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Rogério Skylab

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O processo de ódio à democracia

Crítica da transcendência? Crítica do marxismo? Crítica dos costumes?  Afinal, o que está implícito no ensaio impactante de Jacques Rancière, “O Ódio à Democracia”, publicado originalmente em 2005?

O processo de ódio à democracia
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Crítica da transcendência? Crítica do marxismo? Crítica dos costumes?  Afinal, o que está implícito no ensaio impactante de Jacques Rancière, “O Ódio à Democracia”, publicado originalmente em 2005?

Rancière distingue dois momentos em que a democracia terá valores completamente diferentes entre si: antes dos anos 80, quando a democracia comporta a separação Estado e Sociedade, se diferenciando do Totalitarismo que procura transcender essa separação via raça (nazismo) ou através da classe social (comunismo) – nesse sentido, a democracia se oporia ao princípio estatal de totalidade; e depois dos anos 80, quando as propriedades que eram atribuídas ao totalitarismo, concebido como um Estado que devorava a sociedade, tornam-se simplesmente as propriedades da democracia, como uma sociedade que devora o Estado – nesse sentido a democracia conteria o princípio social da ilimitação.

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Analisando o livro “As Tendências Criminosas da Europa Democrática”, de Jean-Claude Milner, publicado em 2003, ou seja, um ano antes do texto em referência, Rancière chama a atenção para o que está em jogo no pensamento de Milner e na rede conceitual de seu pensamento, que traz implícita a “teoria do nome”, de origem lacaniana, com sua triplicidade característica: o real, o imaginário e o simbólico. Vale lembrarmos que Alain Badiou, que tratamos no texto anterior, faz parte dessa mesma escola de Milner.

A revisão da herança revolucionária da democracia, conforme salientada por Rancière no texto de Milner, consiste no fato de que, ao contrário da Política, sempre às voltas com totalidades limitadas, o sonho europeu de paz e democracia sem fronteiras, numa espécie de ilimitação da sociedade moderna, tem como aliada principal a Técnica, capaz de passar por cima de qualquer limite, se livrando, inclusive, pelas técnicas da manipulação genética e inseminação artificial, das próprias leis de divisão sexual, da reprodução sexual e da filiação.

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Para Milner, ao contrário dos judeus, cujo princípio de existência é a da filiação e da transmissão, em outras palavras, uma totalidade limitada, própria da Política, o ideal de autoengendramento da democracia seria também um ideal de autodestruição (para Milner, a Europa Democrática nasceu do genocídio e dá continuidade à tarefa querendo submeter o Estado Judeu às condições de sua paz, que são as condições do extermínio dos judeus).

 Conforme salienta Rancière, se no livro “O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial”,  de Samuel P. Huntington, anterior aos anos 80, temos uma democracia ocidental e cristã em oposição ao oriente despótico do Islã, já no livro de Milner, de 2003, a democracia torna-se sinônimo de totalitarismo, junto com o cristianismo e o islamismo, em oposição ao povo judeu. Para intelectuais europeus contemporâneos, além de Milner, como Badiou e Agamben, a democracia se tornou nome do mal, enquanto que para os argumentos que apóiam as campanhas militares americanas destinadas ao avanço mundial da democracia, na palavra conteria um paradoxo: um bom governo democrático controlando o duplo excesso da vida democrática, qual seja, o seu princípio anárquico de contestação e intervenção às atividades dos Estados, e, controlando  a multiplicidade de demandas da sociedade, indiferentes ao bem público (essa dualidade , governo e sociedade, antes dos anos 80, era uma marca positiva da democracia e Rancière vai se debruçar no estudo desse deslocamento de sentido: do paradoxo ao totalitarismo).

