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Carlos Serrano Ferreira

Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ e doutorando em Ciência Política pelo ISCSP da Universidade de Lisboa. É vice-coordenador do LEHC-UFRJ

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O ódio e a classe média

O tema do ódio é talvez o mais atual no mundo, com a reemergência do fascismo, mas também no atual momento brasileiro. Se ele não explica o golpismo permanente que assola o país – os sucessivos golpes palacianos e institucionais – nos ajuda a entender o motor para a ação das massas no apoio ao mesmo

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Em 13 de julho de 1936, o coronel fascista José Moscardó Ituarte, que havia tomado desde o início do golpe franquista o Alcázar, em Toledo, onde se localizava a escola de infantaria, mantinha sob prisão ilegal militantes democratas. A fortaleza estava sob cerco das milícias legalistas republicanas sob direção do chefe local da Izquierda Republicana e secretário do colégio de advogados de Toledo, Candido Cabello. Este conseguiu aprisionar o filho de Moscardó, Luís, um estudante de vinte e quatro anos. Na tentativa de interromper as batalhas e salvar vidas, e acreditando no amor paternal, Cabello faz uma ameaça ao fascista, dando um ultimato de que fuzilaria o filho do mesmo se não se rendesse em dez minutos. Não foi isto o que aconteceu. Para apelar aos sentimentos paternais e comprovar a ameaça, colocou os dois no telefone, e se deu o seguinte diálogo:

- O que há, meu filho?

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- Nada. Falaram-me que vão me fuzilar se o Alcázar não se render, mas não se preocupe por mim.

- Se isso é verdade, encomenda a tua alma a Deus, dê um viva ao Cristo Rei e à Espanha e serás um herói que morre por ela. Adeus, meu filho, um beijo muito forte!

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- Adeus, papai, um beijo forte!

Volta ao telefone Cabello, a quem o fascista diz: - Pode economizar o prazo que me deste e fuzilar logo meu filho, o Alcázar não se renderá jamais¹.

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O que se passou depois não se sabe ao certo. Alguns afirmam que o mesmo foi executado, mas muitos outros afirmam que foi apenas preso. Estas histórias particulares são difíceis de precisar em guerras.

Oitenta anos depois, em 25 de agosto, ocorre o primeiro debate entre os candidatos à prefeitura do Rio de Janeiro, organizado pela Rede Bandeirantes. Flávio Bolsonaro, o candidato do PSC e filho do conhecido defensor do regime empresarial-militar fascista instituído pelo golpe de 1º de abril de 1964, passa mal em pleno ar. Este foi o fato mais notável no morno programa televisivo, ao lado do veto ao nome do candidato Marcelo Freixo, do PSOL. Contudo, o mais surpreendente não foi o desfalecimento dele, mas sim a reação de seu pai, o deputado federal Jair Bolsonaro, que recusou o auxílio da médica e candidata do PCdoB, Jandira Feghali, afirmando que ela “daria estricnina” ao filho, o que só pode ser explicado pelo ódio ideológico. Ressalve-se que a assessoria de Flávio lançou posteriormente uma nota aonde agradecia ao auxílio de Jandira e do tucano Osório.

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Os dois casos sempre me chocaram muito, e acredito que choque a você leitor. Afinal, nada mais sagrado para a maioria de nós que o amor paternal. Amor arraigado nos recônditos mais profundos dos sentimentos, talvez o mais instintivo e natural, o de proteção da prole. É claro que essa expectativa nem sempre é realística. Infelizmente, abundam os casos de abandono parental, de abusos e de maus tratos. Famosos eram os sofridos pelo jovem Friedrich, príncipe herdeiro da Prússia e que se tornaria Frederico II, o Grande. Este passava maus bocados nas mãos de seu pai, o rei Frederico Guilherme. O pequeno “Fritz era espancado a intervalos regulares”² pelo seu pai.

