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Domenico Corcione

Ex-professor universitário. Ex-assessor direto de Dom Helder Câmara. Longa experiência e publicações em educação popular. Consultor em desenvolvimento social/institucional, junto a OSCs e Órgãos Governamentais, em âmbito nacional

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O novo papa Leão XIV - entre ambiguidades e continuidades

Não se deve esperar deste papa nem a cristalização total do conservadorismo, nem a concretização plena de reformas progressistas

O novo papa Leão XIV - entre ambiguidades e continuidades (Foto: Francesco Sforza/Vatican Media/Divulgação via REUTERS)

A eleição do papa Leão XIV marca mais um capítulo de uma longa história da Igreja Católica, instituição que há séculos administra suas mudanças sob o rigor da tradição e a pressão de contextos históricos em rápida mutação. E, como toda escolha papal, esta também reflete mais as tensões e tendências de seu tempo do que rupturas imediatas.

É importante, desde já, afastar leituras simplistas. Nem otimismo ingênuo, acreditando que Leão XIV promoverá revoluções na estrutura da Igreja, nem pessimismo cínico, como se nada pudesse mudar. A história da Igreja Católica se move justamente nesse jogo de permanências e alterações graduais — e é nesse intervalo que o novo pontificado deve ser lido.

Cenário complexo em que foi eleito o novo papa - A eleição de Leão XIV ocorre em um cenário marcado por ambivalências e tensões acumuladas no mundo contemporâneo e - com fortes reflexos - no interior da Igreja Católica. A Igreja vive, desde antes do pontificado dele, um forte e permanente embate entre forças conservadoras e setores mais abertos a reformas pastorais e sociais, refletindo disputas mais amplas da sociedade global. É necessário compreender o momento atual como resultado da interação de múltiplos vetores de pressão, internos e externos, que atravessam a instituição e moldam suas possibilidades de ação.

No plano externo, a Igreja se depara com o crescimento significativo de comunidades LGBTQIA+ e com suas demandas por reconhecimento, acolhida e dignidade religiosa, assim como o aumento expressivo de pessoas que se declaram sem religião, manifestando rejeição ao dogmatismo institucionalizado e busca de espiritualidades laicas e plurais no mundo contemporâneo. Soma-se a isso a polarização política entre extrema-direita e setores progressistas, as pautas ambientais e de direitos humanos, o irreversível protagonismo das mulheres em todos os setores da sociedade e a emergência e pressão de movimentos decoloniais. Tudo isso incide sobre a Igreja, que - como qualquer sistema social complexo - não consegue controlar os efeitos dessas forças, sendo permanentemente tensionada e desafiada por elas.

Internamente, a instituição convive com divisões profundas entre setores conservadores e progressistas, tensões regionais, especialmente entre a Cúria Romana e as igrejas do Sul Global, crises de credibilidade provocadas por escândalos de abuso sexual e debates doutrinários ainda não resolvidos. Adicionalmente, há crescente questionamento ao celibato obrigatório, bem como aumento de pressões de todo tipo: pela ordenação de mulheres; por mudanças no sistema de governança hierárquico e centralizado; pela superação do “caráter ocidentalizado” que continua predominando no conjunto da instituição; por posicionamentos mais corajosos frente à fome, às guerras e ao colapso climático global. 

O perfil de Leão XIV - É nesse contexto que se insere a figura de Leão XIV, cuja formação revela as ambivalências do catolicismo contemporâneo. Doutor em Direito Canônico e conhecedor profundo das leis e rituais tradicionais da Igreja, ele também traz em seu percurso acadêmico e pastoral elementos de matemática; tudo isso lhe confere um perfil metódico, institucional e preocupado com a ortodoxia normativa. Por outro lado, possui experiência pastoral relevante, especialmente junto a populações empobrecidas em sua região de origem, o que lhe outorga alguma sensibilidade social e percepção das demandas populares.

Essa formação híbrida — entre o jurídico-canonista e o pastoral-social — faz de Leão XIV um papa situado na encruzilhada entre a rigidez normativa e a flexibilidade pastoral. Ele próprio é expressão de tensões que atravessam a Igreja: um pontífice com inclinações conservadoras, mas pressionado também a lidar com os impasses de um mundo em rápida transformação. Essa ambivalência reforça, de um lado, as ambiguidades de um perfil no qual coexistem aspectos progressistas e conservadores; por outro, enfatiza o caráter imprevisível dos desdobramentos de seu pontificado.

Do ponto de vista sistêmico-complexo, nenhuma tendência é inexorável. A atuação de Leão XIV estará condicionada não somente por seu perfil, mas também pelas dinâmicas contextuais, pelas pressões institucionais e sociais e pelos “pontos de bifurcação” que o sistema e a conjuntura podem apresentar. Afinal, em sistemas complexos, inclusive de instituições religiosas, a ordem estabelecida convive com zonas de imprevisibilidade, onde pelo menos algumas transformações podem ocorrer mesmo em estruturas aparentemente rígidas.

Portanto, ao avaliar as tendências de Leão XIV, é imprescindível reconhecer tanto os sinais conservadores de seu perfil e discurso, quanto a possibilidade de que pressões internas e externas — ou eventos críticos — possam vir a alterar – em dosagem imprevisível - o curso de algumas de suas posições. Assim, sua trajetória pontifical precisa ser lida à luz da complexidade e da dinâmica sistêmica de tensões em permanente movimento. 

