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O passado que une: a memória nacional como força política

A memória nacional tem ganhado força como instrumento político na disputa por narrativas e na construção de identidades coletivas

Desfile do Dia da Vitória em Moscou - 09/05/2025 (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Por Pedro Henrique Tessarolo Féris - No dia 9 de maio, a Rússia celebrou mais uma vez o "Dia da Vitória", uma das datas mais importantes do calendário nacional. A cada ano, o país mobiliza milhões de pessoas em desfiles, cerimônias e homenagens aos soldados mortos, transformando essa data em um dos maiores rituais de memória coletiva do mundo. E essa não é apenas uma data histórica, mas também um ato simbólico de unidade nacional que marca o fim da Grande Guerra Patriótica, nome dado pelos russos à sua participação na Segunda Guerra Mundial, e a rendição da Alemanha nazista em 1945.

Essa mobilização não é neutra ou puramente informativa, mas cumpre uma função política clara: a de reforçar vínculos coletivos por meio da evocação de um passado heroico e compartilhado. Não se trata, portanto, de resgatar o passado como ele foi, mas de ativar os sentimentos que ele ainda provoca no presente.

O poder emocional da memória

Edward Bernays, sobrinho de Freud e autor de obras como Propaganda (1928), entendia que as emoções são mais eficazes do que os argumentos racionais na formação da opinião pública. Ele defendia o uso estratégico de imagens, ritos e símbolos capazes de produzir efeitos emocionais duradouros. Para Bernays, a tradição e a memória pública não eram expressões espontâneas da sociedade, mas ferramentas de engenharia afetiva, atuando como dispositivos que moldam crenças, atitudes e comportamentos em larga escala.

Aplicado ao campo político, esse pensamento ajuda a entender por que certas datas comemorativas mobilizam tanto o espírito nacional. O que está em jogo são afetos, como o orgulho, sacrifício, vitória e pertencimento que se atualizam em cada bandeira, em cada marcha, em cada imagem do passado.

Tradição como celebração da transformação

O uso simbólico do passado varia conforme a trajetória histórica de cada país. Nações que passaram por profundos processos de natureza revolucionária, como Rússia, China, Cuba ou Venezuela, tendem a celebrar suas tradições não como um retorno ao passado, mas para reforçar o símbolo das vitórias populares que moldaram sua identidade. A tradição, nesses contextos, não se inclina ao conservadorismo, mas à fortalecer o sentimento de capacidade coletiva para mudar o rumo da história.

Essas datas são, portanto, momentos de aglutinação social que  reafirmam conquistas nascidas a partir de  rupturas, não de continuidades. O Dia da Vitória na Rússia é exemplo claro de um símbolo da resistência contra a invasão nazista, mas também da vitória de um projeto coletivo de nação que, mesmo após o fim da URSS, ainda mobiliza o imaginário popular.

O uso excludente da tradição nos países centrais

Em contrapartida, nas potências centrais do sistema econômico atual, especialmente nos Estados Unidos e em partes da Europa Ocidental, o culto às tradições nacionais segue um caminho diferente. Que em vez de celebrarem conquistas sociais, esses rituais muitas vezes funcionam como formas de reafirmação de privilégios, exclusão de minorias e fomento à xenofobia.

Bandeiras nos quintais, paradas militares em datas cívicas, discursos sobre o “retorno aos valores tradicionais” são frequentemente usados para justificar políticas de segurança, fechamento de fronteiras e ataques aos direitos civis. Nessas sociedades, a tradição é manipulada como resistência à mudança, evocando um passado idealizado e excludente. Uma “era de ouro” muitas vezes marcada pela desigualdade e pela supremacia racial e econômica.

Enquanto em países que passaram por drásticas transformações econômicas a tradição é vivida como símbolo de transformação, nos centros do capitalismo ela tende a funcionar como trincheira contra qualquer avanço social. A diferença não está nos ritos em si, mas no conteúdo político que eles carregam.

A comemoração de 2025: performance e memória

Neste ano, a Rússia levou ainda mais longe o seu esforço de manter viva a memória da vitória de 1945. Durante os desfiles em Moscou, foi organizada uma grande encenação da tomada de Berlim com telões, efeitos especiais e representação teatral da rendição do exército nazista. A partir de uma reconstituição em escala real do final da guerra, misturando performance, memória e espetáculo em uma cerimônia carregada de simbolismo.

Em tempos de crise, guerras e disputas ideológicas intensas, o modo como um país lida com seu passado diz muito sobre o que ele espera do futuro. Cultuar a memória como símbolo de luta e unidade, como faz a Rússia no 9 de maio, é um ato profundamente político  e, talvez, uma lição sobre como as tradições podem unir, em vez de excluir.

O que o Brasil pode aprender com isso?

A forma como a Rússia celebra o Dia da Vitória pode parecer distante da realidade brasileira — e de fato o é, em termos históricos e culturais. Mas existe ali uma lição fundamental que diz respeito ao uso consciente e afetivo da memória nacional como força de coesão política. Nesse campo, o Brasil tem muito a refletir, especialmente sobre a forma como símbolos, tradições e afetos populares foram abandonados ou desvalorizados por setores progressistas ao longo das últimas décadas.

Grande parte da esquerda no Brasil, sobretudo aquela influenciada pelas leituras críticas da Escola de Frankfurt, desenvolveu um olhar desconfiado sobre as tradições nacionais. O nacionalismo, os símbolos pátrios, a religião popular e até o orgulho cívico foram frequentemente tratados como elementos potencialmente autoritários, conservadores ou reacionários.

O resultado disso é paradoxal: aqueles que defendem políticas abertamente entreguistas — como a privatização de setores estratégicos, o alinhamento automático com os Estados Unidos e a desregulamentação ambiental e trabalhista — conseguem se apresentar como os “verdadeiros” patriotas. Vestem a camisa verde e amarela enquanto promovem a desnacionalização da economia. Defendem Deus, pátria e família enquanto aprofundam a desigualdade social. Pregam soberania e liberdade ao mesmo tempo em que ajoelham o país diante de interesses estrangeiros.

A celebração de conquistas nacionais não precisa ser um ato conservador — como mostram os exemplos da Rússia, da China ou mesmo de movimentos populares latino-americanos que integram símbolos tradicionais em suas bandeiras de luta. Resgatar o vínculo emocional com a história nacional pode fortalecer projetos de soberania, de justiça social e de integração popular.

O campo progressista brasileiro precisa compreender que símbolos também são armas, e das mais eficazes. Uma bandeira abandonada não deixa de tremular: ela apenas muda de mãos.

Pedro Henrique Tessarolo Féris é psicólogo formado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e pesquisador no Observatório da Opinião Pública no Cenário Digital (UFU). Atua em investigações interdisciplinares sobre epistemologia das ciências humanas, comunicação, operações psicológicas e guerra de informação. Também atua como psicologo clínico, tendo como ênfase a psicanálise, psicodrama e psicologia histórico-cultural.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.