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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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O novo mundo multipolar, ou, virar fazendão da China é mais legal que virar fazendão dos Estados Unidos

De um lado há uma guerra comercial e por hegemonia no capitalismo global, de outro, a China tem como principal mercado consumidor para suas exportações os EUA

(Foto: Schiefelbein/Pool via REUTERS)
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O ótimo Márcio Pochmann fez um post assinalando uma virada para o Oriente nas relações internacionais. Era a observação de que uma fábrica da Ford na Bahia virará uma fábrica de automóveis elétricos chineses, então, nossas relações bilaterais com os EUA estão paulatinamente virando relações multilaterais com os Brics. Tenho vistos outros posts sobre o mesmo tema, inclusive um que insinua que a moeda de conta internacional deixará de ser o dólar, por conta de um acordo Rússia/China (na verdade é um artigo só, repetindo ad nauseam por diferentes “especialistas”), e que assim fugiríamos do sistema de pagamento Swift e da hegemonia do dólar. E que portanto deveríamos torcer pela vitória na guerra da Rússia contra a Ucrânia, pois tudo faz parte de um novo pacote global de um mundo multilateral.

Desconfio deste consenso por várias razões. A primeira de todas e que a estratégia de hegemonia chinesa passa exatamente por uma simbiose comercial e financeira com os Estados Unidos. De um lado há uma guerra comercial e por hegemonia no capitalismo global, de outro lado, A China tem como principal mercado consumidor para suas exportações os Estados Unidos,  a estratégia de competitividade chinesa passa por desvalorização da própria moeda e superavits comerciais, através de uma balança comercial favorável, com produtos que se tornam competitivos em todos os mercados, se comparados com produtos vendidos em euros e em dólar. A China é o maior credor dos Estados Unidos e lucra com o dólar alto e com a hegemonia da moeda americana. Não é interessante para a própria China a queda da moeda americana, ou que ela deixe de ser moeda de conta, já que seus principais ativos estão valorizados em dólar.

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Então, quando vejo artigos que dizem textualmente que a China inaugura uma nova era de transações bilaterais sem o uso do dólar, isto está mais para a fantasia que para a realidade. Mesmo que haja acordos em que o Yuan seja usado em lugar do dólar, para comercializar com o Brasil (usado aqui como exemplo), trocado por reais, ou com a Rússia (trocado por rublos), ao fim e ao cabo, ao se fazer a contabilidade da balança comercial, os saldos serão reconvertidos em dólar, a moeda de conta internacional, e é esta a agressiva política comercial chinesa: comércio favorável, tanto porque seus produtos são mais baratos, em comparação com produtos feitos no centro financeiro do capitalismo (inclusive e também por empresas estadounidenses e europeias sediadas na China), quanto por serem produtos de mais alto valor agregado (mais tecnologia incorporada). Isto está muito longe de ser o fim do swift ou do dólar. Mesmo quando gigantes chinesas ameaçam deixar ou deixam a bolsa de Nova Iorque rumo a How Kong, seu desempenho é avaliado e avalizado em dólares e não em Yuans.

Em segundo lugar porque a China não está propondo uma nova divisão internacional do trabalho, na qual, tanto o fosso tecnológico quanto o fosso financeiro entre países capitalistas centrais e dependentes seja diminuído. País colonial ou neocolonial é aquele cuja acumulação de capital vai se dar alhures. Vejo muita gente mudando o conceito clássico de Imperialismo, criado por Lênin, para que este conceito não seja usado para analisar a economia chinesa ou a economia russa. Mas sim, a Alibaba é tão imperialista quando a Amazon, as empresas de alta tecnologia chinesa são tão imperialistas quanto as empresas de tecnologia dos EUA ou do Japão. As relações bilaterais da China com os países da América Latina ou da África podem ser classificadas como tudo, menos como socialistas, igualitárias ou harmônicas. Vender minério de ferro bruto e receber avião ou celulares em troca é comércio desigual e desvantajoso, seja este feito com os EUA, com a Alemanha ou com a China.