O que não se deve esperar - A partir das premissas postas acima, não se deve esperar de Leão XIV um rompimento claro e radical com posições dogmáticas históricas. Temas como o celibato obrigatório, o papel da mulher nos ministérios ordenados, a moral sexual tradicional e a centralização do poder em Roma devem permanecer nos mesmos moldes que atravessaram pontificados anteriores.

Da mesma forma, é pouco provável que o novo papa caminhe no ritmo que parte de comunidades locais e de setores progressistas que esperam, sobretudo na América Latina, maior adesão a uma teologia mais explicitamente “da libertação” e, portanto, estruturalmente comprometida com transformações sociais profundas.

As tendências ambíguas - O que se desenha, com maior nitidez, são tendências ambíguas

Por um lado, há sinais visíveis de continuidade com a preocupação social e humanitária do papa Francisco: defesa dos migrantes, apelo pela paz, sensibilidade para com os marginalizados e os pobres. São discursos que Leão XIV já fez questão de reafirmar em suas primeiras declarações públicas.

Por outro lado, suas escolhas por “posturas estratégicas” e por “sinais mais discretos” apontam para uma contenção nas reformas iniciadas por Francisco, particularmente nas que tensionaram setores mais conservadores da Cúria Romana e do episcopado mundial.

O cenário é, portanto, ambivalente: a “continuidade discursiva” pode servir como um freio a mudanças estruturais, mantendo a imagem socialmente sensível da Igreja, mas sem alterar a lógica do poder eclesiástico e dogmático.

Afinal, Leão XIV, como bom leitor da tradição e das conveniências políticas vaticanas, parece disposto a equilibrar-se entre essas forças, sinalizando cuidado pastoral e compromisso humanitário, sem alterar o edifício doutrinal da Igreja Católica.

Postura doutrinária tradicional - A seguir, vai a sinalização de alguns aspectos que evidenciam uma inclinação conservadora.

Quanto à ordenação de mulheres, Leão XIV se opõe à ordenação feminina, argumentando que "clericalizar mulheres não resolve necessariamente um problema"; pelo contrário, “poderia criar novos desafios”. 

Quanto a temas bioéticos, ele mantém posições firmes contra a eutanásia e o aborto, alinhando-se à doutrina tradicional da Igreja Católica. 

Quanto às questões de Gênero e Sexualidade, durante sua atuação no Peru, expressou críticas à inclusão de conteúdos sobre identidade de gênero nos currículos escolares, considerando-os confusos e contrários à doutrina cristã. 

Quanto aos relacionamentos homoafetivos, embora tenha demonstrado certa abertura ao legado pastoral de Francisco, Leão XIV adota uma abordagem cautelosa e culturalmente contextualizada em relação à bênção de casais do mesmo sexo. 

Quanto à “estética e ao simbolismo papal”, em sua primeira aparição pública como papa, optou por trajes tradicionais, incluindo a “mozeta” vermelha e a cruz de ouro, contrastando com a simplicidade adotada por Francisco. Esse retorno à estética clássica é interpretado como um “firme gesto de respeito” às tradições eclesiásticas, com ênfase na reafirmação da autoridade e do poder de um papa. 

Quanto à gestão de Casos de Abuso, Organizações como a SNAP acusaram Leão XIV de não ter agido de forma adequada frente a denúncias de abusos sexuais durante seu período como bispo no Peru, levantando questionamentos sobre seu compromisso com a transparência e a justiça nesses casos. Frente a tais denúncias vem sendo lembrado que os processos estão ainda em andamento, tendo sido encaminhados diretamente pelo então bispo. 

Quanto à escolha do nome papal, ela faz alusão direta sobretudo a Leão XIII, conhecido por sua encíclica Rerum Novarum, que abordou pela primeira vez questões sociais, mas sob uma perspectiva conservadora. Essa escolha simboliza uma intenção de continuidade com uma tradição doutrinária específica.

Em resumo, embora Leão XIV compartilhe com seu antecessor preocupações sociais e uma visão pastoral voltada para as periferias, seus posicionamentos em temas doutrinários, sua “estética papal” e sua gestão de “questões sensíveis” indicam uma orientação conservadora em aspectos fundamentais da Igreja Católica.

Considerações finais - O pontificado de Leão XIV começa sob o signo da ambiguidade. Ao mesmo tempo em que herda o compromisso social de Francisco, oferece acenos à ala conservadora e evita temas mais espinhosos para a estrutura tradicional da Igreja. Uma Igreja em transição permanente, cuja história se faz mais por lentas inflexões do que por rupturas.

Se há algo que podemos afirmar, é que não se deve esperar deste papa nem a cristalização total do conservadorismo, nem a concretização plena de reformas progressistas. Há, sim, um jogo tenso de forças, onde o discurso pastoral será reafirmado e os conflitos internos administrados com a habitual “prudência romana”.

O papa Leão XIV, anteriormente conhecido como Robert Francis Prevost, apresenta um perfil que combina elementos de continuidade com o pontificado de Francisco e sinais claros de conservadorismo em áreas-chave da doutrina e da prática eclesial

Contudo, vale enfatizar que sua trajetória pastoral e as declarações feitas até aqui refletem uma posição que - como todo sujeito inserido num sistema complexo - não está blindado às reconfigurações de rota.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.