O Navio Negreiro de Castro Alves atraca na Urca, todos choram os versos de uma tragédia que continua a sangrar os mares…
Retrato sensível de Haroldo Costa, da consagração artística à defesa da cultura negra e da memória histórica que ainda ecoa nos mares do mundo
Minha homenagem ao bom e admirado amigo e confrade Haroldo Costa, é a reprodução aqui do texto com que relatei em meu blog, em 24 de maio de 2015, sua posse na Academia Brasileira de Arte:
E tudo começou com Vinicius de Moraes, quando o Poetinha identificou, no belo e jovem Haroldo Costa, o ator ideal para personificar, no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o personagem Orfeu da Conceição, na montagem épica de 1956, que teve cenários de Oscar Niemeyer e músicas do iniciante Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom.
Estava então plantada, inexoravelmente, a semente do incansável escritor Haroldo Costa, pesquisador da cultura popular, produtor, diretor e encantador de plateias no mundo todo, com shows memoráveis, que seduziram milhares e milhares, a partir da década de 60, enaltecendo a grandeza da cultura negra, “que enobrece nosso estrato cultural, como elemento fundador de nossa própria nacionalidade” – como disse Ricardo Cravo Albin, com o discurso inspirado com que o saudou em sua posse na Academia Brasileira de Arte.
A solenidade da posse de Haroldo foi na varanda do Instituto Cravo Albin, na Urca, transformada em auditório superlotado. O sincretismo “social” dos convidados combinava com o sincretismo cultural da obra e da vida do homenageado. Lá estavam, dos embaixadores Marcos Azambuja, que ocupou nossa embaixada na França, e René Haguenauer, às divas das letras, Nélida Piñon, da MPB, cantora Ellen de Lima, e do show business, a performática Rogéria.
Também, os cartunistas Lan e Chico Caruso, os escritores Geraldinho Carneiro e Sérgio Fonta, o pintor Israel Pedrosa, a presidente do Museu da Imagem e do Som, Rosa Maria Araújo, a produtora cultural Lygia Marina Sabino, a jornalista Gilsse Campos, a pianista Maria Luiza Nobre… e assim seguia a relação multifacetada, que incluía Andréa Natal, a general manager do Copacabana Palace, hotel cuja história se cruza, desde a década de 60, com a do acadêmico empossado Haroldo Costa.
Foi no Golden Room daquele hotel que Haroldo deu vazão ao seu talento, montando espetáculos inesquecíveis. Rio Zé Pereira, Sua Excelência o Samba, Aquarela Musical fascinaram plateias, somando naquele palco estrelas como Grande Otelo, Marlene, Zezé Motta, Angela RoRo, Luiz Melodia, Martinho da Vila, Maria Bethania, Dona Ivone Lara.
No mesmo hotel, por mais de 20 anos o Magic Carnaval Ball trepidou sob a batuta do Mr. Samba, Haroldo Costa, diretor musical do baile sem concorrentes.
Esse Haroldo elegante, discreto, altivo, porém com a modéstia das almas grandes, estudou Etimologia Musical em Paris, com o monstre sacré Roger Bastide. Na mesma Paris, falou na Unesco sobre Teatro Popular Brasileiro, e, em Cuba, sobre A Poesia Como Instrumento de Libertação.
Estimado e respeitado por todos que o conhecem e frequentam, das rodas de samba às ditas “altas rodas”.
Do presidente Fernando Henrique Cardoso, em Brasília, recebeu a Ordem do Mérito Cultural. Em Londres, foi recebido, junto com a mulher, Mary Marinho, como very special guests, para longas e várias temporadas em casa do "Mais Bem Vestido do Mundo" Marc Birley, dono do exclusivo Annabel’s club, frequentado pela família real.
Haroldo é múltiplo! É o autor das indispensáveis biografias dos mitos de nossa música Ernesto Nazareth e Catulo da Paixão Cearense; soma incontável coleção de homenagens, que vão da Medalha Pedro Ernesto, da Câmara do Rio, ao título Embaixador do Rio, pela Univercidade, sem esquecer o cargo de Conselheiro de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, em 2004, à Medalha de Honra da Academia de Letras e Arte Zumbi dos Palmares – SP.
Honraria maior não há do que a sua biografia, lançada pela Editora Rio, na coleção Gente, realizada pela Universidade Estácio de Sá.
“A defesa da negritude, em meio à placidez e à elegância de suas atitudes, faz dele uma liderança na comunidade afro-brasileira”, palavras ditas por Ricardo Cravo Albin na cerimônia da Academia, sucedido pelo discurso de Haroldo Costa, sóbrio na atitude, impetuoso no conteúdo, levando a audiência a se levantar comovida e aplaudi-lo.
Sua Cadeira na Academia Brasileira de Arte, a nº 32, tem como patrono Castro Alves: “Para uns, o “poeta dos escravos”, para outros, o “poeta da abolição”, para todos, o “poeta da liberdade” – iniciou assim sua fala, o novo imortal das artes, Haroldo.
Foi então que, mesmo sem nos darmos conta, “embarcamos”, através de seu texto, dito de forma compassada e firme, junto com os passageiros das grandes naus do sofrimento, traduzidas pelo poeta do Navio Negreiro.
Haroldo Costa discorreu sobre o “porta-voz das lágrimas e das dores de uma legião de desafortunados, caçados nas matas e nas savanas africanas, sem a sua identidade, eles se tornavam carga anônima, peças a serem repartidas e negociadas em leilões do lado de cá do Atlântico”.