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Assim, um deslocamento de relações puramente capitalistas do eixo EUA/Zona do Euro/Japão para a China não engloba nenhum processo de emancipação econômica, política ou colonial. A China não tem um projeto parecido com a da antiga União Soviética, em que pese todas as críticas ao socialismo realmente existente, no qual o comércio desigual capitalista foi trocado por uma relação de co-dependência, no qual os saldos comerciais não resultavam numa dívida externa impagável ou numa relação de espoliação financeira. Mesmo com a derrota do bloco socialista e com a dissolução da URSS e do Leste Europeu, a antiga União Soviética não executou bilhões de dólares da dívida do Terceiro Mundo e não se tornou dona de empresas em seus antigos países aliados. 

Pode-se dizer a mesma coisa do novo capitalismo chinês? Aliás, temos que dar nome aos bois, a relação da China com qualquer outra nação é uma relação meramente capitalista, que passa ou por estatais chinesas que operam como simples empresas capitalistas fora da China, ou por empresas comandadas por grandes bilionários chineses. Hoje a China é o segundo país que mais possui bilionários no mundo, com 73 entre os 500 mais ricos do mundo. Não, ser bilionário não é um processo socialista, reprodução ampliada da propriedade privada dos meios de produção não é um processo socialista. O híbrido sistema chinês, que combina propriedade estatal e privada internamente, é meramente capitalista nas suas relações comerciais e financeiras internacionais. Isto não significa que a China não seja importante para contrabalançar a hegemonia estadounidense no mundo e que os Brics não devem negociar com a China. Apenas significa que devemos dar nome aos bois, esta forma de comercializar, produtos de alta tecnologia e de alto valor agregado por commodities, não muda em nada a divisão internacional do trabalho e é capitalismo selvagem e desigual, puro e simples, na acepção mais nua e crua da divisão internacional do trabalho.

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Lembrando que a estratégia agressiva chinesa no mundo passa, inclusive, por comprar empresas estatais, nos países com que comercializa, e auferir lucros explorando diretamente concessões em Estados periféricos. A China fez grandes aquisições no Brasil tanto no setor energético quando no setor de mineração. Sim, é estratégico para a China, mas isto está longe de mudar a relação desigual e neocolonialista que o Brasil tem com os países do capitalismo central, pouco importando se a empresa é espanhola, japonesa ou chinesa. 

Há um reducionismo teórico que passa ao largo de analisar estas relações econômicas desiguais e apenas festeja o fato de elas serem feitas com a China. Hoje, a maior parceira externa e financiadora do agro brasileiro é a China. Isto não modifica em nada as relações semifeudais no campo brasileiro nem viabiliza qualquer projeto de emancipação e desenvolvimento nacional. O reducionismo histórico, que faz muito tempo deixou de analisar as contradições do sistema chinês para festejar o “sucesso do socialismo”, também deixou de analisar que o Estado chinês atua como um Estado capitalista em suas relações comerciais, apenas aprofundando a dependência tecnológica, num comércio permanentemente desigual e que chega ao ponto de compras de empresas estratégicas nos países com quem tem relações comerciais.

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Em terceiro lugar porque um deslocamento do eixo econômico do Ocidente para o Oriente não é um processo de emancipação humana ou de alternativa socialista de desenvolvimento. A esquerda internacional tem trocado o objetivo central de emancipação humana/revolução socialista por este discurso reducionista campista de hegemonia global. Nas relações em que a China estabelece com seus parceiros comerciais pouco importa para a China se o novo parceiro é uma democracia, um sultanato misógino, uma tiranocracia semifeudal ou um país socialista. O objetivo chinês é puramente comercial. Se isto tem sido louvado como pragmatismo, isto não muda em nada a correlações de forças no mundo para os que lutam pela emancipação, contra o fascismo, contra o neocolonialismo. A demonstração nua e crua disto se deu quando o Talibã retomou Cabul e vimos parte da esquerda nacional festejar a vitória de uma tirania misogina e anticomunista, simplesmente porque ela não estaria mais no “campo de influência dos Estados Unidos”.

