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Rogério Puerta

Engenheiro agrônomo, atuou por doze anos na Amazônia brasileira em projetos socioambientais. Atuou em assentamentos da reforma agrária no Distrito Federal por dez anos e atualmente vive em São Paulo imerso em paixões inadiáveis: música e literatura. Escreveu diversos livros

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O olhar pidão da fome

Se o sujeito famélico fizesse cara de cachorro pidão talvez conseguisse melhores resultados

(Foto: ONU/ONG Ação da Cidadania)
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Só os cachorros mesmos, e cadelas. Nem os cavalos, gatos, o peixe-dourado do aquário que nem pálpebras tem. Não se trata de um olhar direto bem em nossos olhos humanos, o que já é um bocado de coisa. O olhar dos cães em geral é um olhar de súplica, salvo quando querem nos atacar ou nos estranham, mesmo assim o fazem magistralmente, mirando bem direto ao fundo de nossos olhos. Percebem a linguagem corporal humana, e o fazem em contexto, a percebendo enquanto desvendam o que há por detrás de nossas vãs retinas.

Mas os cães mentem, a ciência comprovou, simulam não terem recebido um biscoito canino para recebê-lo em dobro após a encenação. Para isto fingem tristeza, vocalizam gemidos de angústia. Se não é possível confiar cem por cento no olhar de um cão, mesmo que você seja o tutor dele, então por óbvio não é possível confiar em olhares humanos, mas se faz necessário aguçar a sensibilidade. Os olhares de comiseração, de fragilidade e apelo, o olhar de um idoso pedinte de rua em trapilhos sentado ao chão imundo. Provável que com seus dois ou três cães fiéis ao lado.

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O dó, palavra masculina, normal falarem "A dó que senti foi imensa". Se alguém fala "O dó que senti" olharão de forma estranha. Furto famélico. A nossa instigante língua portuguesa, termos adormecidos que são resgatados à contemporaneidade. Roubar ou furtar para se manter vivo. Atual.

O mundo pós-pandêmico, após tanto sofrimento, após arrefecer temporariamente a onda neofascista local, esperemos, será um mundo um pouco diferente onde nos toque mais o olhar de um humano comparado ao olhar de um cão? Mundo cão. Por esta expressão não é um bom mundo, ou cão comendo cão, outra expressão a denegrir os cães. Briga de cachorro grande. Denegrir não tem conotação racista, alguns discordam.

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Periferia de São Paulo, um ponto específico antes considerado dentre os lugares no mundo de maiores taxas de homicídios. Um escritor lá nascido e criado, internacionalmente reconhecido, ele entrevista para seu programa na internet um candidato a deputado federal, proeminente advogado a, oxalá, se eleito contrapor lavajatistas no Congresso Nacional.

Falavam na entrevista sobre a atual miséria, ao que o escritor desafiou o advogado: "Vamos descer aqui, comer em qualquer boteco, se formos vai ter alguém pedindo pra gente pagar um salgado, com fome". Quem tenha ojeriza ou chilique frente aos pobres pode imaginar sentado em trono esplêndido: "Mas nem tá com cara de tanta fome assim". Aporofobia reaquecida de desejável ostracismo léxico, um pré-conceito frente aos miseráveis. Instigante língua portuguesa.

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Se o sujeito famélico fizesse cara de cachorro pidão talvez conseguisse melhores resultados. Bem daquele jeito, olhando meio de soslaio, movendo as sobrancelhas de forma enfática, com olhar abatido e caído, disto nem precisa representar, está mesmo abatido e desnutrido. O cão pidão representa bem mais, faz a mesma cara estando com fome ou não, mirando diretamente aos olhos humanos. O sujeito pedinte da loja de salgados na periferia tem mais pudor, bem sabe que muita gente não gosta que fiquem as olhando direto aos olhos.

Você comprova, e bem pior ainda, nem precisa ser onde há comida, ocorre em todo lugar. Em vagões de metrô sempre entra gente desesperada. Em meio à viagem passam a descrever o sofrimento recente, alguns de mãos com uma criança, pequena e de roupa desbotada e muito usada, nem pedem dinheiro, pedem alguma bolacha, algum resto de lanche, o que houver.

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O mundo pós-pandemico sentiu impactos econômicos. Uns aproveitam e lucram, sempre assim, quem vendeu álcool em gel no primeiro trimestre de 2020, as funerárias, mas são a grande minoria. Em geral se perde, o PIB retrai, comparado aos países afora o PIB do Brasil está lá atrás de concorrentes, pior, com inflação assombrando e, bem pior, sem propostas concretas e de mínimo consenso entre os estudiosos, sejam liberais ou progressistas.

Ultraliberais aí excluídos, deles nada de bom pode vir, salvo alguém considerar que o modelo econômico belicista e oligopolista estadunidense seja de fato bem-sucedido, fazendo vistas grossas e ouvidos moucos ao que há por debaixo do tapete da prosperidade ianque.

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Pedintes sempre houve, em qualquer lugar do mundo. Há monges budistas mendicantes por escolha e por vocação, um voto de pobreza e um louvável exercício de desapego. Há tantos outros pedintes, por desespero e desesperança. Sempre haverá gente batendo às portas de casas nos bairros, tocando campainha, pedido algo, também nas ruas, gente pelas calçadas imundas, sim, seus fiéis cães ao lado.

Capitalismo financeiro. O mundo é capitalista, mas há níveis e intensidades, enquanto os muito ricos forem privilegiados em detrimento da massa trabalhadora e explorada não haverá paz estável. José de Castro, um iluminado, bem disse há décadas. Amenizar iniquidades sociais dentro do capitalismo, dizem ser possível, precisa ser possível.

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Anteontem você passou na padaria da esquina, era domingo, de domingo montam a tevê de cachorro com os frangos corados rodando em espetos, exalando cheiro delicioso de tempero, aroma convidativo. Não mais tevês de cachorro, agora são atrativos visuais de gente. Gente que olha para os frangos assando e para os clientes destes, gente famélica que tomou o lugar dos cães.

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