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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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O projeto continental de poder do cristofascismo no Brasil

Se o Brasil não confrontar a estrutura religiosa, emocional e geopolítica que fabricou Bolsonaro, outro “ungido” surgirá — mais perigoso

O projeto continental de poder do cristofascismo no Brasil (Foto: Divulgação)

A comemoração justa e a ilusão perigosa

A prisão de Jair Bolsonaro derruba um galho podre, mas nada altera o tronco vigoroso do cristofascismo brasileiro — um projeto continental de poder que, desde os anos 1960, opera para sufocar a Teologia da Libertação, capturar afetos populares e reconfigurar o Brasil como laboratório autoritário. 

É justo comemorar a prisão de Jair Bolsonaro. A imagem de um ex-presidente algemado é, por si só, um marco civilizatório após anos de ameaças golpistas, delírios messiânicos e ataques ao STF. Mas, como alerta a pesquisadora e influencer Alina Câmara, “é só o começo”.

A estrutura que produziu Bolsonaro — midiática, psicológica, religiosa, militar e empresarial — continua ativa, intacta, robusta. E já prepara o próximo passo. Como escreveu Adorno em 1951, após o nazismo: “O fascismo pode voltar sob formas diferentes, adaptado ao espírito de cada época.” A nossa época é a era das redes, dos púlpitos eletrônicos e do mercado de afetos religiosos. O fascismo voltou — e voltou com a Bíblia na mão como arma de guerra.

Cristofascismo: a teologia que santifica o autoritarismo

O conceito de cristofascismo não é invenção retórica da esquerda. É um termo técnico criado pela teóloga alemã Dorothee Sölle para descrever a fusão entre fundamentalismo religioso, culto ao líder, masculinidade autoritária, violência moralizada, hierarquia patriarcal, demonização do outro. Sölle escreveu: “Quando Deus é usado para legitimar o poder, temos idolatria — e não fé.”

No Brasil, essa fusão produziu um fenômeno novo: o fascismo gospel, cujo imaginário combina guerra espiritual, teologia da prosperidade, apocalipse moral, ódio racial, patriarcado armado, neoliberalismo sacralizado. Bolsonaro não inventou esse ecossistema. Ele apenas se tornou o avatar político perfeito desse imaginário.

O ataque “from USA”: a guerra religiosa contra a Teologia da Libertação

Pouco se discute no debate público brasileiro o papel dos Estados Unidos na formação do nosso fundamentalismo religioso contemporâneo. O cristofascismo brasileiro é resultado direto de um projeto internacional de poder. A partir dos anos 1960, os EUA passaram a ver a Teologia da Libertação — que pregava justiça social, opção pelos pobres e crítica ao imperialismo — como ameaça geopolítica.

A resposta foi uma guerra teológica importada, que operou por envio massivo de missionários conservadores; financiamento de megaigrejas alinhadas ao anticomunismo; rádios, jornais e TVs, editoras e universidades religiosas; treinamento de pastores latino-americanos em seminários do sul dos EUA; difusão sistemática da Teologia da Prosperidade; demonização da esquerda e das lutas sociais.

Essa estratégia, documentada por pesquisadores como Jeffrey Gould, Paul Freston e David Stoll, tinha um objetivo inequívoco: despolitizar o cristianismo latino-americano, destruir a Teologia da Libertação e alinhar o Brasil e região ao neoliberalismo norte-americano.

O que hoje chamamos de “bolsonarismo evangélico” é o herdeiro direto desse projeto. Não é coincidência que as igrejas de guerra espiritual e de prosperidade tenham se tornado a espinha dorsal do fascismo brasileiro.

Fromm e Adorno: a psicologia do seguidor autoritário

O bolsonarismo abraçado pela extrema-direita não é apenas um fenômeno político. É um fenômeno emocional.
Para compreendê-lo, a pesquisadora influencer Alina Câmara recorre a dois pensadores fundamentais no seu vídeo divulgado recentemente pelo YouTube e alerta: “Não se iluda com a prisão de Bolsonaro. O fascismo cristão continua vivo no Brasil.” 