A troca da luta por corações e mentes por uma nova humanidade socialista por este “socialismo a meias”, que é medido apenas por áreas de influência, é de uma pobreza intelectual e conceitual absurda. Antes de tudo, porque todas as contradições têm que ser varridas para debaixo do tapete, para que a esquerda internacional vire uma torcida para uma vitória da China ou da Rússia (confundida torpemente com a antiga União Soviética), numa espécie de tabuleiro de war. A análise dialética desaparece porque todas as contradições reais têm que desaparecer. É só olhar a simplificação teórica que está sendo usada para analisar a guerra na Ucrânia, reduzida a uma disputa entre Otan versus Rússia/China. O povo, ou os povos que residem no território ucraniano desaparecem, as vítimas civis da guerra desaparecem, e a única ótica sob a qual a guerra pode ser vista é se torcemos pelo sucesso da Otan ou pelo sucesso da Rússia. As 43 milhões de vidas envolvidas nesta guerra são um mero detalhe. Ao contrário dos movimentos de solidariedade socialistas relacionados à guerra do Vietnã e da Coreia, do Tribunal Russel de guerra (que inclusive condenava os crimes de guerra até das potências socialistas), do movimento pela paz e emancipação dos povos, o nosso papel seria apenas de torcer para que uma das potências vença a peleja e assim, de forma mecanicista, o novo mundo multipolar surgirá.

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O problema é que este mundo novo multipolar não surgirá, porque nenhum dos problemas da divisão internacional do trabalho capitalista está colocado nesta guerra imperialista por novas áreas de influência. A divisão internacional do trabalho no capitalismo do século XXI se baseia em dois fossos:

1. O fosso tecnológico, que só cresce. O novo capitalismo se divide entre países detentores de tecnologia de ponta e países importadores desta tecnologia. Pouco importa se a nova fábrica de automóveis na Bahia será chinesa, o konw how, a tecnologia não será exportada. O que vem para os países periféricos são fábricas que dependem de altíssima tecnologia, está, continuará a ser produzida alhures e a acumulação capitalista dela se dará no exterior. Uma coisa que a esquerda campista parou de fazer foi a crítica ao fato de que, ao se montar uma indústria estrangeira no Brasil, o grosso de seu lucro vai para a sede, tanto faz ela ser em Pequim ou em Washington. O discurso do emprego e do aumento do PIB soterrou a antiga crítica à dependência às empresas imperialistas (que continuam a ser imperialistas sendo do Japão, da Coréia ou da China). Virar um fazendão dos Estados Unidos ou da China é neocolonalismo do mesmo jeito, não fica mais bonito só porque é tingido de vermelho.

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2. O fosso financeiro também. O comércio desigual entre países centrais e periféricos não diminuiu porque a China entrou na jogada. Não, a China não faz um “novo tipo de comércio”, vantajoso para todas as partes, como a propaganda de certos comunistas (ou ex comunistas?) que fazer parecer. Ela só é um novo agente na disputa pela hegemonia do mundo. Para os países periféricos tanto faz se a acumulação capitalista se dará na bolsa de Nova Iorque ou na bolsa de How Kong. Isto não é um passaporte para um “novo mundo multipolar”, porque os 2 traços principais do capitalismo excludente do século XXI, o fosso tecnológico e o fosso financeiro, só se aprofundam. E não, nem China e nem Rússia jogam qualquer papel contra isto ou propõe uma nova divisão internacional do trabalho. O capitalismo continua igual, os países centrais produzem tecnologia de ponta e lucram com o comércio desigual e por serem o centro financeiro mundial. Os países periféricos vendem commodities e continuam periféricos e sofrem de um novo colonialismo.

Trocar a ideia da emancipação socialista, e de um mundo livre de uma desigual divisão internacional do trabalho, por um capitalismo oriental, tingido de vermelho, está muito longe de ser uma ideia revolucionária ou socialista.

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