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Reynaldo José Aragon Gonçalves

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global. Editor do site codigoaberto.net

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O paradoxo do fascismo: por que combatê-lo pode fortalecê-lo – e por que ainda assim é preciso lutar

O Paradoxo do Fascismo: Ele só pode ser derrotado no poder, mas combatê-lo na oposição o fortalece. Como romper esse ciclo antes que seja tarde demais?

Plenário da Câmara dos Deputados 01/02/2025 (Foto: REUTERS/Mateus Bonomi)

O fascismo, ao longo da história, provou ser um organismo resiliente e oportunista. Diferente de outras formas de autoritarismo, ele não depende apenas de suas próprias forças para se estabelecer: alimenta-se do caos, da desesperança e, ironicamente, da tentativa de reprimi-lo. Isso nos leva a um paradoxo incômodo: o fascismo se fortalece quando está na oposição a governos progressistas, porque se apresenta como uma "força de resistência" contra um suposto sistema corrupto e decadente. No entanto, só pode ser verdadeiramente derrotado quando alcança o poder e expõe sua incompetência e brutalidade. Esse ciclo cria um dilema para forças democráticas e progressistas. Afinal, seu papel é evitar que o fascismo chegue ao poder, mas, paradoxalmente, essa prevenção é frequentemente interpretada como censura, perseguição ou mesmo como confirmação das paranoias fascistas. O resultado? Uma vitimização estrategicamente planejada pelo próprio fascismo, que se traveste de "coitado perseguido pelo sistema" ao mesmo tempo que atua como o agente mais violento dentro da disputa política.

A história recente de Brasil e Estados Unidos exemplifica esse paradoxo de forma cruel. Bolsonaro e Trump chegaram ao poder vendendo-se como "outsiders" combatendo o status quo, mesmo sendo frutos do próprio sistema. Durante seus governos, provaram-se desastrosos em gestão e descompromissados com qualquer valor republicano. E ainda assim, suas quedas não significaram o fim de suas influências. Pelo contrário: ao serem depostos, voltaram à posição em que mais prosperam, a de "vítimas do sistema", pavimentando o caminho para uma possível volta ainda mais radicalizada. O objetivo deste artigo é examinar essa dinâmica perversa, explorando como o fascismo se fortalece na oposição, porque sua verdadeira derrota só ocorre quando ele está no poder e, acima de tudo, quais estratégias são possíveis para romper esse ciclo histórico. Nos próximos tópicos, discutiremos o ciclo do fascismo, sua relação com a oposição política, sua gestão desastrosa no poder e os desafios da esquerda e dos movimentos democráticos para enfrentá-lo sem reforçar sua narrativa de perseguição. Afinal, se o combate ao fascismo for conduzido da forma errada, o resultado pode ser exatamente o oposto do desejado: em vez de erradicá-lo, acaba-se por fortalecê-lo.

O ciclo do fascismo: como ele se alimenta da oposição - O fascismo, ao contrário do que muitos pensam, não precisa necessariamente estar no poder para se fortalecer. Pelo contrário, ele se nutre do ressentimento, da sensação de perda de status e da ideia de que há uma conspiração que impede seu avanço. Como uma erva daninha que sobrevive até nos terrenos mais áridos, o fascismo prospera especialmente quando consegue convencer parte da população de que é a verdadeira vítima do sistema. A estrutura do fascismo na oposição segue uma dinâmica bem conhecida: primeiro, apresenta-se como a única alternativa legítima contra uma suposta elite corrupta ou um inimigo interno difuso (sejam comunistas, globalistas, minorias, intelectuais, jornalistas ou qualquer outro grupo que possa servir como bode expiatório). Depois, qualquer tentativa de enfrentá-lo é imediatamente rotulada de censura ou perseguição, reforçando o mito de que ele é o verdadeiro representante do povo contra uma estrutura opressora. Esse mecanismo pode ser observado claramente na ascensão de figuras como Bolsonaro e Trump. Ambos passaram anos construindo a narrativa de que eram outsiders combatendo um "sistema podre". No entanto, essa imagem só pôde ser sustentada porque estavam na oposição. Durante os governos progressistas que os antecederam, criaram o discurso da "ditadura do politicamente correto", da "perseguição à direita", da "mídia comunista", alimentando a falsa percepção de que qualquer tentativa de freá-los era um atentado à liberdade de expressão.