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É curioso que, segundo Rancière, o liberalismo francês exibido pela intelligentsia francesa desde 1980, isto é, a partir do governo Mitterrand, passando por Jacques Chirac, é uma doutrina de base dupla: ao mesmo tempo que é uma reverência às Luzes e à tradição anglo-americana da democracia liberal e dos direitos do indivíduo (a democracia parlamentar e liberal em contraposição à democracia radical e igualitária do corpo coletivo que foi uma característica tanto do terror da revolução francesa quanto do terror stalinista),  também  é, esse liberalismo francês, paradoxalmente, uma denúncia da revolução individualista, que foi característica da Revolução Francesa,  rompendo o corpo social (baseado em sua leitura de François Furet – “Penser La Revolution Française” , o princípio primeiro do Iluminismo é a doutrina protestante, que eleva o julgamento dos indivíduos isolados em vez das estruturas e das crenças coletivas). Nesse último sentido, o Terror é conseqüência rigorosa dessa dissolução social e da vontade de recriar, pelo artifício das leis e das instituições, um laço que apenas as solidariedades naturais e históricas podem tecer.

Essa dupla base é que explica esses dois momentos: um primeiro momento da vitória das liberdades individuais sobre a opressão do Estado (o fim da União Soviética); e um segundo momento que é a crítica marxista dos direitos humanos, conforme Hannah Arendt, que são os direitos egoístas da sociedade burguesa. Se para Marx, os egoístas são os detentores dos meios de produção, para Hanna Arendt são os consumidores ávidos, o homem democrático por excelência.  Conforme o Manifesto Comunista, mais de cento e cinqüenta anos atrás, a burguesia substituiria as numerosas liberdades conquistadas duramente, por uma única liberdade sem escrúpulos, que é a igualdade mercantil, repousada sobre uma relação de exploração (uma desigualdade fundamental entre o prestador de serviços e o cliente). Hoje, a generalização dessas relações mercantis  é os direitos do homem, realização da exigência de igualdade que arruína a busca do bem comum encarnado pelo Estado, “bem comum” entendido como uma espécie de transcendência coletiva, seja ela religiosa ou política. Esse pensamento, que Ranciere, ironicamente,  pinça de Hanna Arendt, também estará presente em Dominique Schnapper, em seu livro “A Democracia Providencial”: o reino da igualdade dos direitos humanos traduziria a igualdade da relação de exploração.

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O que Rancière vai acompanhar cuidadosamente vai ser o processo de transformação do sentido ou do valor da democracia. Em outras palavras, as etapas de eliminação de sua figura política: um primeiro momento, nos anos 80, em que a democracia se confunde com o estado da sociedade (o homem democrático é o indivíduo consumidor); e um segundo momento, em que estaríamos hoje sob a sua égide, identificando a democracia como uma catástrofe antropológica, uma autodestruição da humanidade. Para Rancière, e esse talvez seja o ponto central de sua argumentação, as duas etapas terão como ponto em comum o acerto entre filosofia e sociologia, valorizando a igualdade geométrica, própria da Politéia platônica (educação que dota cada pessoa e cada classe da virtude própria a seu lugar e função). A esse universal, continuamente privatizado, isto é, reduzido a uma divisão de poder entre nascimento, riqueza e competência, é que Rancière contrapõe a democracia, entendida como a rejeição dessa pretensão dos governos de encarnar um princípio uno de vida pública. A democracia, nesse sentido, seria o movimento que desloca continuamente os limites do público e do privado. Eliminar a figura política da democracia, como Rancière procura flagrar na História, seria eliminar o risco contínuo de deslocamento entre o público e o privado.

Vejamos então o primeiro momento desse acerto entre filosofia e sociologia.

