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Reinaldo Del Dotore

Graduado em Odontologia e Direito. Servidor público na área da saúde

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O país das ordálias terceirizadas

Supliciados terceirizados são submetidos a prisões cautelares injustificadas, e a prisão em si é a própria ordália: os supliciados, após alguns meses, de forma desesperada, passam a acusar outros (os verdadeiros increpados)

Supliciados terceirizados são submetidos a prisões cautelares injustificadas, e a prisão em si é a própria ordália: os supliciados, após alguns meses, de forma desesperada, passam a acusar outros (os verdadeiros increpados) (Foto: Reinaldo Del Dotore)
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As ordálias eram provas supliciais às quais, na Idade Média, eram submetidos os suspeitos do cometimento de crimes, da prática de rituais proscritos ou mesmo os apenas inconvenientes. Essas provas tinham o condão de "averiguar" a culpa ou a inocência do supliciado. Caso o increpado conseguisse sobreviver à ordália, teria havido um "sinal de Deus" apontando para sua inocência. O problema é que ninguém sobrevivia. As provas supliciais eram fatais. Uma modalidade bastante utilizada de ordália, por exemplo, consistia em submergir o acusado, amarrado, em um rio ou lago por mais de uma hora. Se o infeliz sobrevivesse, teria provado ser inocente, mas, por outro lado, caso não resistisse, estaria consignada a sua culpa aos olhos de Deus, e a sua própria morte era a pena devidamente aplicada.

Séculos depois, vivemos no Brasil a ressurreição das ordálias. Mas, como, segundo a "Teoria da Jabuticaba", em nosso país tudo tem um tempero exclusivo, nossas ordálias contemporâneas são ligeiramente diferentes.

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Em primeiro lugar, nossas ordálias não mais submetem o supliciado a provas fatais. A modalidade mais difundida por aqui é a prisão cautelar, em suas duas vertentes: temporária e preventiva. O cidadão não mais é submerso num rio ou lago, mas é submerso num oceano de desespero ao ter que enfrentar meses ou anos de prisão sem que contra ele haja qualquer prova. Poucos conseguem sobreviver a essa prova. (Aliás, prisões cautelares abusivas e desumanamente extensas são regra no Brasil, e não exceção.)

Outra peculiaridade das nossas ordálias, esta sim fantástica, é que por aqui elas são terceirizadas. Nas nossas ordálias terceirizadas, o increpado, o suspeito, não é diretamente supliciado: a prova desmorona sobre supliciado interposto. Assim, se o objetivo do clero tupiniquim é determinar a culpa de Fulano, tratam de supliciar Beltrano até que este, extenuado, acuse Fulano do cometimento de crime.

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O jurista Wálter Fanganiello Maierovitch, em recente e (como sempre) excelente artigo, alerta para o perigo da deturpação do direito premial. Ele cita um caso emblemático havido na Itália, caso Tortora. Em apertada síntese, Enzo Tortora foi acusado, por um "delator premiado", de ser traficante de drogas e de associação à Camorra (uma das vertentes mafiosas italianas). Segundo Maierovitch,

"[Tortora foi]... condenado e amargou sete meses de prisão fechada, com base em relatos inventados por colaboradores da justiça, que queriam abatimento de penas".

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Como o próprio jurista afirma no artigo, o manejo da delação premiada exige cautela e profissionalismo para não gerar erros e abusos. Fundamentalmente: as acusações surgidas no âmbito de delações premiadas devem ser, necessariamente,

"... confirmadas por provas idôneas, colhidas no devido processo e com ampla defesa. Trocando em miúdos, a delação isolada representa 'flatus vocis', imprópria para condenar."

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O que se tem observado no Brasil, porém, é que:

1. Supliciados terceirizados são submetidos a prisões cautelares injustificadas, e a prisão em si é a própria ordália: os supliciados, após alguns meses, de forma desesperada, passam a acusar outros (os verdadeiros increpados);

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2. Essas acusações passam a valer, isoladamente, como "provas" contra os increpados, ao menos no universo ectoplásmico da opinião pública: se Fulano acusou Beltrano, então está provado que Beltrano é culpado.

3. Em alguns casos não se chega mesmo a produzir provas contra o increpado denunciado pelo supliciado interposto, mas as condenações, em atendimento às imperiosas demandas da opinião pública, acabam ocorrendo (uma fantástica jabuticaba jurídica recente: "Não tenho provas contra Sicrano, mas a literatura jurídica me permite condená-lo assim mesmo").

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Como nada em nosso país acontece por acaso, me parece óbvio que não há nenhum tsunami moralizante que teria se abatido de repente sobre o Brasil. Não se trata, este texto, de desqualificar o direito premial e menos ainda de sugerir que criminosos comprovados saiam impunes, e sim de evidenciar a utilização jabuticabana da delação premiada em terras tupiniquins. O próprio fato de determinados grupos políticos e empresariais passarem ao largo do perigo e nunca serem sequer incomodados pelos moralizadores de plantão demonstra que há interesses subjacentes muito mais relevantes que ensejam essa jabuticabização. Essa análise, porém, já seria desnecessária com relação ao atendimento das exigências da opinião pública, que não está preocupada com nada que subjaz.

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