Quando progressistas e democratas caem na armadilha de tratar o fascismo na oposição com a mesma dureza com que ele deve ser tratado no poder, o efeito pode ser contrário ao desejado. A censura a determinados discursos, por exemplo, em vez de enfraquecer o fascismo, muitas vezes o reforça no imaginário social. É assim que campanhas de desinformação se espalham com ainda mais força: “O que eles estão tentando esconder?”, perguntam os que já foram capturados pelo ressentimento. O fascismo cresce no ressentimento e se vende como alternativa ao sistema. Quando combatido, usa a repressão como prova de sua perseguição. Ao alcançar o poder, destrói instituições, normaliza o autoritarismo e gera caos. Quando deposto, retorna à posição de “vítima” e reinicia o processo. Esse é o jogo de nunca perder: no poder, destroem o que podem. Na oposição, posam de perseguidos. A única forma de romper esse ciclo é compreendê-lo profundamente e agir estrategicamente para impedir sua propagação sem reforçar sua vitimização. Agora, avancemos para entender por que o fascismo só pode ser verdadeiramente derrotado quando está no poder.

Fascismo no poder: quando a derrota é possível - Se na oposição o fascismo se alimenta do ressentimento e da vitimização, no poder ele se confronta com sua própria natureza destrutiva. Ao assumir as rédeas do Estado, os fascistas deixam de ser apenas os arautos da revolta contra um suposto sistema opressor e passam a ser os responsáveis diretos pela gestão de um país. E é exatamente nesse momento que suas contradições mais profundas emergem. Historicamente, regimes fascistas demonstraram incompetência administrativa, uma obsessão por inimigos internos e externos e uma tendência ao colapso devido à própria lógica de poder que cultivam. O nazismo só foi destruído porque, ao tomar o controle da Alemanha, levou o país a uma guerra insustentável e ao colapso total. O fascismo italiano não caiu por conta própria, mas foi derrubado por uma resistência popular e por pressões externas. No Brasil, Bolsonaro chegou ao poder com uma retórica de guerra cultural e enfrentamento ao establishment, mas ao longo de quatro anos de governo, revelou-se incapaz de administrar crises, sabotando as instituições e se cercando de corrupção e caos. Seu governo terminou de maneira previsível: um país em frangalhos, uma economia em crise e um processo de radicalização da extrema-direita, que culminou nos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Esse é o padrão. No poder, o fascismo não se sustenta sem a criação contínua de inimigos. Como sua base ideológica não está ancorada em políticas concretas de desenvolvimento, mas sim na guerra perpétua contra um inimigo (real ou imaginário), seu governo se torna uma sequência de crises fabricadas, perseguições e tentativas de manipular a opinião pública para mascarar a própria incompetência. Mas essa tática tem um prazo de validade. Quanto mais tempo o fascismo governa, mais explícito se torna seu fracasso. É nesse momento que sua derrota se torna possível. Diferente da oposição, onde qualquer repressão pode reforçar sua narrativa de vitimização, um fascista no poder é obrigado a entregar resultados. Quando esses resultados não vêm – e não vêm, porque o fascismo não tem projeto político sustentável –, o próprio regime começa a ruir. Mas esse processo não é automático nem pacífico. Quanto mais pressionado, mais brutal o regime se torna. E é aí que entra o papel da resistência: a oposição democrática deve saber explorar esse desgaste sem cair na armadilha da normalização ou da passividade. O fascismo só pode ser verdadeiramente vencido quando a sociedade percebe seu custo real. No entanto, permitir que ele chegue ao poder para que se destrua por si só não é uma estratégia aceitável – porque os danos que causa no processo são profundos e geracionais. O desafio, portanto, é encontrar formas de minar sua sustentação sem reforçar sua vitimização na oposição e sem permitir que ele se estabilize no poder. 

