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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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O Mein Kampf da extrema-direita: o caso português

A ascensão da extrema-direita expõe o colapso do neoliberalismo e ameaça transformar democracias em regimes autoritários disfarçados

André Ventura (Foto: Rodrigo Antunes / Reuters)

As primeiras intervenções dos principais candidatos às eleições para a Presidência da República Portuguesa, em janeiro de 2026, têm levado muita gente (muita dela, angustiadamente) a pensar que André Ventura (AV), o candidato da extrema-direita, tem possibilidades de ganhar as eleições. Para alguns, a razão principal está na mediocridade dos outros candidatos. No caso do almirante Gouveia e Melo, o grande operacional da luta contra a COVID-19, ocorre lembrar-lhe que o país não é uma pandemia, nem a política é uma questão de logística. Já tivemos um presidente almirante (no tempo da ditadura) e já foi demasiado. Marques Mendes é uma cópia de Marcelo Rebelo de Sousa, o atual presidente. É sabido que o original é sempre melhor que a cópia. Se o cinzento falasse e lhe perguntassem a identificação, ele responderia sem hesitação: António José Seguro, apoiado pelo Partido Socialista. Perante isto, fica a sobrar o único candidato que não quer ser presidente, porque, como a sua aspiração é mandar e conduzir, só o cargo de primeiro-ministro lhe serve. Pode então correr o risco de ser eleito contra a vontade.

A primeira vez que me chamaram a atenção para AV resultou de uma observação de uma jornalista perplexa com o fato de AV citar várias vezes o meu trabalho na sua tese de doutoramento. O intrigante era o fato de ele começar a ser conhecido como a figura principal da extrema-direita, enquanto eu era conhecido como um intelectual de esquerda. Haveria alguma contradição ou algum conluio? Li a tese e concluí rapidamente que era uma tese competente e que as citações estavam certas e eram pertinentes. A tese era animada por um impulso securitário, mas dentro das normas acadêmicas. Portanto, nada a comentar. Não havia nem contradição nem conluio.

Hoje, AV é o líder da oposição, uma oposição de extrema-direita a um governo de direita. Estou convencido de que a democracia portuguesa dificilmente sobreviverá à Presidência da República de AV. Tentarei explicar porquê. As razões têm a ver com a estratégia de AV e com as condições pelas quais as sociedades europeias vão viver nos próximos anos.

AV em ação

Não há nenhuma originalidade nem nas ideias nem na estratégia de AV. Vemo-la hoje a ser seguida por muitos outros líderes de extrema-direita. Todos eles são cópias de um líder que também foi cópia de outros líderes do seu tempo, mas que as circunstâncias da Europa das primeiras décadas do século XX permitiram que passasse de cópia a original. Refiro-me a Adolf Hitler. Apesar de serem muitas as diferenças entre o original e as diversas cópias, penso ser adequado estabelecer o original como termo de comparação para o que observamos hoje. Uma diferença óbvia: enquanto AV foi um aluno brilhante e é altamente credenciado, Hitler nunca concluiu nenhuma formação acadêmica, foi rejeitado duas vezes nas escolas de arte de Viena, nunca quis ter emprego fixo e, apesar de em Viena se autodenominar pintor, ficava possesso quando lhe perguntavam se era pintor de paredes.

Se analisarmos a conduta desse austríaco que só em 1932 se naturalizou alemão, um ano antes de se candidatar à Presidência da República da Alemanha, verificamos que ele catalogou um receituário que continua hoje a ser seguido por todos os aspirantes à destruição da democracia, usando para isso todos os instrumentos que a democracia lhes proporciona. Vejamos alguns componentes desse catálogo. As citações de Hitler são dos seus muitos discursos e também de Mein Kampf (A Minha Luta), escrito em 1924, nos nove meses em que esteve preso depois do fracassado golpe (Putsch) de Munique, em novembro de 1923.

Sobre a natureza humana. Desde os tempos de fome e de dormida nos abrigos municipais, Hitler aprendeu algo que viria a repetir nos seus discursos: “Tudo o que o homem conseguiu deveu-se à sua originalidade e brutalidade.” Astúcia, habilidade para mentir, distorcer, enganar, eliminar qualquer sentimentalidade ou lealdade em favor da crueldade eram os ingredientes básicos da afirmação fundamental: a vontade. A desigualdade entre os seres humanos e entre as raças é uma lei da natureza. AV não proclama o eugenismo racista, mas estabelece o portuguesismo como um privilégio a que só alguns têm acesso, sugerindo que mesmo alguns desses só são portugueses, não por pertencerem a “nós”, mas pela corrupção ou complacência de funcionários que destroem a “alma portuguesa”. O nacionalismo excludente serve para naturalizar a exclusão social e o colonialismo interno nos nossos dias, por exemplo, nos campos da agroindústria.

