O paradoxo orçamentário da participação social
Para além de incluir participação social na metodologia de elaboração do orçamento com o PPA Participativo, urge incluí-la, como política, no orçamento público
Nos últimos anos, o mecanismo das emendas de relator (apelidado de "orçamento secreto") redimensionou a noção de absurdo no debate público em torno da questão orçamentária no Brasil. O chamado relator-geral do orçamento no Congresso alcançou o poder de realocar bilhões de reais sem a necessidade de identificar os parlamentares beneficiários, em nome de ajustes técnicos. O termo "orçamento secreto" é, em si, uma ironia, já que o orçamento deveria ser o documento mais público e transparente de uma sociedade. Os desdobramentos dessa história seguem no Supremo Tribunal Federal, mas há que se reconhecer que o planejamento orçamentário brasileiro não possui tradição em termos de participação social, dado que, historicamente, esteve centrado nas mãos de especialistas, da chamada técnico-burocracia estatal, além de ser atravessado por interesses das classes dominantes. Somente nas últimas décadas, influenciado por experiências municipais e estaduais e pelo compromisso de governos de esquerda em assegurar o protagonismo popular, o orçamento público ganhou mais transparência com a implementação do Plano Plurianual Participativo (o chamado PPA Participativo).
Quando nos debruçamos sobre os principais problemas em torno da execução de políticas públicas é preciso reconhecer que a situação do Estado não difere muito da realidade da maioria das famílias: o obstáculo mais recorrente e difícil de contornar é a questão orçamentária. Embora o governo brasileiro venha atuando no sentido de fortalecer a participação e o controle social enquanto método, os desafios orçamentários para as políticas públicas em geral são profundos e frequentemente relegam a participação social a um segundo plano em termos de investimentos. A transversalidade do orçamento, essencial para mudanças sistêmicas, esbarra na rigidez da máquina estatal e na primazia de outras prioridades macroeconômicas, que concentram os recursos em grandes projetos ou no equilíbrio fiscal, em detrimento de ações transformadoras voltadas para o protagonismo da sociedade civil. A participação social, embora fundamental para qualificar o debate e garantir que as reais necessidades da população sejam atendidas, torna-se frequentemente um elemento paradoxal no orçamento público: enquanto método possibilita à população exercer alguma influência na alocação concreta dos recursos em diversas áreas temáticas, mas ainda são escassos e frágeis os investimentos na própria política de participação social - suas instituições, mecanismos e instâncias...
Logo, as Instituições Participativas (IPs), sobretudo os conselhos nacionais, como instâncias permanentes de diálogo entre Estado e sociedade, e as conferências, como processos amplos e periódicos de debate e definição de diretrizes, são faces complementares de um mesmo projeto de aprofundamento democrático. No entanto, a efetividade dessas IPs está intrinsecamente ligada à garantia de recursos orçamentários adequados e estáveis para o seu funcionamento pleno. A falta de estrutura e a precariedade financeira representam obstáculos para a participação social no Brasil, situação agravada ao longo dos governos de extrema direita entre 2016 e 2022 e que persiste mesmo no cenário de reconstrução das políticas de participação social pelo governo Lula. Um sintoma dessa fragilidade é o fato de que, atualmente, vários organizadores de conferências nacionais se veem obrigados a captar recursos diversos para custear os processos conferenciais. Esta demanda por financiamento exige cada vez mais tempo e energia dos responsáveis pelas conferências, disputando espaço com suas atribuições principais: a construção de debates e espaços participativos, a agenda de políticas públicas e a mobilização social.
Essa realidade contrasta com o princípio da participação social como direito e com a importância estratégica das IPs, pois a participação deixa de ser um fim em si mesma e se transforma em um fardo logístico e financeiro, esvaziando seu potencial transformador e reforçando assimetrias, pois nem todos os segmentos e pautas sociais possuem a mesma capacidade de articulação ou mobilização para captar recursos. Por outro lado, existem exemplos positivos que demonstram a viabilidade e os benefícios de se assegurar orçamento específico para a participação social, como é o caso de dois Conselhos Nacionais, amparados por sistemas nacionais de políticas públicas – o Conselho Nacional de Saúde, relacionado ao SUS e o Conselho Nacional de Assistência Social, que integra o SUAS – e que possuem orçamento previsto em lei para a realização de suas respectivas conferências e outras ações da área. Esses casos demonstram que a previsão orçamentária não é uma questão meramente contábil, mas uma condição imprescindível para a efetividade do controle social.
Portanto, assegurar orçamento específico e adequado para viabilização das conferências nacionais e estruturação dos conselhos nacionais, fóruns, ouvidorias etc., não é um gasto, mas um investimento indispensável na qualidade da democracia. É o que permite que essas IPs cumpram seu papel de avaliar políticas, propor novas diretrizes e fortalecer a relação entre Estado e sociedade. A participação social deve ser tratada como elemento central e não acessório do ciclo da gestão pública, o que implica dotá-la de meios financeiros consistentes. Mesmo as demandas relacionadas à participação social dependem de uma vontade política institucional para sair do papel, ficando vulneráveis a mudanças de governo e à falta de mecanismos vinculantes que garantam sua efetiva incorporação no ciclo orçamentário, como o PPA e a LDO.
A realização de uma conferência nacional deve ser um marco dialógico construído coletivamente, e não uma corrida obstinada por financiamento... Nesse contexto é emblemático lembrar que entre os dias 29 de setembro e 1º de outubro ocorrerá a etapa nacional da 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (5ª CNPM), com o tema “Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas”, quase uma década após a edição anterior, que ocorreu em maio de 2016, às vésperas do impeachment da primeira presidenta mulher, Dilma Rousseff, na época afastada por um golpe. Recentemente a Ministra das Mulheres, Márcia Lopes, afirmou em uma das etapas estaduais da 5ª CNPM: “É muito importante, depois de 10 anos, voltarmos a nos encontrar, a dialogar, a falar das nossas experiências, das nossas vidas, das nossas perspectivas e necessidades. As conferências são para isso: analisar o presente e construir o futuro”. Que a realização de mais um processo conferencial, e de todos os que se seguirão, possam ser celebrados pelo vigor de seus debates e pela representatividade das pessoas participantes, e não lembrados pelo esforço hercúleo de seus organizadores em viabilizá-los financeiramente... Garantir o orçamento é garantir as condições objetivas para o fortalecimento da participação social e em uma democracia que se quer participativa, comprometer esses esforços por falta de verba é uma contradição insustentável... Para além de incluir a participação social na metodologia de elaboração do orçamento por meio do PPA Participativo, urge incluir a participação social, enquanto política, no orçamento público!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