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É quando a democracia passa a estar ligada ao consumo ávido, primeiro momento da eliminação da figura política da democracia. Aqui, há uma análise otimista da democracia encarnada na figura do filósofo Gilles Lipovtsky, em contraposição às análises pessimistas originárias dos EUA, como as de Daniel Bell,  em  seu “The Cultural Contradictions of Capitalism”, publicado em 1976. Para Bell, a cultura democrática, ligada à realização pessoal e ao hedonismo, entraria em contradição com o esforço produtivo da economia e com os sacrifícios em prol do interesse comum expressos no campo político. A esse paradoxo da democracia,  radicalizado por Baudrillard num modo marxista, afinal, para ele o consumo é uma falsa igualdade, Lipovetsky responde na perspectiva de alegres sociólogos pós-modernos: a sociedade personalizada do self-service tem uma semelhança com os regimes democráticos no que tange ao pluralismo partidário, às eleições e ao direito à informação. Haveria, inclusive, a adesão existencial dos indivíduos a uma democracia vivida, enquanto segunda natureza (o crescimento do narcisismo consumidor colocava a satisfação pessoal e a regra coletiva em harmonia).

Ainda que os filósofos à moda antiga, como Hanna Arendt e Leo Strauss, busquem recuperar o sentido de política desimpedida das expectativas do consumidor democrático, estabelecendo uma diferença entre o bem comum e o egoísmo da vida privada, há uma espécie de acordo, o primeiro deles, nos anos 80, entre filósofos e sociólogos: o homem democrático é o indivíduo consumidor e a democracia é um estado da sociedade governada pela única lei da individualidade consumidora. Vem à tona a figura do assalariado que defende, de maneira egoísta, privilégios arcaicos através de greves gerais. Essa ruína da política, à qual os sociólogos pós-modernos foram tão incansáveis, marca o primeiro momento da transformação do sentido de democracia.

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Mas o segundo momento dessa transformação, que também marca o segundo acerto entre filosofia e sociologia, Rancière vai centrar na discussão sobre a escola. Se nos anos 80, a tese sociológica quer tornar a escola mais igual, adaptando o conteúdo do ensino aos alunos mais carentes da herança cultural, partindo da premissa, conforme Bourdieu, de que há desigualdades sociais ocultas na forma aparentemente neutra da transmissão escolar do saber, já a tese republicana de Jules Ferry defende a separação da escola em relação à sociedade, onde reina a desigualdade . Para Ferry, o que importa é a distribuição do saber igualmente a todos, sem considerar a origem ou a destinação social, mas usando a forma de relação desigual aluno-professor.

O que vai marcar, de fato, o segundo momento, é que o inimigo que a escola republicana enfrentava não era mais a sociedade desigual  da qual ela tinha que afastar o aluno, mas, sim, o próprio aluno, transformado no homem democrático, vindo a escola a sofrer desse único mal, a Igualdade, encarnada no aluno. Diante desse estado de coisas, não cabe mais a figura do professor republicano que subtrai a criança da reprodução familiar de certa ordem social, qual seja, a democrática, com a sua respectiva desigualdade. Mas o pai de família que submete os filhos ao estudo farisaico, transmitindo o princípio do nascimento, o princípio da divisão sexual e o princípio da filiação.

Diante da homogeneidade social, que representou o primeiro momento do processo de eliminação da figura política da democracia, e o movimento ilimitado de crescimento de si como seu segundo momento (o consumidor do hipermercado, a adolescente que recusa tirar o véu e o casal homossexual que quer ter filho, incidindo todos eles na figura do homem democrático), a resposta respectiva será: a transmissão universal e igual do saber (com desigualdades sociais ocultas na forma aparentemente neutra de transmissão do saber); e a transmissão de princípios de nascimento, de divisão sexual e de filiação. Em ambas as respostas, um universal continuamente privatizado e a homogeneidade entre as instituições do Estado e os costumes da sociedade.

Mas todo esse cinismo de colocar a ilimitação da riqueza na conta do apetite devorador dos indivíduos democráticos, transformando a democracia devoradora na grande catástrofe pela qual a humanidade destrói a si mesma, não vai nunca deixar de suscitar a desordem democrática, deslocando sempre a fronteira entre o público e o privado, essência última da democracia.

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