solução individual; autoria de escritório e realização do tipo pelo homem de trás, em simetria ou não com o instrumento; suficiência para o início da realização do tipo; o tipo, de atentado; decisão e início da execução em tipo de atentado; consumação em crime formal; tentativa principalizada e não secundarizada, em delitos de atentado; ausência de “espera inútil” e “ação distante”, atraindo a realização do tipo; ação típica como começo de tentativa como comportamento; plano concreto do autor para se distinguir preparação de execução; consumação na tentativa legiferada; início da prática de ato próprio correspondente à realização de parte do tipo; lesividade ou periclitação do bem público “paz pública”; participação de participação; violência que não consta como elementar do delito, mas como elemento objetivo dele; instigação ideológica à violência como violência; suficiência probatória à configuração jurídica punível; instigação a levante criminoso multitudinário; ausência no tipo de atos preparatórios como compositivos da consumação; “multidão delinquente”, forma sui generis de concurso de pessoas, que não exige individualização da participação, conforme sábia lição de, ora ora, ninguém menos que o professor Cezar Bitencourt (Tratado..., vol. 1), ilustre advogado do réu Cid, dentre outros tantos institutos complexos.
Dos advogados, o único vitorioso parece ter sido Bitencourt, do condenado Mauro Cid. E sobre o 8/1/23 o advogado ainda lacrou, depois: “vândalos e asseclas irracionais de Jair Bolsonaro”. Mas não foi por isso que se deu bem, ele apenas não quis remar contra a corrente, ainda que seu cliente tenha sido seriamente afetado, por óbvio, por uma série de consequências.
Se há um correto agora, é o país virar a página. Criminosos e condenados, cadeias e suas legítimas tentativas de fuga são coisas que o brasileiro está acostumado a ver na imprensa. Organizações criminosas, as já estabilizadas, vez em quando, se compõem, intramuros, com arranjos codificados, para dominâncias. A ORCRIM aí está, dirigida pelo cabeça que pegou 27 anos no Julgamento, certamente não chegará a tanto. Imagina-se. Até porque seu foco era outro, político. Mas o Julgamento contribuiu para aumentar o número da população carcerária brasileira, só que com uma bandidagem bem mais agora ex-ilustre.
Como o conhecimento é importante, na Tranca aprenderão coisas novas e promissoras, uma nova cultura, alguma malemolência e ginga – palavras antigas -, próprias para aquelas cabeças-1964, carcomidas e autoritárias.
O Julgamento, pode-se dizer, acabou, o mérito já foi revelado, a coisa julgada é nascitura, restam discussões processualmente secundárias e bobinhas. Corte Interamericana de Direitos Humanos? Sempre uma hipótese heterodoxa e um experimento alvissareiro. Anistia? Outro. Mas nada aí que descompusesse um julgamento regularíssimo do STF.
Rei morto rei posto? Nem isso. Bandidos presos, democracia segue.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

