O plano americano pressiona a Europa — o planeta, porém, clama por uma agenda de humanidade
Enquanto a Casa Branca exige mais gastos militares europeus, campos de refugiados crescem e a fome se alastra, lembrando que viver é mais urgente que vencer
A nova estratégia externa divulgada pelos Estados Unidos em 5 de dezembro de 2025 mira a Europa com bisturi afiado. O documento não adota meias-palavras: diagnostica uma Europa envelhecida, hesitante, acomodada em políticas sociais que teriam perdido eficiência diante de crises econômicas e migratórias. Oferece cooperação, mas condicionada a reformas profundas — mais gasto militar, menos dependência, integração produtiva e reação imediata ao risco de perda de competitividade global.
Em seu tom, ecoa o receituário clássico das grandes potências quando percebem que seu parceiro não acompanha o ritmo da História.
Washington — a capital, não este Washington que digita — espera uma Europa musculosa, disposta a pagar sua parte na OTAN e a parar de fingir que o guarda-chuva americano é brinde de hotel cinco estrelas. Há, no texto, algo de advertência e algo de estratégia.
Mas, ao analisá-lo com atenção, sinto que ele revela algo ainda maior — não apenas sobre o Velho Continente, mas sobre a condição alarmante de um mundo que já não sabe para onde caminha.
Entre os pontos mais enfáticos do documento, a imigração aparece como uma das razões do que o governo norte-americano enxerga como declínio europeu. Mas discordo dessa interpretação. Nenhuma civilização se degradou por acolher gente, mas muitas se perderam quando viraram o rosto para o sofrimento humano.
Migrar é tão antigo quanto o fogo. Quando o primeiro grupo humano deixou cavernas frias para seguir o rastro de animais, não buscava aventura, mas sobrevivência. E, se havia um bem sagrado na rotina ancestral, era manter aceso o fogo do lar — porque, em noites geladas, um braseiro era a diferença entre a continuidade da vida e sua extinção. A espécie humana migrou quando a lenha rareou, quando a caça sumiu, quando o inverno prolongado matou plantações.
Movimento não é opção: é condição vital. O instinto de caminhar para onde se pode viver é tão natural quanto proteger uma chama contra o vento.
Hoje não fugimos da Era Glacial, mas das suas equivalências contemporâneas: guerras, fome, colapso político, violência armada. Segundo o ACNUR, mais de 123 milhões de pessoas estavam deslocadas em 2024, o maior número já registrado.
Não é a imigração que explica o colapso — é o colapso que explica a imigração.
E, se um refugiado foge de Gaza bombardeada, do Sudão devastado ou de Beirute — onde o desemprego ultrapassa 30% e a inflação destrói salários como fogo em palha seca — ele apenas repete o gesto ancestral daqueles que protegiam brasas na palma da mão para recomeçar em outro vale.
Ao apontar falhas europeias — lentidão, burocracia, baixa natalidade, desequilíbrio fiscal — o documento parece olhar apenas o espelho alheio. No entanto, a decadência atravessa continentes.
Os Estados Unidos convivem com 770 mil pessoas em situação de rua, segundo o HUD, número que cresce ano após ano. Cresce também o extremismo interno, o desencanto com a democracia, a violência armada. Se a Europa se desgasta pelas bordas, os EUA se desgastam por dentro.
E não estão sozinhos.
A fome avança na África e no Oriente Médio com números que lembram eras pré-industriais. Na América Latina, a desigualdade produz êxodos silenciosos. O planeta respira guerras, pandemias, desastres climáticos, manipulação digital, autoritarismos reciclados. A sensação de declínio é global — não europeia.
O documento sugere um mundo reorganizado por blocos estratégicos e interesses imediatos. Mas vejo nisso um risco profundo: o esgotamento do multilateralismo, justamente quando ele é indispensável. Problemas globais não se resolvem com fronteiras fechadas. Mudanças climáticas atravessam oceanos, o tráfico ignora alfândegas, vírus não pedem visto. O planeta precisa de coordenação, não de cercas, muros, isolacionismo.
Carrego comigo uma convicção: não sobreviveremos como civilização se continuarmos pensando como arquipélago. Se cada país cuidar apenas de si, o mundo se desmancha como muralha antiga. É preciso reconstruir solidariedade, não como gesto piegas ou caridoso, mas como instinto de autopreservação coletiva.
Não proponho utopias ingênuas. Proponho lucidez. A única saída está no reconhecimento de que somos uma só família humana. Fóruns multilaterais precisam ser fortalecidos — ONU, COPs, acordos regionais — porque a alternativa é o caos.
Guerras começam quando portas se fecham. A paz nasce quando elas se abrem. Será novidade essa minha última afirmação?
Se a Europa deve rever modelos, que o faça. Se os EUA reivindicam liderança, que assumam também responsabilidade ética, moral, espiritual até. Mas o essencial é outro: nenhum projeto civilizatório será sustentável enquanto milhões lutarem para existir.
O documento norte-americano pode oferecer pistas para reformas pragmáticas, mas é preciso enxergar além do cálculo geopolítico. A pergunta não é como salvar a Europa, mas como salvar o mundo de nós mesmos. O refugiado que bate à porta não ameaça civilizações — ele as lembra de que ainda existe humanidade.
A Terra é nossa única casa. E casa nenhuma permanece quente se apagarmos o fogo que protege a vida.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