A construção de um só inimigo. É necessário eleger apenas um inimigo e centrar nele toda a crítica. Segundo Hitler, a arte da liderança consiste “em consolidar a atenção do povo contra um só adversário e tudo fazer para que nada distraia essa atenção. O líder de génio é aquele que tem a capacidade de fazer com que os seus diferentes adversários pareçam um só, pertençam todos a uma só categoria.” Para Hitler, o inimigo é o marxismo (a social-democracia, o comunismo) e os judeus. Não são dois inimigos, são um só. Num discurso em 27 de fevereiro de 1926, afirmou: “Se necessário, um só inimigo significa vários inimigos.” Esse inimigo é responsável por todos os males da sociedade. A rendição (traição) da Alemanha em 1918 e todo o desastre socioeconómico e político que se lhe seguiu na República de Weimar foram obra do mesmo inimigo. Esse inimigo conspira contra a sociedade, não apenas pelo que faz, mas também pelo que é. É uma raça inferior. Os judeus não são seres humanos; são a encarnação do mal. Por isso, não há nacionalismo sem racismo. Hoje, como sabemos, o inimigo de eleição é a esquerda e os imigrantes. Parecem dois inimigos, mas são um só.

O principal inimigo é o inimigo interno. A Alemanha tinha perdido a Primeira Guerra Mundial porque não se soubera sobrepor aos seus inimigos. Para Hitler, a Alemanha não perdeu a guerra: o exército, ao qual pertenceu como sargento, manteve a sua integridade. A Alemanha foi atraiçoada pelos inimigos internos que provocaram a sua rendição. No discurso de fevereiro de 1926, Hitler invoca o passado glorioso do império e das colónias alemãs para concluir que os males que sobrevieram foram devidos aos revoltosos internos. “Esses não eram cidadãos; eram escumalha, uma escumalha de traidores.” Nos anos que se seguiram ao fim da guerra, a militância política do operariado comunista era intensa e exprimia com violência o mal-estar do país. Era reprimido com maior violência ainda, tanto por forças de direita como pelos socialistas. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht foram assassinados em 1919 com a cumplicidade do governo socialista. Falou-se então da fracassada revolução alemã (1918-1923). Foi nesse contexto que Hitler soube substituir o ódio de classe pelo apelo à cidadania racista.

Hoje, para a extrema-direita portuguesa, o 25 de Abril foi uma capitulação evitável, e o que se seguiu foi um desastre provocado por “gente” como Otelo Saraiva de Carvalho, Álvaro Cunhal ou Mário Soares, que, entre outras coisas, escancararam as portas do país à invasão de estrangeiros que vieram pôr em perigo a integridade nacional.

A solidariedade negativa. A unidade e o consenso que se promovem visam destruir o status quo — o sistema. Não há que perder tempo em elaborar soluções alternativas, porque estas emergirão espontaneamente, uma vez destruído o inimigo. A união é para destruir, nunca para construir, porque só a necessidade da destruição é “óbvia”. A construção exige compromissos, que devem ser mantidos na obscuridade, na ambiguidade e na conveniência do momento, para conquistar o poder. Para Hitler, o importante não era o programa, mas a imagem. Em 1920, o programa do partido agradou a toda a gente, exceto aos judeus, aos capitalistas e aos que tinham ganho fortunas com a guerra. O objetivo central era mobilizar a insatisfação popular com o status quo. O importante era declarar a sociedade doente, não entrar em detalhes sobre o que seria uma sociedade saudável.

A unidade negativa deve ser tão forte quanto importante é o que há a destruir. Para isso, é necessário construir o passado recente como um desastre e dramatizar, sem nuances, a sua dimensão, de modo que a gravidade da situação seja considerada irremediável dentro do sistema político presente. A Alemanha não perdeu a guerra; os traidores fizeram com que ela se rendesse e se humilhasse como nação com o Tratado de Versalhes e as condições que lhe foram impostas. Compare-se hoje com o “desastre do 25 de Abril” e “toda a bandalheira de esquerda que se seguiu” (André Ventura).