O dilema da esquerda e dos movimentos democráticos - Se o fascismo se fortalece na oposição e só pode ser verdadeiramente derrotado no poder, o que fazer para impedir que ele chegue lá sem, ao mesmo tempo, alimentar sua retórica de perseguição? Esse é o grande dilema das forças progressistas e democráticas. Diferente do fascismo, que não tem compromisso com a verdade, com a democracia ou com qualquer princípio que não seja a conquista e manutenção do poder a qualquer custo, a esquerda e os movimentos democráticos se veem limitados por valores que exigem coerência. Aqui está o problema: o combate ao fascismo requer dureza e, em alguns momentos, restrições institucionais, mas qualquer medida nesse sentido é imediatamente vendida ao público como uma tentativa de censura e perseguição. O fascismo, mesmo quando minoritário, tem um talento extraordinário para se apresentar como a verdadeira voz do povo injustiçado. Se é reprimido, usa a repressão como prova de sua legitimidade. Se não é reprimido, expande-se até capturar o Estado. É um dilema complexo porque a ação contra ele pode, paradoxalmente, reforçar sua narrativa.

Essa contradição foi visível no Brasil e nos Estados Unidos. Durante os governos petistas, a extrema-direita foi tratada como uma força minoritária barulhenta, mas inofensiva. O resultado foi sua ascensão meteórica, culminando na eleição de Bolsonaro. Nos EUA, a crença de que Trump seria apenas uma aberração temporária subestimou a capacidade do trumpismo de se enraizar na sociedade. A esquerda, ao insistir apenas na defesa institucional da democracia, ignorou o fator emocional e identitário que impulsiona os movimentos fascistas. Enquanto progressistas tentavam debater com fatos e números, o fascismo mobilizava ressentimentos e paixões. A maior armadilha que a esquerda pode cair é a da normalização. A ideia de que se deve “deixar o fascismo falar para que se desmoralize sozinho” já provou ser desastrosa. Fascistas não jogam dentro das regras do debate democrático; eles subvertem as regras e as transformam em armas contra a própria democracia. Mas se reprimi-los diretamente leva à vitimização, qual é a alternativa?

A resposta passa por estratégias que desarmem sua retórica sem reforçá-la. Ações preventivas, como o combate sistemático à desinformação, a regulação das redes sociais e a criação de narrativas eficazes que desmontem o fascismo antes que ele se solidifique, são fundamentais. O desafio é grande porque exige uma comunicação capaz de disputar corações e mentes, sem cair na ingenuidade do debate racional puro, nem na tentação de combater fogo com fogo.

Estratégias para romper o paradoxo - Se o fascismo se fortalece na oposição e se desgasta no poder, mas permitir sua ascensão significa um desastre social e institucional, como romper esse ciclo? A resposta não é simples, mas passa necessariamente por ações estratégicas que desmontem sua base antes que ela se torne irreversível. O primeiro passo é impedir que a extrema-direita tenha o monopólio da insurgência. O fascismo prospera porque se apresenta como a única força verdadeiramente rebelde contra um sistema supostamente corrupto e dominado por elites globalistas, comunistas, intelectuais ou qualquer outra figura que possa ser transformada em inimigo. Para desarmar essa retórica, é fundamental que os movimentos progressistas resgatem a narrativa da insurgência popular. Se o fascismo cresce no ressentimento, a esquerda precisa se reconectar com os setores sociais que alimentam esse ressentimento e oferecer um caminho alternativo – um caminho de transformação real, e não apenas de manutenção da ordem. A regulação das redes sociais e o combate à desinformação são medidas urgentes. O fascismo moderno não se ergue nas ruas, mas nos algoritmos. As redes se tornaram verdadeiras fábricas de radicalização, onde teorias conspiratórias se multiplicam e a desinformação é projetada para corroer a confiança nas instituições. A ideia de que a internet é um espaço de livre concorrência de ideias já se mostrou ingênua. Plataformas digitais são controladas por poucos grupos econômicos, e a extrema-direita soube como ninguém capturar essa estrutura para construir bolhas de informação intransponíveis. Regular esse ecossistema não é censura – é impedir que a manipulação informacional continue a corroer a democracia.