O que mais me choca nesses casos é que na luta entre o amor do pai pelo seu filho e o ódio ao inimigo de classe, tenha vencido o segundo nos dois casos. Contudo, a história deveria nos ensinar que isto não é tão incomum. Mais do que isso: deveria nos ensinar que, em um mundo cindido em classes, devemos deixar de lado como realidades – e mantermos apenas como objetivos futuros a serem alcançados – abstrações como os sentimentos universais de amor e ódio, e a suprema abstração chamada Humanidade. Infelizmente, não podem existir numa sociedade classista o amor puro e o ódio puro, mas apenas o amor e o ódio voltados a algo e contra algo, e que se encontram numa dialética profunda em que um não se dissocia do outro, mas se confundem. Não no sentido da hipérbole oriental, que para reforçar a ordem de amor, causou tanta confusão e debates em Lucas 14:26, onde para afirmar o amor acima de todos à Deus, utiliza o termo de ódio a toda família e a si mesmo. Aqui na verdade há uma escala de amor, e o termo ódio existe apenas para reforçar o maior sobre os demais. Não, não é nesse sentido que uso, mas para afirmar que o amor à liberdade é o ódio à opressão e o amor ao explorado é o ódio ao explorador, tal qual o amor à opressão é o ódio à liberdade e o amor ao explorador é o ódio ao explorado. Numa sociedade de classes o amor a um é, sempre, o ódio ao outro. E, mesmo os amores, como os ódios, disputam espaço nos corações dos indivíduos. No caso de Moscardó e Bolsonaro, tendo ou não consciência disso, o ódio de classe venceu o amor aos seus filhos.

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O tema do ódio é talvez o mais atual no mundo, com a reemergência do fascismo, mas também no atual momento brasileiro. Se ele não explica o golpismo permanente que assola o país – os sucessivos golpes palacianos e institucionais – nos ajuda a entender o motor para a ação das massas no apoio ao mesmo. Em particular, sobre o principal agente de massas, que já servira ao mesmo fim em outros países, com similares objetivos e senhores: a classe média.

Porque a classe média – com notáveis e escassas exceções – odeia tanto? Odeia o Lula, odeia o PT, odeia os sindicatos, e odeia a esquerda (ao confundi-la toda com o PT)? O exercício de explicação não pode passar pelo seu discurso, que tal como em 1964, se fantasia da luta anticorrupção. Afinal, a corrupção não nasceu com o PT, nem alcançou seus píncaros sob os governos do mesmo. As panelas que batiam contra a Dilma silenciaram mesmo diante das sucessivas denúncias que atingem, como uma estaca, o coração do governo golpista, inclusive a figura sombria que o encabeça. Reina o silêncio, do Leme ao Pontal, mas como dizia Tim Maia, “sem contar com Calabouço, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha”. As castigadas panelas e os ouvidos sensíveis agradecem, mas a democracia não. Na verdade, essa parcialidade dos panelaços é histórica. Se contarmos apenas o período de redemocratização e sobre o tema de corrupção, onde estavam os batedores de panelas quando do escândalo do contrabando das pedras preciosas ou das concessões de rádios e TVs no governo Sarney? Onde estavam quando os jovens saíam às ruas contra Collor? Quando os trabalhadores lutavam contra as privatizações tucanas, escandalosas e corruptas, que entregaram as riquezas nacionais aos piratas corporativos estrangeiros que, ao invés de canhões, usavam moedas podres e contatos privilegiados? Onde estavam no escândalo do SIVAM? Onde estavam as panelas, que permaneceram incólumes, quando num golpe se mudava as regras no meio do jogo, com a compra da emenda da reeleição de FHC? Ou na maxidesvalorização, maxi-estelionato eleitoral? Ou no escândalo do BANESTADO? Onde estava quando do Tremsalão ou da Máfia da Merenda?