A democracia é apenas um meio para atingir outros fins. Desde os tempos de Viena, Hitler cultivou um desprezo total pela democracia, pela liberdade de expressão, pela liberdade de imprensa, pelo parlamento etc. Dedicou quinze páginas de Mein Kampf para demonstrar que “a maioria representa apenas a ignorância e a cobardia… a maioria nunca pode substituir o homem”. Trata-se do homem forte que conduz as massas, elimina a corrupção e devolve a autoestima ao país.

Temos ouvido a multiplicação retórica do homem forte como necessidade urgente do país. Precisaríamos de “três Salazares”, um político que, aliás, nunca teve interesse em entusiasmar as massas e conduzi-las. Não qualquer homem forte, mas aquele capaz de “pôr a casa em ordem”. E, para que ninguém se ofenda com a referência ao passado ditatorial, mencionam-se outros homens fortes recentes que a esquerda portuguesa “normalizou”: Otelo Saraiva de Carvalho e Álvaro Cunhal. Porque o importante é a repetição do preconceito; não interessa saber que Otelo contribuiu decisivamente para o derrube da ditadura salazarista, que cometeu erros e pagou caro por isso, enquanto Cunhal passou onze anos na prisão (oito dos quais em isolamento) pela sua luta contra a ditadura.

Hitler usou os meios legais e democráticos enquanto estes lhe ofereceram melhores oportunidades para vencer os seus inimigos. Aliás, a legalidade é uma arma ideal quando se usa para desarmar os democratas: os processos legais são lentos e, com isso, dão mais tempo ao tempo rápido da conquista do poder. O uso instrumental da legalidade significa, por outro lado, que ela deve ser descartada na medida em que atrapalhar.

Segundo uma militante sua, há uma “balbúrdia jurídica em que vive o Chega”, o partido de AV. Deve entender-se que essa “balbúrdia” é intencional, porque o sistema judicial que a avaliar levará o tempo processual necessário até eventualmente deixar de ter efeito útil.

Controle absoluto sobre o partido. A ascensão política de Hitler foi um processo longo e tortuoso, desde a entrada no Partido dos Operários Alemães de Anton Drexler até chegar a líder incontestado do Partido Nacional-Socialista (o partido nazi). A sua notável persistência foi o seu maior segredo diante do desprezo ou da indiferença de muitos. Habituou-se a testar os seus argumentos em infindáveis reuniões nas cervejarias de Munique. A sua política começou por ser a política da rua. Mas desde cedo se convenceu de que o líder não deve tolerar divergências internas, porque elas dão armas a um inimigo já de si muito poderoso.

Depois do fracassado Putsch de Munique em 1923 e da prisão de Hitler, o Partido Nacional-Socialista ficou reduzido a muito pouco. No norte da Alemanha e na Renânia, o partido era dominado pelos irmãos Strasser e, na conceção destes, as duas bandeiras principais do partido eram o anticapitalismo e o nacionalismo — e eram igualmente prioritárias. As tensões com Hitler eram evidentes, uma vez que ele pretendia uma aliança com o capitalismo. Nessa altura (1925-26), os Strasser tinham contratado um jovem que ainda não tinha 30 anos para as tarefas de propaganda. Chamava-se Paul Josef Goebbels. A tensão com Hitler era tão grande que o jovem Goebbels chegou a pedir a expulsão do partido do “pequeno burguês”. Hitler manobrou o partido, em parte recorrendo aos seus indiscutíveis dotes de orador. Pouco tempo depois, Goebbels passou-se para o lado de Hitler depois de o ouvir num discurso inflamado de duas horas. Alguns anos depois, os irmãos Strasser foram expulsos do partido.

Em 1926, Hitler instituiu a Uschla (Comité para a Investigação e Resolução), que pôs ao seu serviço para manter o controlo total sobre o partido. O outro lado do controlo total é o carácter excecional do líder. Hitler cultivou a sua excentricidade, o exagero e a surpresa do seu comportamento. O poder à parte só pode vir de um ser à parte.

A trajetória de AV e o modo como tem gerido as divergências dentro do partido mostram como ele se julga (e efetivamente está) muito acima da média dos seus correligionários. A sua excentricidade e os seus excessos de linguagem são calculados ao milímetro.

