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Marconi Moura de Lima Burum

Mestrando em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, pós-graduado em Direito Público e graduado em Letras. Foi Secretário de Educação e Cultura em Cidade Ocidental. Trabalha na UEG. No Brasil 247, imprime questões para o debate de uma nova estética civilizatória

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O original do originário, o meta-originário e a tese do marco temporal

Se devemos zelar pelo saber originário da constituição, devemos mais ainda zelar pelo saber meta-originário das florestas

Bruno Pereira (Foto: Reprodução/TV Globo)
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Os povos indígenas são, indubitavelmente, os povos originários. Originário, pelo dicionário Aurélio, quer dizer: “1. Que tem a sua origem em; oriundo; (...) 3. Vinculado às origens; que não se alterou”. Originário deriva, portanto, da partícula original.

Na teoria constitucional passa-se a estudar uma categoria autoral-normativa, protagonista, mobilizadora e deliberativa denominada por constituinte originário. Este, por sua vez, grosso modo, refere-se ao sujeito escolhido pelo povo para elaborar, recepcionar, discutir e aprovar teses, conteúdos e programas para uma constituição nacional que, para o Brasil, promulgaram a Carta Cidadã de 1988.

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No entanto, há uma semântica que exorbita a uma hierarquia simbólica e que não pode ser ignorada. Vejamos. Os povos originários não precisam ser a maioria quantitativa para serem respeitados por seus originados, esta maioria factual de quantidade por força de um evento colonial em descontrole (nas múltiplas dimensões). Isto é, se avocamos uma analogia, imaginemos uma mãe e um pai que dão à luz (enviam à vida e ao devir e desfrute da vida) 11 filhos. Em máxima matemática, os 11 formam uma maioria material, todavia, os 2 – originários – são maioria extra-funcional, isto é, deles derivam os cuidados, as noites de sono perdida, os ensinamentos de base à existência e convivência, a alimentação, o servir a água nos tempos da sede, o trabalho de serviço ao lar e à sobrevivência da prole e tanto mais. Entretanto, há mais: a espiritualidade da casa, o sensacional das partilhas em família, o suporte emocional e estrutural nas lacunas da existência, os escambos culturais, a saber, dá-se todos estes artefatos acumulados da experiência em troca de sorrisos e algumas pitadas de respeito.

Sim, parece uma sociedade complexa, uma relação sofisticada – e o é –, contudo, não passa de uma relação verdadeira de família. É assim que se pressupõe nossa relação com nossos parentes. 

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Ao exemplo que trouxemos acima, compõem-se esta semântica que mencionei a cosmologia, a cosmogonia e a cosmovisão dos povos originários. São nossos pais e mães que estavam na “casa originária”, ou seja, no Brasil muito antes de nascermos. E quando nascemos, acolheram-nos com todo carinho, deram-nos de beber (e cuidam para que nossos rios continuem a nos oferecer a água), deram-nos de comer (e zelam pelo equilíbrio das chuvas e dos ciclos das florestas, o que faz ter o alimento em produção liberal – que foi a opção dos filhos). E nos emprestam um acervo cultural que nos completa como sujeitos em constituição.

Irão nos cravar a fala: mas estes “pais” e “mães” já morreram, isto é, assim como nós, que somos “filhos”, os novos indígenas não passam de filhos dos indígenas. É aí que reside a grande diferença. Os povos originários “não morrem”; encantam-se, e nessa passagem de revezamento espiritual, o corpo e o material são meros eventos da temporalidade. Embora precisemos deixar bem claro: é importante a vida dos indígenas neste plano material, tanto quanto a nossa própria vida. Contudo, sua visão de mundo é muito além da nossa; não se trata de uma compreensão egoística de metrificada quantidade de feitos e limitada percepção do horizonte à frente de nossos olhos. Essa cosmovisão não possui etiqueta de preço – como um pacote de arroz no supermercado, ou um aparelho celular na vitrine de um shopping qualquer –, portanto, não é medida na quantidade de moedas que temos no bolso. O indígena de 1.500 (quando os portugueses atracaram aqui em Pindorama) é o mesmo indígena que está rangendo o som de seus maracás na luta pela liberdade nas manifestações que ocupam a Esplanada dos Ministérios, em Brasília nos dias de hoje. 

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Em síntese, para que fique melhor compreendido, os povos originários, em todas as eras e séculos, passam seus saberes e viveres uns para os outros, trocam experiências, sentimentos, espiritualidade e compartilham a cultura e o alimento. Além disso, têm na floresta (no território) o grande oráculo, o templo destas compartilhas. E esta floresta (território) conversa com os povos indígenas e lhes diz o que foi conversando pelos seus ancestrais. Há, portanto, permanente troca de corpo material, mas uma só vivência. É como se não morressem, de fato, porém, ressuscitassem nas árvores, nos rios, nas montanhas para continuarem a conviver com as intergerações que se surgem na continuidade do ciclo cosmo-cultural. 

