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Igor Corrêa Pereira

Igor Corrêa Pereira é técnico em assuntos educacionais e mestrando em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro da direção estadual da CTB do Rio Grande do Sul.

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O necroliberalismo é a nova fase do neoliberalismo?

São tão fortes as coisas!Mas eu não sou as coisas e me revolto.Carlos Drummond de Andrade

Sepultamentos no Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus. Causado pela Pandemia do Covid-19 (Foto: Alex Pazuello/Semcom)
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“A lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroliberalismo”. Essa afirmação é do filósofo camaronês Achille Mbembe, em entrevista dada no início da pandemia, em março do ano passado. Já naquele mês, o presidente Jair Bolsonaro chocava o mundo ao dizer que a economia não poderia parar mesmo se parte da população precisasse morrer para garantir essa produtividade. "Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida", disse Bolsonaro naquela época. Disse e fez tudo o que se seguiu, que nós vivemos dolorosamente. 

Seu agora ex-colega, ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o acompanhou em muito dessa subestimação da vida em detrimento da economia. Não por acaso, Brasil e EUA respondiam por 1 em cada 3 mortos por Covid-19 no mundo em fevereiro, segundo matéria da Gazeta do Povo. Se a lógica do sacrifício já fazia parte do coração do neoliberalismo, Trump e Bolsonaro inauguraram uma nova etapa desse sacrifício. Em nome da economia, vale sacrificar vidas. E são principalmente as vidas dos mais pobres aquelas sacrificadas. 

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Uma patroa carioca que viajou para a Itália foi uma das primeiras infectadas no Rio de Janeiro no ano passado. Mas a primeira a morrer foi sua empregada doméstica, Dona Cleonice, que percorria 125 km da sua casa, em Miguel Pereira até o bairro Leblon na capital carioca, no alto de seus 63 anos. Viveu trabalhando e morreu de coronavírus. Seus familiares não puderam se despedir. Esse foi mais um protocolo de quem morre por COVID-19. Não pode haver despedidas para evitar contágios. Só que esse protocolo foi transformado em um triste modo de apagamento. 

Diferente de quem morre numa guerra, os mortos por COVID-19 não podem ser lamentados ou exaltados na sua memória. Parece que os mortos são considerados fracos. Sua morte é a marca do seu fracasso individual. Portanto, não merecem nem ser lembrados. O presidente deu de ombros várias vezes ao ser perguntado sobre os mortos. "E daí?", perguntou ele inaugurando um novo patamar de sacrifício. Se você morrer, a culpa é sua, e ninguém poderá se importar com sua morte. 

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Sabemos ainda pouco sobre a doença, mas uma das informações é que ela atinge os mais vulneráveis. Que são os mais velhos, os que tem doenças, os que se alimentam mal. Esse pode ser o motivo da indiferença. Para o necroliberalismo, essas fragilidades são uma justificativa para a eliminação dos “desnecessários” ao sistema produtivo e de consumo. Por um motivo muito simples, apesar de perverso. O neoliberalismo parte do princípio da escassez. Não tem lugar para todo mundo. E se não tem para todo mundo, a mensagem para cada indivíduo é “se prepare, acorde cedo, lute com o que você puder, pois mesmo assim não é garantido que você vai conseguir. E se você não conseguir, a culpa será exclusivamente sua”. 

A lógica desse permanente “jogo da vida real”, que mais parece um cassino onde sorte e azar andam lado a lado, foi como as pessoas foram chamadas a se comportar diante do COVID-19. Seria mais ou menos inevitável que todos contraíssem a doença, e os mais fracos serão eliminados. Nada pode ser feito sobre isso. Essa naturalização justifica a indiferença diante das mortes e a conduta de quem quer o retorno à “normalidade”. Essas pessoas e instituições tomaram como suas as verdades do necroliberalismo, da morte de alguns como algo natural e que faz parte do jogo social, econômico e político.

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É a vitória da lógica de que não tem para todo mundo mesmo. Não tem previdência para todo mundo, então se morrer muitos velhos, o “natural” é comemorar, pois é um peso a menos. Não tem emprego para todo mundo, então se muitos pobres morrerem, o natural é achar até melhor, porque menos gente vai ficar por aí lembrando que somos uma sociedade da falta. Uma sociedade em que o “andar de cima” enriquece, enquanto que a maioria luta para não morrer. 

Os rituais de sofrimento são mecanismos de definir vencedores e perdedores na nossa sociedade. O filósofo Silvio Almeida lembra que o vestibular é um desses rituais, mas os atuais reality shows também são exemplos desses rituais. Nós somos ensinados para ver, aceitar e curtir a crueldade do BBB como um entretenimento. Se uma pessoa confinada numa casa (ainda que sofra por estar longe da realidade, da família, da vida aqui fora), por 100 dias, eliminar todos os concorrentes (os mais fracos e indesejáveis), é socialmente aceitável que mereça o prêmio de um milhão e meio de reais. Essas condutas que envolvem sacrifício, sofrimento e competição abrem caminho para a naturalização da morte do outro. E fazem com que um presidente que diz coisas terríveis, a respeito dos mortos, dos doentes e suas famílias, continue tendo apoio social.