Não há verdade nem mentira. Há a repetição do que nos convém até que seja verdade. Uma das maiores aprendizagens de Hitler foi aprender a mentir com convicção. Exerceu-a durante toda a vida. No final, foi-lhe fatal. Levou-o ao suicídio. Para Hitler, o exercício da força física, apesar de fundamental, nunca é suficiente se não for acompanhado pela força espiritual. Escreveu ele: “A força que combate um poder espiritual permanece como força defensiva se os que a detêm não são também os apóstolos de uma nova doutrina espiritual.” Quando se mente, deve dizer-se grandes mentiras. Escreveu: “Uma mentira grosseiramente impúdica deixa sempre rasto, mesmo depois de ser denunciada.” O colapso de uma nação só pode ser evitado por uma “tempestade de brilhante paixão, mas só os apaixonados são capazes de despertar a paixão dos outros”.

Quem já ouviu AV certamente sentiu isso.

De bem com as massas e com o dinheiro. Hitler sempre cultivou um desprezo enorme pelas “massas”. As “massas” tinham sido a sua companhia em Viena, e a falta do que Hitler julgava ter (cultura) tornava-as repugnantes a seus olhos. Escreveu em Mein Kampf: “Não sei o que mais me repugnou naquele tempo: a miséria económica dos meus companheiros, a rudeza da sua moral e dos seus costumes ou o baixo nível da sua cultura intelectual.” Odiava toda a ideologia do operariado: desprezo pela nação e pela pátria, pelo direito, pela religião e pela moral. Segundo ele, o pobre operariado tinha sido envenenado pela doutrinação dos socialistas, que exploravam em seu benefício as difíceis condições em que os operários eram forçados a viver.

Hitler escreveu: “Ser um líder significa ser capaz de mover as massas.” Mas também anotou: “Aprendi que as massas só são atraídas por quem é forte e intransigente… Não sabem como fazer uma escolha liberal e tendem a sentir que foram abandonadas… Também cheguei à conclusão de que a intimidação física é importante tanto para as massas como para os indivíduos… O poder das massas para compreender é fraco. Por outro lado, elas esquecem rapidamente. Sendo assim, a propaganda eficaz deve limitar-se a necessidades básicas e exprimir-se em poucas fórmulas estereotipadas.”

Se as massas significavam votos, o dinheiro era fundamental para alimentar a propaganda e manter a organização. Por isso, Hitler quis sempre ser todas as coisas para todos aqueles que via como instrumentos para atingir o poder. Arreou a bandeira do anticapitalismo e enviou Goering para Berlim, a fim de estreitar os laços com o grande capital. Em 1929, Hitler já era saudado pelo grande capital e pela grande indústria, que viam nas suas qualidades de agitador o futuro que mais convinha ao capital numa situação de crise — uma política antidemocrática e antioperária.

Certamente serão os portugueses mais vulneráveis ou mais ressentidos com as ameaças de descer de classe que encherão as urnas de votos no Chega, mas não serão eles que pagarão os custos de uma organização que exibe tamanha abundância de propaganda, tanto no mundo tradicional da publicidade como no mundo novo das redes sociais.

Se as condições do povo melhoram, nega-se esse facto ou declara-se que é precário e vai durar pouco tempo. O projeto de Hitler beneficiou de condições iniciais muito especiais. Quando, em 1923, um país humilhado pelas condições da rendição que lhe tinham sido impostas se declarou impossibilitado de continuar a pagar as indemnizações de guerra, a França ocupou a rica região do Ruhr, o coração energético e industrial da Alemanha. Para além da humilhação, degradou-se ainda mais a situação económica. A desvalorização do marco aumentou e, com ela, aprofundou-se a crise económica, o desemprego e o desespero de milhões de trabalhadores e suas famílias.

Hitler aproveitou astutamente todos os elementos desta crise, juntando-os num só diagnóstico contra um só inimigo. Em 1923, 30% dos membros do partido estavam desempregados. A sua leitura manteve-se inflexível: “Enquanto a nação não se livrar dos assassinos dentro das suas fronteiras, nenhum êxito externo será possível.” O ódio de Hitler, em vez de se dirigir aos franceses, dirigia-se ao bando corrupto que governava o regime. Este foi o contexto que levou ao golpe de Munique. No tribunal, Hitler assumiu toda a responsabilidade, mas acrescentou: “Não sou por essa razão um criminoso. Se hoje estou aqui como revolucionário, é porque sou um revolucionário contra a Revolução. Não existe alta traição contra os traidores de 1918.” E os traidores são sempre os mesmos: socialistas, comunistas e judeus.

A partir de 1925, as condições da Alemanha começaram a melhorar, e o país foi admitido na Liga das Nações (1926) — da qual saiu dez anos mais tarde por decisão de Hitler. As profecias do apocalipse e do desastre iminente deixaram de ser eficazes. A partir de então, Hitler passou a insistir no carácter precário e passageiro das melhorias. Por puro instinto de propaganda, esta era a melhor maneira de persistir na sua caminhada para o poder. A Grande Depressão de 1929 viria a dar-lhe razão.