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O ódio seletivo precisa ser explicado. E, esta explicação está no que é a atual classe média brasileira e sua posição na sociedade brasileira. Fujamos de ficções conceituais como classe C ou da suposta ascensão da mesma. Nem creiamos que a classe média é uma classe, na verdade. A classe média é um amálgama, um “mix”  de frações de classe, um “combo” de setores sociais, que junta no mesmo bolo trabalhadores de alta renda (“a aristocracia proletária”); trabalhadores intelectuais de extração superior, funcionários públicos civis e militares e líderes religiosos; a velha pequena burguesia, entre eles os profissionais liberais (muitas das vezes já proletarizados); os burgueses de baixo calado, que habitam a zona cinzenta entre o pequeno-burguês e o grande monopólio; e, o setor de baixa e média gerência, que não participa de fato dos lucros da gestão do grande capital. A sua posição se define fundamentalmente por sua posição intermediária entre as classes extremas da sociedade brasileira, estando espremidos entre uma reduzia burguesia monopólica de grande riqueza e altíssima renda e uma massa proletária, subproletária e lumpenproletária, do campo e das cidades, completamente miserável. Mas, afirmar que estão numa posição intermediária não significa que estão eqüidistantes entre o topo e a base. Não. A nossa desigualdade é tão brutal que faz com que a elite – aqueles que se encontram na lista de bilionários da Forbes Brasil – esteja tão distante, nos céus, quase que compondo um Olimpo tupiniquim, que a classe média não a enxerga, mesmo que estique ao máximo seus pescoços. A classe média não enxerga através das nuvens, ou apenas vislumbra uma refração óptica de si mesma nelas. Já a massa miserável dos superexplorados – que tão bem explica Ruy Mauro Marini – estão no Hades da classe média, aquele mundo subterrâneo grego que está abaixo dela, mas num precipício não tão profundo e distante, a quem eles podem admirar e temer todos os dias, seja ao olhar para as calçadas de suas ruas, ou no exercício de olhar para cima em busca da elite e verem as favelas que lhes “ameaçam”. Tal qual a espada de Dâmocles, a pobreza é uma ameaça que paira permanentemente sobre as suas cabeças. Ou melhor, sob seus pés, pois um mero tropeço na escada social pode lançá-los no inferno da miséria.

Como explicou José Augusto Guilhon de Albuquerque³, a industrialização brasileira e a entrada dos monopólios internacionais mudou a classe média brasileira. No passado, seus membros se utilizavam de posições no Estado para acumular riqueza suficiente e se converterem em proprietários. Se isto não alterava fundamentalmente a sua posição no conjunto da sociedade, os faziam avançar internamente à própria classe média, e os afastavam da decadência social. Com as mudanças, que Guilhon de Albuquerque já apontava ocorria nos anos quarenta e que se fortalecem nos anos 50, a classe média passa a ter essa via de ascensão bloqueada, não conseguindo mais se converter em proprietária. Seus canais de ascensão passam a ser as carreiras de Estado – para a qual acrescento eu, os conchavos e indicações eram importantíssimas, ou seja, em bom português, o recurso à corrupção – ou como gerentes nos monopólios transnacionais que se instalavam, particularmente a partir do período JK. A carreira nas forças armadas era outra via, mas que contemplava também, ao menos no caso do Exército, setores populares. Isso é o que explica que as demandas por reforma universitária e o problema dos excedentes universitários se intensificassem nessa mesma época. Afinal, o título acadêmico era a passagem certa para a ascensão social.

Como eu já disse, a desigualdade brasileira é tão grande que a classe média, ao não ver a elite acima, se crê no topo da pirâmide, se crê ela própria elite. É a “síndrome da Atlântica”, prima rica do que minha esposa batizou de “síndrome de Bruno”, que vitimou o PT que, tal qual o goleiro Bruno do Flamengo, acreditou que era de elite, que tinha os mesmos privilégios da elite, que poderia ficar impune como a elite, sendo aceitos como iguais. Este foi um engano terrível do PT, o de acreditar que a verdadeira elite brasileira fosse aceitar normalmente, democraticamente, em seus palácios e salões, esses intrusos sindicalistas, mesmo que fantasiados com ternos caros. A elite brasileira nunca perdoou a origem popular petista, e só os aceitou em seu meio enquanto estes eram necessários ao atendimento e defesa de seus interesses, os expulsando como cães sarnentos quando já não precisavam mais.

Por causa da “síndrome da Atlântica”, a classe média vê como ameaça a si mesma qualquer ameaça à elite. Como não pode mais se diferenciar das massas pela propriedade, a classe média passa a se diferenciar, como forma de diminuir seu medo da decadência social, pelo consumo. Aí está a raiz da “goumertização” de tudo, do rechaço a viajar em aviões com setores populares, e do ódio elitista à cultura popular. Aí está a origem de seu reacionarismo feroz e de sua rejeição à democratização social. A classe média defenderá com unhas e dentes a ordem que garante a desigualdade e as diferenciações. Aí está a raiz do ódio da classe média.

