O poeta Augusto dos Anjos e a prostituição no Recife
Uma leitura da noite recifense revela o choque entre desejo, culpa e cidade que moldou a visão visceral de Augusto dos Anjos
Há pouco, buscando outra pessoa, encontrei o poeta Augusto dos Anjos na Ponte Buarque de Macedo, no Recife. E vi os primeiros versos do longo poema “As cismas do destino” do grande poeta:
“Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro...”.
Notem. É curioso, é estranho, que ninguém até hoje pôde ver que o poeta havia visitado os prostíbulos da Rio Branco, antes dessa caminhada pela ponte. Para quem não é do Recife, é preciso explicar que a Ponte Buarque de Macedo vai da proximidade da Praça da República até a Avenida Rio Branco, que foi construída na década de 1910. Mas antes de tal construção, já existiam no lugar muitos prostíbulos, porque a Rio Branco fica na vizinhança do Porto do Recife. As ruas e avenidas no entorno eram um lugar de prostituição, como as ruas de todas cidades portuárias da época.
Agora vamos mais longe. Diante da presença de sexo e carne em todos os versos do poema, à primeira vista pensei que o poeta se dirigia da Praça da República para os bordéis do Recife. Mas não, ele já havia descido de lá. Porque outra coisa ele não nos deixa ver, pois é o próprio Augusto dos Anjos que escreve “Recife. Ponte Buarque de Macedo /Eu, indo em direção à casa do Agra”.
Então pude ver, pela história da Casa do Agra, uma funerária, que ela estava na Rua da Conceição, na Boa Vista. Portanto, no sentido contrário à prostituição da Rio Branco. Então o poeta, amargurado e arrependido da sua visita, com asco e repúdio ao sexo com prostitutas, mistura a morte dos caixões da funerária ao pecado que teria acabado de fazer. Ou apenas visitado os prostíbulos, somente para se inspirar, digamos assim? Isso daria páginas para mais de uma tese que discutisse a repressão sexual e o pecado dos infernos pregado pela Igreja em Augusto dos Anjos.
Mais de um exegeta, ao comentar o belo “As cismas do destino”, afirma que ali o mundo da prostituição tem um caráter alegórico. Ou até mesmo insinuações ao mundo da prostituição política. Mas aqui, ao lado de uma purificação tardia do poeta, há também um deslocamento da vida para uma abstração. Ora, na arte o abstrato vem do concreto, por mais tortos caminhos que tome, inclusive dos prostíbulos para a Casa Agra. E o que o poeta sente não é uma dor ouvida, contada por outros. Tamanha riqueza de condenação no poema, tão eloquente e alta, não vem das nuvens e astros, ainda que projetem a sua sombra, “e o luar, da cor de um doente de icterícia/Iluminava, a rir, sem pudicícia/A camisa vermelha dos incestos”. Até mesmo Dante, em A Divina Comédia, impregnou sua poesia do mundo terreno bem conhecido. O que atinge o coração vem da experiência. Existe muito abuso na citação de Fernando Pessoa, que canta “o poeta é um fingidor”. Mas ele só finge sobre o real sentido e vivido.
Escreveu para sempre Augusto dos Anjos:
“Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade”.
O poeta se indignava contra o amor dissoluto. Mas a ninguém falou a causa imediata do sentimento da bestialidade em sua alma. Que também era a do Recife àquela hora da noite.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