As circunstâncias epocais

Os líderes de extrema-direita criam muita realidade artificial, mas fazem-no, em geral, a partir de fragmentos da realidade real. Há circunstâncias que favorecem o salto autoritário e há condições que, pelo contrário, o impedem. A partir de 1924, a Alemanha começou a recuperar e, como vimos, Hitler sentiu que era necessário assumir posições mais centristas. Talvez tudo ficasse por aí se, entretanto, não ocorresse a Grande Depressão de 1929. O desemprego massivo, a proliferação das greves e, em suma, a profunda crise social que se seguiu foram o grande impulso para a clarificação e ressurgimento do partido. Ao mesmo tempo que as milícias do partido (as SA, Sturmabteilung) faziam agitação social, Hitler declarava-se contra as greves para não perder o apoio dos grandes capitalistas que já então assegurara. Quando, em 1930, Strasser, líder da ala radical do partido, lhe perguntou (pouco antes de ser expulso do partido) se, no caso de conquistar o poder, nacionalizaria o grande grupo capitalista Krupp, Hitler respondeu-lhe: “Claro que o deixaria em paz. Julgas que eu seria louco ao ponto de destruir a economia do país?”. Pouco depois, Goebbels escrevia: “Não somos contra o capitalismo, somos contra o seu abuso… Para nós, a propriedade é sagrada.” Em setembro de 1930, o partido nazi, para espanto do mundo, teve um êxito eleitoral estrondoso. Depois, foi o tapete vermelho que conhecemos. Primeiro, o vermelho da glória; depois, o vermelho do sangue inocente de milhões.

A democracia portuguesa não corre, neste momento, nenhum perigo existencial, mas os tempos que se avizinham não auguram nada de bom para o mundo, para a Europa e, portanto, para Portugal. O crescimento global da extrema-direita é um sintoma (não a causa) do que está para acontecer. Não vou aqui discutir a questão mais geral da incompatibilidade entre o capitalismo (assente na acumulação capitalista infinita) e a democracia (assente no princípio da soberania popular). Limito-me a afirmar que o neoliberalismo (a versão globalmente dominante do capitalismo desde a década de 1980) tem vindo a destruir tudo o que, na democracia, significava bem-estar e segurança humana (viver sem medo e sem carências básicas) para as grandes maiorias (digamos, sem excesso de rigor, para as classes populares). Essa destruição está a atingir limites que se expressam na passagem do Estado de bem-estar para o Estado de mal-estar. É dessa passagem que a extrema-direita se alimenta.

As respostas dos governos do arco da governação (direita, centro e centro-esquerda) não se têm oposto a esta destruição e procuram responder ao mal-estar com medidas repressivas, em vez de medidas que garantam a reposição do bem-estar. Como mostrei, a repressão e a solidariedade negativa são o DNA da extrema-direita e, por isso, não admira que ela cresça menos pelo seu mérito do que pelo demérito das forças que se lhe deviam opor. Estas últimas “esqueceram-se” de que, sem tributação progressiva, não há bem-estar social relativo no capitalismo. Esqueceram-se de que, no imediato pós-guerra, os rendimentos mais altos chegaram a ser tributados em mais de 80% e nem por isso ficaram pobres ou deixaram de prosperar. Esqueceram-se de que, sem políticas públicas sociais de qualidade (educação, saúde, pensões e transportes), não é possível garantir o bem-estar das populações, e que essa garantia, em caso algum, pode ser dada pelo setor privado, cujo objetivo legítimo é acumular riqueza, não distribuí-la.

A democracia tem vindo a ser desfigurada e substituída por um novo tipo de regime: o autoritarismo eleitoral, vigente em países tão diferentes como a Índia, a Rússia, os EUA, a Turquia, El Salvador e a Hungria. A extrema-direita prefere o autoritarismo eleitoral à ditadura por um simples cálculo político: é aparentemente mais legítimo, sobretudo num mundo ainda bem lembrado das ditaduras. Mas, para se manter, este regime tem de desviar a atenção das verdadeiras causas do mal-estar (um capitalismo em grande medida autorregulado, sobretudo no setor financeiro), transformando consequências em causas. A imigração é hoje o caso paradigmático dessa transformação. Mas, como dizia Hitler, o uso da repressão nunca é eficaz se não for animado por um desígnio espiritual, seja ele Make America Great Again (MAGA) ou o orgulho de ser português e cristão.