Vejamos o nos ensina este excerto retirado do livro, “O Direito Achado na Rua”, Volume 5, nesta essência: “O território é um fator determinante para a conexão entre os povos indígenas e suas divindades ancestrais, sendo elemento constitutivo dos vínculos entre eles estabelecidos. Assim como o ar que respiramos, o território está no interior de cada indígena, está no céu, no fluxo contínuo das águas de um rio que se renova constantemente. Está nos espaços coletivos de resistência, como o chão da sala de aula de uma universidade.”[2] 

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Entretanto, para que isso – que é direito de todos, sejam em grande quantidade de gentes, sejam pequenas comunidades numéricas – continuem a existir e repetir os ciclos, é fundamental a coexistência com as montanhas, rios, florestas (território); é fundamental que não os expulsemos de suas espiritualidades e do cordão umbilical que permite essa constante deriva existencial.

Parece-nos óbvio que todos têm direito à vida; que não há na lógica moral, ética, axiológica que uns têm direitos de viver e outros podem (ou devem) simplesmente morrer. Em primeiro plano, não há contradição aqui entre a vida e morte dos povos originários. Faltou mencionar uma coisa: se estão interconectados, pele e corpo do povo com a espiritualidade, a cosmovisão e a Natureza, também precisamos deixar claro que uma destas pontas não pode ser extinta sob o risco lógico de sucumbir as outras partes deste processo sensacional. É que ambos se cuidam, se protegem, se acariciam no afeto máximo da generosidade da partilha.

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Contudo, se nada do que eu disse acima é capaz de te sensibilizar – porque você entende que o seu saber e a sua visão de mundo é fechada e não se pode abrir a outra percepção e outro conhecimento – então apelo ao pragmatismo da sua própria vida. Como assim? Preciso te contar que o tal do “tem muita terra pra pouco índio” é uma grande falácia incapaz de revelar a verdade implícita para você. Os povos originários não sugam da terra os minérios e os recursos biodiversos, nem devastam as florestas para pasto de gado, ou para o plantio de soja (sempre me perguntei quem come soja para ter tanta soja plantada e desmatando mais florestas para mais soja plantar).

A agricultura, a criação de animais e mesmo a extração dos frutos das árvores é feita de forma sustentável, em pequena escala, apenas para a alimentação básica destes povos da aldeia. Não é para a venda no supermercado, não é para o acúmulo de dinheiro. E por que estou te contando isso? Porque aquela terra imensa que os povos indígenas detêm o direito, eles a estão protegendo para que não sequem os rios, para que equilibre as chuvas e o clima para que nós, aqui, povo da cidade, possamos comer e beber e viver – sempre. Ou seja: os povos originários – em pequena quantidade de indivíduos – estão ajudando a salvar (e manter) as condições de vida aos “brancos” (todos não-indígenas) em grande quantidade de habitantes – e proporcional incompreensão civilizatória.

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Por finalmente, retomando o começo deste texto que espero que nos ajude a refletir nosso pensamento – que confundiram ao longo dos anos. Se os povos originários são, em hierarquia simbólica, mais importantes que os constituintes originários, porque a natureza de um remete ao saber e acúmulo tradicional passado por todas as gerações e trocados com os saberes da Natureza; e a natureza do outro é de ordem política, organizada pela institucionalização funcional que deriva do formal da cultura, destarte, da burocracia, portanto, uma invenção dos homens e não da Natureza, haveremos de compreender que a tese do Marco Temporal é uma falácia sistêmica (melhor dizendo: político-capitalista), isto é, uma invenção hipócrita incapaz de se sustentar numa verdade axiológica e mesmo ontológica no uso do bom senso institucional.

É fundamental fazermos um parêntese derradeiro: não estou a dizer que o constituinte originário não é importante. Ao contrário: totalmente relevante no processo histórico de construção civilizatória. Entretanto, querer jogar “palavras na boca” dos constituintes de que eles estabeleceram um Marco Temporal implícito para o direito – em decadência – aos territórios dos povos indígenas é uma completa injustiça com ambos os originários. Por conseguinte, decidir por esse caminho não passará de um malabarismo retórico artificial e movediço que não se sustenta na gramática eternizada na espiritualidade e vivência das florestas.

Isto posto, se devemos zelar pelo saber originário da constituição, devemos mais ainda zelar pelo saber meta-originário das florestas. Com essa autoridade não se discute; respeita-se![3]

………………………….

[1] Este texto é uma homenagem ao guerreiros, Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados covardemente neste mês do junho (histórico) de 2022, sobretudo, por força da (anti)gramática do passamento da boiada (cultura jurídico-política do Governo Bolsonaro) e pelas injustiças neocoloniais que não deixam em paz – nunca – a Amazônia e os povos indígenas. #Bruno-DomPresentes!

[2] ALMEIDA, Joanderson Gomes de; BOAVENTURA, Luís de Camões Lima; DIAS, Vercilene Francisco; e GONDIM, Carlos Henrique Naegeli. O Território Achado na Aldeia e no Quilombo: a Antítese da Mercantilização Neoliberal. In: José Geraldo de Sousa Junior et al. (Org.). O Direito Achado na Rua: questões emergentes, revisitações e travessias.1ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, v. 5, p. 49-69.

[3] O principal objetivo deste texto é fazer chegar aos membros do Supremo Tribunal Federal para servir como uma vírgula a mais no voto de suas excelências, os ministros do STF sobre o julgamento do Marco Temporal; aos nossos congressistas – na esperança de arquivarem de uma vez por todas os projetos que tramitam na Casa de Leis referente a este tal de Marco Temporal; e aos professores e professoras do Brasil, a fim de debaterem com seus alunos outros paradigmas da gramática do saber derivado das florestas – que tantas vezes são ignorados no arcabouço da educação formal.

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