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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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O pacto colonial revisitado: por que o Brasil administra o próprio subdesenvolvimento

A ruptura necessária hoje não é contra a estabilidade da vida social, mas contra a estabilidade do atraso

Cédulas falsas com o número de série repetido. (Foto: Daniel Isaia/Agência Brasil)

Há trinta anos, o Plano Real estabilizou a moeda e, naquele contexto, atrelar a taxa de juros ao câmbio foi decisão compreensível. A Selic elevada funcionou como âncora para atrair capitais e proteger o real. O que surpreende é que um instrumento emergencial tenha sido transformado em doutrina econômica permanente, mesmo depois de esvaziado seu propósito original. Hoje, com câmbio flutuante e sem intervenções sistemáticas como swaps cambiais, a Selic elevada já não se destina a defender a moeda — ainda assim permanece entre as mais altas do mundo. Não por necessidade técnica, mas pela função política que passou a cumprir.

Como demonstrei na série “Economia Comparada”, publicada no Jornal GGN, a expressiva distância entre o PIB brasileiro medido por Paridade de Poder de Compra e o PIB nominal indica que não há valorização artificial do real. Se os juros ainda servissem para segurar o dólar, esse hiato seria reduzido. A narrativa se desfaz: a política monetária deixou de ter o câmbio como alvo. Persiste, então, a pergunta que raramente se formula com clareza: a quem interessa que os juros continuem altos?

O sistema financeiro, concentrado na Faria Lima, encontrou na Selic elevada um instrumento para evitar que o Brasil ascenda ranking da maiores economias do mundo. Na verdade, fomos ultrapassados pela Indonésia, mesmo em paridade do poder de compra. Sob o manto da “responsabilidade fiscal”, converteu-se em guardião interno de um modelo que desestimula o investimento produtivo, encarece a inovação, fragiliza a indústria e mantém o país dependente de importações tecnológicas. Trata-se de um freio estrutural ao desenvolvimento — um colaboracionismo de novo tipo, que já dispensa tutela externa. Hoje, é exercido por elites nacionais que administram a contenção do país como se fosse prudência.

O agronegócio ocupa o papel complementar que sustenta esse arranjo. Imune aos efeitos da Selic por meio do Plano Safra e de outros mecanismos de crédito favorecido, o setor exportador de commodities garante os superávits e as reservas necessárias para importar os bens industrializados de cuja produção abrimos mão. Ao mesmo tempo, ao assegurar um crescimento médio em torno de 2,5% ao ano, mantém a sociedade em expectativa de dias melhores, evitando a ruptura. O discurso da “vocação agrícola do Brasil” — tão conveniente quanto antiga — serve para justificar a primarização e para naturalizar a ideia de que o país não deveria aspirar a mais.

O resultado é um equilíbrio confortável para poucos e limitador para o país. A Faria Lima impede o salto; o agro impede o colapso. Um evita que o Brasil avance; o outro evita que o povo questione o modelo. A metrópole explicita a já não é necessária: o colonialismo tornou-se autogerido, suavizado e racionalizado por discursos econômicos que soam técnicos, mas servem a um propósito político — manter o país em posição estacionária, estável o suficiente para não gerar conflito, porém contida o bastante para não ameaçar a ordem global.

É nesse ponto que a reflexão sobre ruptura se torna inescapável. Não como sinônimo de desordem, mas como transição histórica, tal como ocorreu nas nações que deixaram a condição periférica para construir soberania econômica, científica e tecnológica. A ruptura necessária hoje não é contra a estabilidade da vida social, mas contra a estabilidade do atraso. Significa rever crenças que, de tanto repetidas, ganharam status de verdade — quando não passam de limites que nós mesmos aceitamos como naturais.

Identificar esse mecanismo é o primeiro passo para superá-lo. Se o Brasil deseja, de fato, um lugar entre as nações que formulam e não apenas consomem tecnologia; que definem e não apenas acatam agendas; que projetam futuro e não apenas administram o presente, será preciso desnaturalizar a ideia de que “assim é” porque não pode ser diferente. Esse movimento começa pela consciência — e toda transformação relevante, antes de ser econômica, é intelectual e cultural.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.