A corrupção é outro caso de transformação de consequências em causas. É endémica ao neoliberalismo, porque este assenta na promiscuidade entre o mercado dos valores políticos (que não se compram nem se vendem) e o mercado dos valores económicos (os valores que têm preço e que se compram e se vendem). Viola, assim, o princípio central da teoria da democracia liberal desde John Locke, que propunha a separação total entre os dois mercados de valores. A corrupção é, portanto, tão endémica ao neoliberalismo quanto a luta contra ela.

O importante é que se ocultem as verdadeiras causas do mal-estar da população: sejam elas o aumento do custo de vida, a estagnação dos salários e a asfixia do poder sindical, o aumento do custo da habitação — que pode consumir mais de metade do rendimento familiar — e a liberalização escandalosa do preço dos medicamentos, que se tornam progressivamente inacessíveis, sobretudo a doentes crónicos.

No atual tempo europeu, inventaram-se dois inimigos para distrair a atenção dos problemas reais. O inimigo interno é o imigrante, sobretudo se for islâmico; o inimigo externo é a Rússia. Nenhum europeu é capaz de imaginar a vida no seu país sem a participação dos imigrantes. Nenhum cidadão europeu é capaz de ver na Rússia uma ameaça, sobretudo se se lembrar de que o país foi invadido duas vezes por europeus (Napoleão e Hitler) e nunca se propôs invadir a Europa. A invasão da Ucrânia tem razões históricas antigas e recentes. É condenável a todos os títulos, mas não significa a invasão da Europa. Hoje, os europeus sabem que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia podia ter terminado três meses depois de ter começado se os EUA e os seus lacaios (Boris Johnson, aparentemente bem pago para isso) não tivessem impedido a assinatura do acordo de paz praticamente concluído.

Os europeus sabem hoje que o objetivo da guerra foi inicialmente duplo. Por um lado, visou amputar a Europa de uma das suas regiões — a Rússia —, com o fim de impedir o acesso do continente à energia barata vinda desse país e, com isso, acelerar o declínio e a dependência da Europa em relação ao império declinante dos EUA. Por outro lado, visou bloquear o acesso da China à Europa e ao mundo ocidental por via da Rússia.

Mais tarde, os empresários da guerra — os lobistas da indústria de armamento, com as suas embaixadas em Bruxelas — convenceram uma classe política medíocre e ignorante a promover a guerra por sua própria iniciativa. Essa classe política nem sequer se deu conta de que todos os benefícios iriam para a indústria norte-americana, enquanto os custos recairiam exclusivamente sobre os europeus. De repente, os europeus ouviram os seus líderes falar de guerra como se fosse a mais importante missão política dos próximos anos.

Os europeus mais velhos lembram-se do passado recente e perguntam-se, perplexos e impotentes. A Europa Ocidental foi, depois da Segunda Guerra Mundial, o grande promotor global da paz, tendo intermediado ativamente a resolução de várias guerras locais. Foi o berço do grande movimento pela paz. Mais tarde, assumiu pioneirismo na preocupação ecológica e foi o berço do movimento ecologista global. Como é que, de repente, desaparecem tanto o movimento pela paz como o movimento ecológico, e a Europa passa a ser um continente em guerra contra uma ameaça que só a classe política vê?

A invenção dos inimigos é, assim, fundamental para ocultar a grande causa do mal-estar dos europeus nos próximos anos: os orçamentos militares aumentam à custa da diminuição das políticas sociais. Os políticos europeus viram-se “forçados” a mentir aos seus cidadãos. Quando estes se derem conta, haverá agitação social, e a resposta será repressiva, uma vez que, neste sistema, não é possível outra resposta. Por isso, quem se diz contra o sistema é quem mais investe na vigência integral e, portanto, repressiva deste sistema. Mente duplamente, e é por isso que a sua mentira se confunde tanto com a verdade.

Neste contexto, surge uma preocupação especificamente portuguesa. Portugal é um dos países europeus com menos tradição democrática. É também um dos países com mais desigualdade social e maiores índices de pobreza. A combinação destas duas condições torna Portugal uma presa fácil de qualquer demagogia de extrema-direita. A democracia sobreviverá? Bastará a sua transformação num autoritarismo eleitoral?

A história não se repete. Isto não quer dizer que os ecos do passado não nos soem estranhamente familiares. Nem as diferenças nem as semelhanças são pura coincidência.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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