Eu lhes peço, pois, atenção ao relato que se segue, dada a atualidade do martírio que descreve, nesses tempos em que vemos todos os dias milhares e milhares de refugiados asiáticos e africanos vagarem pelos oceanos em barcos superlotados, à espera de água e um prato de comida, em busca de países que os aceitem.
Conta Haroldo:
“Foram cerca de seis milhões de pessoas (saídas da África). Aqui, um ponto de interrogação se faz necessário: Pessoas? Poder-se-ia dizer que, aos olhos de hoje, era um verdadeiro holocausto levado por navios, que, no dizer do professor Robert Farris Thompson, antropólogo da Universidade de Yale, eram verdadeiros campos de concentração flutuantes.
"Os iorubás, também denominados como nagôs, os gêges, os haussás, os malês, os bantos eram personagens e testemunhas de um dos maiores crimes já perpetrados contra seres humanos, condição que iam perdendo à medida em que os barcos avançavam oceano adentro.
"Caçados nas vilas e nas florestas, com a identidade raspada por aquela promiscuidade dos porões infectos, os idiomas se entrecruzavam e, muitas vezes, o próprio Deus não era comum a todos.
"Lá estavam eles, unidos pelas correntes, que rasgavam a carne, e as lembranças, sob o céu imenso, que a tudo encobria, e sobre as águas, que, para tantos, seria o túmulo. Entre preces e gemidos, sussurros para Olorum ou Alá, os prisioneiros tentavam sublimar de alguma forma aquele sofrimento que ninguém sabia onde, como e quando terminaria.
"Certamente, não para mitigar o sofrimento, mas para exercitar a musculatura, que ia se definhando, o comandante ordenava que dançassem, terrível paradoxo. Aí é que, como se fosse testemunha, toma a força da linguagem, para reportar as cenas terríveis, a voz do poeta Castro Alves nos versos de Navio Negreiro, o libelo da poesia.
"Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelham o brilho
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros.
Estalar de açoite.
Legião de homens negros como a noite.
Horrendos a dançar.
Negras mulheres, suspendendo às tetas,
Magras crianças, cujas bocas pretas
Regam o sangue das mães!
Outras, moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsias e mágoas vãs!
E ri-se a orquestra, irônica, estridente…
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais…
Se o velho arqueja… se no resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!"
“E lá ficavam, socando o tombadilho, numa dança macabra, destilando a vergonha, mascando a saliva amarga do infortúnio registrado nos versos de Castro Alves”, diz Haroldo, fazendo sua leitura:
"Senhor, Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus!
Ó mar! por que não apagas
Com a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!"
A esta grande tragédia humana, o pesquisador Haroldo Costa lança seu olhar consequente e dela colhe resultados frutíferos, ditos abaixo:
“Estava sendo vivido, naqueles momentos, o prólogo da musicalidade que brotaria no Novo Mundo, que seria erguida sobre lagrimas, suor, gemidos e soluços. Os mandingas, congos, cambindas, retalhados em lotes eram despejados nos portos de Charleston, Havana, Salvador, Rio de Janeiro e Montevidéo, espalhando seus cânticos e suas danças, seus deuses e suas crenças, que algum tempo depois refloresceriam nos passos do cakewalk, no trompete de Louis Armstrong, na flauta de Pixinguinha, nas cerimônias da santeria cubana, nas cantigas dos candomblés e nos sambas de enredo, que se tornaram a interpretação mais intrínseca da alma brasileira e a narrativa eloquente de fatos da nossa historia não oficial”.
O acadêmico Haroldo rememora o encontro de Pablo Picasso com máscaras africanas no atelier de Cézanne em Paris, fazendo-lhe surgir fagulhas no olhar e gestando o cubismo – que o diga o quadro Les Demoiselles D’Avignon, que, segundo Haroldo, “tem o umbigo enterrado na África”.
O novo membro da ABA cita os versos Vozes D’África, em que Castro Alves preconizava que “aquelas viagens malditas, os corpos retalhados a chicote no Pelourinho, as celebrações animistas, seriam o alicerce, a argamassa orgânica para o florescimento cultural em vários países americanos e até europeus”. Ele lembra a Semana de Arte Moderna de 1922 como “ponto de partida para o reconhecimento da contribuição do negro, no que se convencionou chamar o Perfil Brasileiro”, fazendo aí abranger as obras de Malfati, Portinari, Di, Tarsila, Milliet, os Andrade, mestre Villa, Guarnieri, Mignone, Nepomuceno, Brecheret, Gilberto Freire, Lins do Rego, Jorge Amado. E conclui: “A partir daquele momento histórico de 22, o olhar dos nossos artistas em direção ao Brasil passou a ter uma profundidade reveladora, que a miscigenação racial produz e reproduz”.
Em tudo, Costa identifica “as digitais dos descendentes dos escravos, que chegaram aos entrepostos sem saber onde estavam e que destino lhes seria imposto”.
Em sua ode a Castro Alves, Haroldo o descreve como “paladino incansável na solidariedade e na exposição poética; com a grandeza e o clamor dos seus versos para exaltar os que traziam o que restava do seu maltratado ser e do seu insuspeitável saber”.
Encerra, solenemente triste:
“Meu bisavô estava lá”.
Todos se comovem. Aplaudem.
E a tragédia continua a singrar e sangrar os mares nossos de cada dia…
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