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As atrocidades ditas por si só são chocantes. Mas impressiona também que tais declarações sejam reproduzidas por pessoas comuns, que tomam essas verdades como suas. Essa naturalização da morte como algo aceitável é o que motiva pais e mães de escolas particulares a protestarem na frente da casa do secretário estadual de saúde de São Paulo. Essas pessoas exigem a manutenção das aulas presenciais das escolas. Mesmo no momento mais trágico do contágio de COVID-19 no Brasil. 

Para eles, se alguns ou muitos vão morrer, não faz a menor diferença. É um sacrifício aceitável e mesmo natural. Até porque elas acham que estão menos suscetíveis, por serem mais saudáveis, mais bem nutridas e terem maiores recursos econômicos para recorrerem a melhores serviços de saúde. E se, eventualmente, algum conhecido delas morrer, será ele individualmente o responsável. Lamento, é a vida, dirão. Alguns morrerão, mais cedo ou mais tarde.

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Com o coronavírus, cada corpo virou uma arma potencialmente letal. E essa letalidade foi incorporada como um acréscimo de sacrifício exigido para os vencedores dessa competição selvagem pela sobrevivência. A morte dos mais vulneráveis está sendo tão naturalizada em alguns lugares, por algumas (ou muitas) pessoas, que a última grande manifestação de rua feita sob o governo Trump trazia a chocante frase lembrando que “Vidas negras importam”. Ou seja, dizendo que negros não deveriam ser mortos. Silvio Almeida evidenciou em entrevista recente ao site Conexão Xangai, o absurdo retrocesso dessa luta diante do neoliberalismo. 

O movimento negro, no tempo do Estado de bem-estar social, lutava por direitos civis. Agora, no neoliberalismo, ou no necroliberalismo, como sugere Mbembe, o movimento negro luta para que os negros não sejam mortos. A necropolitica, segundo Mbembe, é a gestão da sociedade a partir da morte dos indesejáveis. Isso está nítido na pandemia. Essa produção da morte se torna necessária justamente porque as políticas não podem ser universalizadas. 

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A morte precisa ser naturalizada, já que, no neoliberalismo, é impossível atender todas as demandas sociais. Os mais vulneráveis, leia-se os negros e os pobres, podem ser eliminados sem representarem maiores prejuízos à sociedade, afinal "a única maneira de tirar preto e pobre do orçamento é matando", resume Silvio.  

E essa luta pela sobrevivência é também uma luta daqueles e daquelas que ainda conseguem impor alguma resistência. Todos os que lutam por vacina, por isolamento, pelo fechamento de escolas, lutam simplesmente pela vida. Pelo direito de viver, de não ser exposto à morte. Nós assistimos as primeiras greves sanitárias que expressam exatamente o mesmo tema da luta do “Vidas negras importam”, ou seja, evitar mortes. Tamanho é o retrocesso civilizacional que o neoliberalismo impôs à humanidade. 

Eu olho para a tela do computador e milhões de ideias desencontradas me ocorrem. Mas ouvindo a fala de um intelectual como o Silvio Almeida, fico mais tranquilo. Ele deu a dimensão do que vivemos. Disse que é uma tragédia que talvez nos tenha feito (ou nos fará) perder uma geração inteira. Ele disse que aqueles que hoje tem mais ou menos sua idade, talvez não consigam ver em vida uma recuperação de nossa sociedade, de nosso país. Mas mesmo essa constatação não o faz desanimar e ele conclama todos à escrita, ao estudo, aos debates, às possíveis atividades de resistência. Pois será esse esforço que produzirá alguma esperança, mesmo para as gerações que ainda não nasceram. 

Uma das tarefas que cabe à nossa geração é entender a dimensão devastadora do neoliberalismo, que não é só um sistema econômico, mas também é político, cultural, moral. Produz subjetividades e reconfigura as instituições. O neoliberalismo não só destrói, ele constrói. Constrói modos de ver o/viver no mundo e verdades que nos constituem e nos ensinam sobre o que devemos gostar, vestir, comer, para onde viajar, quantas horas trabalhar, dormir, etc. Por isto, precisamos evidenciar esta lógica, hoje hegemônica, e mostrar, com todas as nossas forças, o quão nefasta, perversa e injusta é. Desnaturalizar suas práticas, reivindicar o direito a pensar diferente. É preciso não se render. Ante à feiura das coisas, não se tornar “as coisas” e se indignar com cada vida perdida. Talvez esse seja o legado que possamos deixar enquanto pudermos respirar.  

Referência: 

Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da necropolítica. 

https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica-ck8fpqew2000e01ob8utoadx0.html

Conexão Xangai #06 - Silvio Almeida, racismo estrutural e o neoliberalismo https://www.youtube.com/watch?v=7w-XlktXO1o&t=853s

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