Outro elemento central é o fortalecimento das instituições e da justiça como barreiras contra a tomada de poder fascista. No entanto, essas instituições precisam se modernizar. O tempo da justiça é lento, enquanto o tempo da guerra informacional é instantâneo. Um escândalo fabricado no X, antigo Twitter se espalha em minutos; um julgamento contra uma organização fascista pode levar anos. Se o sistema jurídico não encontrar formas de acelerar sua resposta ao autoritarismo, a extrema-direita sempre terá a vantagem da velocidade. Por fim, é necessário construir uma comunicação política eficiente. Progressistas e democratas falharam historicamente na disputa simbólica com o fascismo porque acreditaram que a verdade, por si só, basta. Mas o fascismo não disputa a verdade – ele disputa a realidade. Enquanto a esquerda tenta desconstruir fake news com argumentos racionais, a extrema-direita cria novas histórias, baseadas no medo e na emoção. O combate ao fascismo exige uma disputa comunicacional que vá além do fact-checking. É preciso construir narrativas emocionais que gerem pertencimento, entusiasmo e mobilização. Romper o paradoxo do fascismo não é simples porque ele se aproveita das fraquezas do próprio sistema democrático. Mas compreender sua lógica, agir preventivamente e estruturar respostas rápidas e eficazes pode impedir que o ciclo se repita indefinidamente.

Ou seja - O fascismo é um fenômeno político persistente, adaptável e altamente estratégico. Ele não joga pelas regras da democracia, mas se aproveita delas para se fortalecer. Quando está na oposição, posa de vítima e vende a ilusão de ser a única alternativa legítima contra um sistema supostamente corrupto. No poder, revela sua face destrutiva, mas não cai sem antes deixar um rastro de devastação institucional, social e econômica. Esse é o grande paradoxo: ele só pode ser verdadeiramente derrotado quando governa, mas o custo de deixá-lo chegar lá é sempre alto demais. O combate ao fascismo não é uma escolha, mas uma necessidade histórica inescapável. Ele jamais se dissolve por conta própria – precisa ser enfrentado e derrotado. No entanto, essa luta carrega uma contradição perigosa: toda ação antifascista, por mais legítima e necessária que seja, alimenta a narrativa de perseguição que sustenta a extrema-direita. Quanto mais o fascismo é combatido, mais ele mobiliza suas bases com o discurso do martírio, do inimigo interno e da resistência contra um sistema opressor. Isso não significa que a luta deva ser evitada, pelo contrário – ela é o único caminho possível. Mas precisa ser travada com inteligência estratégica, evitando armadilhas que reforcem seu vitimismo e fortalecendo um discurso que não apenas desconstrua o fascismo, mas impeça que ele se reinstale ciclicamente. A questão não é se devemos combatê-lo, mas como fazê-lo de maneira eficaz. A história mostra que a repressão pura e simples não o destrói – muitas vezes, apenas o empurra para a clandestinidade, onde se reorganiza com ainda mais força. Por outro lado, a normalização e a passividade permitem que ele cresça até que seja tarde demais para reagir. O equilíbrio entre enfrentar o fascismo e evitar alimentar sua mitologia de perseguição é o grande desafio das forças democráticas. Ainda assim, recuar jamais pode ser uma opção. A luta antifascista deve ser firme, contínua e estratégica, pois, apesar das dificuldades, é o único caminho capaz de impedir que o ciclo do fascismo continue se repetindo.

A chave para romper esse ciclo passa pelo controle da guerra informacional. O fascismo moderno não se ergue nas ruas, mas nos algoritmos. Ele se alimenta da manipulação de redes sociais, da desinformação e da criação de pânicos morais para mobilizar ressentimentos e angariar seguidores. Enquanto isso, democratas e progressistas ainda tratam o debate público como se fosse uma arena racional, onde fatos e argumentos bastam para convencer. Essa ingenuidade precisa ser superada. O combate ao fascismo exige uma comunicação política estruturada, emocionalmente envolvente e capaz de desarmar suas táticas sem reforçar sua vitimização. Regulação de plataformas digitais, aceleração da resposta jurídica ao discurso de ódio, educação midiática e fortalecimento de uma cultura democrática são medidas urgentes. Mas nada disso funcionará se as forças progressistas não souberem disputar a narrativa pública com inteligência e assertividade. O fascismo não precisa de verdades – ele precisa apenas de dúvidas para prosperar. A resposta a isso não pode ser apenas a defesa de fatos, mas a construção de um imaginário coletivo que mobilize a sociedade contra sua ascensão. O combate ao fascismo não pode ser um esforço isolado e reativo. Ele precisa ser permanente, proativo e estrategicamente desenhado para evitar que o ciclo se reinicie. Porque uma coisa é certa: se a história nos ensina algo, é que o fascismo nunca se extingue sozinho – ele precisa ser derrotado. E, para isso, é preciso saber quando e como agir.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.