A classe média não odeia o PT por motivos justos. Ela não odeia o PT este ter frustrado as expectativas de transformação profundas que despertava. Não odeia o PT por não ter feito as necessárias reformas agrária e urbana; por não ter mexido nos ganhos dos rentistas e especuladores, nem dos grandes monopólios; por não ter revertido a privataria; por não ter repudiado as dívidas externa e interna, que além de ilegítimas tragam os recursos necessários à população, ou por um longo etc.. A classe média não odeia o PT por ter feito uma reforma previdenciária que prejudicou ainda mais os servidores públicos ou por Dilma ter aplicado a receita que beneficiava ao grande capital logo após ter assumido o segundo mandato, e após uma eleição em que esse programa de transferência de recursos ao setor financeiro fora fragorosamente derrotado. Como tenho alertado, o PT não caiu por ser muito progressista, mas por não poder ser tão reacionário quanto neste momento de crise a burguesia precisava. Já tinha chegado ao nível máximo de concessões que podia fazer sem perder completamente suas bases sociais, o que o levaria a deixar de ser parte interessante e interessada na sustentação da ordem liberal brasileira.

Não, a classe média odeia o PT pelos poucos pontos positivos de seus governos, pelo que garantiu de bom, ainda que não compensem o conjunto da obra. A classe média odeia o PT pelas cotas na universidade e a expansão de vagas, pois estas acabaram com o último espaço de diferenciação e privilégio material entre si e os setores populares. Odeia o PT e seus governos pelo estímulo ao consumo – ainda que inviável no longo prazo sem a ruptura com a nossa dependência. Odeia por ter que conviver no mesmo voo ou em restaurantes com alguém do povo, alguém fora dos seus “padrões estéticos”. Odeia ver que produtos que antes estavam apenas a disposição deles, passaram a estar acessíveis ao povo. Odeia por ter visto os cinemas lotados, ou pelos sacrossantos redutos da alta cultura, os museus serem visitados em massa. Odeia ver que um dos últimos privilégios que tem em comum com a elite de verdade, de ter empregadas domésticas superexploradas, é ameaçado pela concessão de direitos, verdadeira alforria tardia a essas sofridas mulheres. Odeia ver negros – ainda que por pudores ou por medo de processos não afirmam publicamente, mas consideram inferiores – comporem posições de poder e destaque no governo. Odeiam ver aproximação de “seu país”, só seu, com os pobres do mundo, os países do Terceiro Mundo, com Cuba de Castro e a Venezuela de Chávez. Odeiam até mesmo ver um sindicalista nordestino frequentar o salão oval de sua nação preferida, os EUA, que eles mesmos nunca botarão os pés. É por isso, pelo ódio à ascensão – ainda que aparente e, na maioria dos casos, imaginária – dos setores populares, que ameaça a sua posição, que a classe média odeia o PT.

O ódio é o irmão do medo, neste caso, do medo de que os favelados um dia desçam os morros e as almas vivas dos miseráveis possam sair do Hades que estão relegados pela miséria. O perigo é que tamanho ódio das classes médias, sob comando e inspiração da elite e de seus meios de comunicação, arraste tudo como um tsunami. O perigo é que essa vaga destrua com as importantes – ainda que limitadas – liberdades democráticas. O fascismo não está nos anos 30, 60 ou 70, está ali, na próxima esquina da Avenida Atlântica.

Notas:

1 - Esta conversa e os debates em torno ao cerco do Alcázar de Toledo estão no capítulo dedicado ao tema em MOA, Pío. Los mitos de la Guerra Civil. Barcelona: Planeta DeAgostini, 2005.

2 - WALTON, Stuart. Uma história das emoções. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2007, p.54.

3 - GUILHON-ALBUQUERQUE, J. A. Movimento Estudantil e Classe Média no Brasil. In, J. A. Guilhon Albuquerque (org.). Classes Médias e Política no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1977.

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