O Núcleo do Demônio
O país, como os físicos, aprendeu que certos núcleos não se estabilizam, apenas se contêm. E Lula, no centro do laboratório, é o operador que cuida
Existe na física nuclear um conceito chamado criticidade. É o ponto exato, o limiar preciso, em que uma massa de material físsil se torna autossustentável e libera sua energia de forma catastrófica. Antes desse ponto, ela é apenas uma promessa de poder, um objeto de imenso potencial e perigo inerente. Depois, é uma força que contamina tudo o que toca. A história política recente do Brasil pode ser lida como um manual de instruções sobre como levar um núcleo instável, guardado por décadas na prateleira de curiosidades da República, até esse ponto de ebulição.
Minha metáfora se ancora em um artefato real e sinistro: uma esfera de plutônio de pouco mais de 6 quilos apelidada de Núcleo do Demônio. Em 1945, nos laboratórios de Los Alamos, um jovem físico deixou cair um tijolo de tungstênio sobre o núcleo e produziu um clarão azul que o matou em 25 dias. Nove meses depois, outro cientista, confiante demais, decidiu repetir a experiência diante de uma plateia. Em vez dos calços de segurança, usou uma chave de fendas para manter os hemisférios de berílio separados. A ferramenta escorregou. O clarão voltou, a morte também. Um erro nascido da negligência, outro da soberba. Assim o mundo aprendeu que até a ciência tem seu limite de vaidade.
O Brasil, por sua vez, decidiu testar o seu. A montagem do desastre político seguiu roteiro semelhante. O primeiro acidente, a eleição de 2018, foi o equivalente ao erro por descuido. Facções da elite brasileira, convencidas de que poderiam manusear o volátil núcleo bolsonarista, deixaram o tijolo cair. Acreditavam estar empilhando com cuidado as peças de um experimento controlado, mas o clarão do resultado eleitoral liberou uma radiação de toxicidade que escapou do laboratório e incendiou o país. O discurso de ódio e os ataques às instituições envenenaram o corpo político, enquanto os operadores, surpresos com a própria obra, corriam para se proteger da radiação que ajudaram a soltar.
O segundo acidente, o do tarifaço de 2025, foi a encenação da imprudência. Já fora do poder, o núcleo familiar decidiu fazer cócegas na cauda do dragão, uma expressão usada entre os físicos de Los Alamos para descrever o ato de brincar com o perigo e provocar o desastre com a ponta dos dedos. Usaram sua influência internacional como chave de fendas para pressionar o sistema judicial brasileiro. A chave escorregou. O resultado foi um clarão econômico de 50% de tarifas e um desastre diplomático que atingiu em cheio a credibilidade do clã. A tentativa de provar poder terminou revelando apenas a irrelevância. A radiação política dessa jogada queimou a última camada de prestígio da família, enquanto Lula e Trump, em um inesperado rearranjo atômico, descobriram uma química pragmática que, por quanto, neutralizou o núcleo radioativo.
Foi um episódio de rara ironia histórica. O sindicalista de São Bernardo, que sempre usou o calor como metáfora da luta, acabou atuando como técnico de resfriamento em um laboratório internacional. Enquanto o bolsonarismo ainda tremeluzia em delírios nucleares, Lula ajustou as válvulas da temperatura global, controlou a pressão e converteu o clarão em negociação. A química entre ele e Trump não nasceu de afinidade ideológica, mas de uma reação controlada. O metal pesado da arrogância estadunidense foi neutralizado pela maleabilidade brasileira, um composto improvável que estabilizou o ambiente e, de quebra, expôs a falência do populismo tóxico exportado por Eduardo Bolsonaro.
Hoje o que resta é a precipitação radioativa. O núcleo em si entrou em processo visível de decaimento. Seu patriarca está inelegível, os filhos oscilam entre o negacionismo e a autoparódia, e a antiga coesão foi reduzida a partículas isoladas de ressentimento. A ameaça, no entanto, não desapareceu, apenas mudou de estado. Já não se trata de um colapso súbito, mas de uma contaminação crônica. As partículas de extremismo, desconfiança e teorias conspiratórias continuam no ar, com meia-vida longa e efeitos difusos sobre o corpo social.
O país, como os físicos de Los Alamos, aprendeu que certos núcleos não se estabilizam, apenas se contêm. E Lula, no centro do laboratório, é o operador que segura o instrumento com firmeza e cuidado, consciente de que cada gesto mal calculado pode reacender o clarão. Mas a elite e a imprensa que um dia alimentaram o Núcleo do Demônio continuam em busca de novos materiais reativos. Já não apostam em Bolsonaro, mas seguem fascinadas pela promessa de outro plutônio político, outra partícula capaz de incendiar o país em nome de seus interesses. A democracia brasileira respira com máscara, tentando descontaminar a própria respiração, enquanto o presidente opera entre reatores, ajustando pressões, dosando reações e equilibrando a radioatividade deixada por seus antecessores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




