O PL da Dosimetria e o novo pacto da impunidade: como a decisão da Câmara remodela o sistema penal brasileiro
"Estamos assistindo à reconfiguração da lógica penal brasileira — feita de maneira açodada, impulsionada por interesses imediatos e sem debate consistente"
A aprovação do chamado PL da Dosimetria pela Câmara dos Deputados não é apenas um gesto político pontual para aliviar condenações relativas ao 8 de janeiro. É, antes, a inauguração de um novo regime jurídico-penal cuja repercussão se estende muito além da conjuntura. Sob o pretexto de “corrigir excessos”, a mudança altera a própria arquitetura da dosimetria prevista na Parte Geral do Código Penal — portanto, com efeitos gerais, amplos e duradouros, incidindo sobre crimes de toda ordem.A pressa com que o texto foi votado, a opacidade de suas intenções e o impacto concreto que produz levantam uma pergunta desconfortável: estamos diante da maior flexibilização penal desde a Constituição de 1988, com consequências subterrâneas que vão muito além da redução das penas do ex-presidente Jair Bolsonaro ou dos condenados pelos atos antidemocráticos.
Uma mudança técnica com consequências devastadoras
O mecanismo central do projeto consiste em substituir o sistema tradicional de soma de penas — aplicado quando o réu responde por diversos crimes no mesmo contexto — por um tratamento unitário. Ou seja: em vez de acumular condenações, a Justiça seria estimulada a adotar uma pena única, com agravamentos moderados. Na prática, isso reduz dramaticamente penas em crimes com múltiplas condutas, que hoje chegam à casa dos 20, 30 ou 40 anos pela soma de delitos.A proposta também introduz diferenciações extensas entre “líderes” e “meros participantes”. A definição de “liderança” — naturalmente subjetiva — passa a ser determinante para a pena final. E ao modular a participação, abre-se uma avenida interpretativa para reduções de pena em massa, especialmente em crimes praticados por grupos.O relator ainda incorporou dispositivos que flexibilizam progressão de regime e remição, embora mencione exceções pontuais para crimes com violência contra a vida. Tais exceções, porém, dependem de como o Judiciário as interpretará, já que a redação é suficientemente aberta para gerar disputas hermenêuticas.
Da política à carne da justiça criminal
Muito se noticiou sobre os efeitos diretos do PL para os condenados do 8 de janeiro. E, de fato, o impacto é profundo — as estimativas publicadas por diversos veículos apontam reduções substanciais, algumas chegando a dois terços da pena originalmente aplicada. Mais do que isso: a nova metodologia facilita progressões, reclassificações e revisões criminais em bloco.
Mas o ponto central — e mais grave — é que o PL não se limita ao 8 de janeiro, justamente porque altera a Parte Geral do Código Penal. Por isso, seus efeitos se derramam sobre:
- Crimes patrimoniais complexos (roubos e extorsões com várias condutas).
- Condenações envolvendo organizações criminosas, milícias e ORCRIMs.
- Crimes econômicos e corrupção com múltiplos atos.
- Qualquer caso cujo cálculo da pena se apoie em concurso material ou continuidade delitiva.
O impacto concreto depende da interpretação do juiz e do tribunal, mas é inequívoco: um conjunto enorme de condenações poderá ser revisado para baixo. E isso inclui crimes de alta repulsa social.
E os crimes mais bárbaros? A resposta não é tranquilizadora
O relatório da votação fala em exceções para crimes hediondos e violência contra a vida, mas a redação permite controvérsias. Em homicídios qualificados, feminicídios e estupros qualificados, a pena poderá continuar elevada quando a qualificadora for central — porém, em casos com múltiplos crimes no mesmo episódio, ainda existe espaço para reduções significativas.
Em outras palavras: o PL não dispara uma redução automática para homicidas e estupradores, mas abre uma janela real de reclassificação ou diminuição quando:
- há concurso de crimes;
- há dúvidas sobre papéis e autorias;
- o juiz entenda aplicável o novo critério unitário.
Negar essa possibilidade seria ingenuidade jurídica.
O impacto no sistema carcerário: modesto nos números, enorme no simbolismo
Os dados oficiais mostram que o Brasil possui entre 700 mil e 900 mil pessoas presas — um sistema superlotado, precário e racialmente desigual. Uma mudança na dosimetria não vai, por si só, esvaziar penitenciárias. A maioria dos presos cumpre pena por tráfico, roubo e furto; muitos estão presos provisoriamente; outros já progrediram.Assim, o impacto numérico agregado será limitado. Mas o impacto político e simbólico será gigantesco: presos emblemáticos sairão mais cedo, a percepção pública de impunidade aumentará e o Judiciário será inundado com pedidos de readequação de pena. Em escala, isso pode criar um efeito cascata difícil de controlar.
Uma reação institucional sem precedentes recentes
A votação acendeu um incêndio institucional:
- Ministérios Públicos estaduais e federal anunciaram que estudarão ações de controle de constitucionalidade.
- Entidades de vítimas e associações de operadores do Direito alertaram para “retrocesso penal grave”.
- A OAB criticou ambiguidades e falta de transparência técnica.
- Parlamentares da oposição denunciaram tentativa explícita de usar a lei penal para intervir em julgamentos do STF.
O Supremo, por sua vez, será inevitavelmente chamado a decidir se partes do PL violam cláusulas pétreas ou interferem em sentenças já transitadas — sobretudo no que diz respeito aos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
O Brasil diante do espelho
O PL da Dosimetria evidencia um paradoxo histórico brasileiro: o país com uma das maiores populações prisionais do mundo ao mesmo tempo produz, ciclicamente, mecanismos de alívio penal seletivo que beneficiam segmentos politicamente relevantes. A medida recém-aprovada não resolve superlotação, racismo estrutural, prisões provisórias abusivas ou a desigualdade de tratamento penal — mas oferece alívio imediato a um conjunto restrito de condenados altamente organizados politicamente.
A pergunta que resta é simples: se a justificativa era combater “excessos” judiciais, por que alterar todo o sistema penal brasileiro em vez de recorrer aos instrumentos já existentes — revisão criminal, habeas corpus, modulação de efeitos, súmulas vinculantes?
A resposta está menos no Direito e mais na política.
O país entra, agora, em uma era de incerteza penal
Independentemente do mérito político, o fato é que o PL terá efeitos profundos:
- Reduzirá penas de crimes cometidos em conjunto, em todos os níveis.
- Reabrirá discussões em processos já encerrados.
- Pressionará o STF a se pronunciar sobre limites da retroatividade benéfica.
- Provocará reação de movimentos de vítimas e de segurança pública.
- Agravarará a polarização social, especialmente diante da percepção de que crimes graves podem ser beneficiados.
Em resumo: não estamos apenas diante de uma mudança legislativa. Estamos assistindo à reconfiguração da lógica penal brasileira — feita de maneira açodada, impulsionada por interesses imediatos e sem debate público consistente.
Trata-se de uma mudança que, à semelhança de outras intervenções no sistema penal brasileiro, certamente produzirá consequências não previstas, não desejadas e, talvez, irreversíveis.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