1. Erich Fromm — O medo à liberdade

Fromm escreveu:

“Quando a liberdade exige responsabilidade, muitos preferem regressar à servidão.”

O seguidor autoritário teme a complexidade; busca respostas simples; deseja um líder forte; projeta suas frustrações em inimigos imaginários.

2. Theodor Adorno — A personalidade autoritária

Adorno identificou os traços do fascista típico: submissão ao líder; agressividade contra minorias; anti-intelectualismo; moralismo cruel; paranoia política.

A descrição parece escrita para o Brasil de hoje. O bolsonarista típico não segue Bolsonaro: segue o conforto psicológico da autoridade.

Carl Schmitt: o jurista do fascismo cristão

Nenhum autor explica tão bem o autoritarismo religioso quanto Carl Schmitt, jurista do nazismo, que afirmava:

  • “Soberano é quem decide o estado de exceção”
  • “A política é sempre a distinção entre amigo e inimigo.”

Pastores extremistas brasileiros aplicam Schmitt sem o citar: o “ungido” acima da lei; o STF como “inimigo”; a democracia como obstáculo; o mundo dividido entre “povo de Deus” e “filhos das trevas”. O resultado é uma teologia do poder, não da compaixão.

Eco: o bolsonarismo cumpre todos os critérios

Em O Fascismo Eterno, Umberto Eco listou 14 características do fascismo moderno. Culto à tradição e ao mito; rejeição da modernidade; medo da diferença; apelo às classes frustradas; patriotismo tóxico; machismo; populismo seletivo; obsessão pelo complô; linguagem empobrecida; culto à violência purificadora. A extrema-direita bolsonarista cumpre todas.

Eco escreveu: “O fascismo pode retornar quando menos esperamos, porque nunca foi embora.” No Brasil, ele voltou pelos púlpitos. E voltou querendo ficar por muito tempo.

Os púlpitos que plantaram o fascismo brasileiro

O vídeo de Alina Câmara demonstra como as igrejas neopentecostais se tornaram máquinas políticas: transformaram a fé em guerra espiritual; criaram inimigos; santificaram o líder; militarizaram a moral; organizaram um exército emocional; capturaram subjetividades periféricas.

Como já analisamos em artigos anteriores, trata-se de uma teocracia neoliberal de massas, que converte dor em voto, medo em obediência e fé em projeto de poder. 

A Árvore Cristofascista

A metáfora da árvore citada pela pesquisadora e influencer Alice Câmara é precisa. Raízes: racismo, desigualdade, patriarcado, colonialidade. Tronco: fundamentalismo religioso, militarismo, neoliberalismo messiânico. Galhos: Bolsonaro, Milei, Bukele, Trump, Kast — líder ultraconservador chileno, defensor declarado da ditadura de Pinochet e articulador continental da extrema-direita, ameaça ganhar no segundo turno as eleições chilenas em 14 de dezembro. Todos eles são intercambiáveis entre si. Todos são versões de um mesmo projeto internacional. Aqui, o galho Bolsonaro caiu. Mas, a árvore segue viva. Crescendo. E querendo continuar a crescer.

Estamos em plena campanha presidencial. E o que está em jogo é mais do que uma eleição: é o destino espiritual, político e civilizatório do Brasil. Dois projetos de país. Duas visões de história estão no cenário eleitoral de 2026.

O projeto democrático-popular

As pesquisas indicam que Lula caminha para uma reeleição provável, sustentado por políticas de reconstrução dos quatro anos trágicos do governo da extrema-direita bolsonarista

; inclusão social; defesa da democracia; combate ao ódio; soberania internacional; respeito às instituições; diálogo com setores democráticos da fé. O projeto que representa o Brasil plural, o Brasil real, o Brasil que existe fora das bolhas teológicas e digitais.

O projeto conservador-autoritário

Três forças convergem neste campo: a extrema-direita cristofascista; a direita liberal, o centro fisiológico. Todas têm um objetivo comum: destruir o projeto democrático-popular e restaurar uma ordem oligárquica, patriarcal e teocrática. E todas contam com a mesma estrutura religiosa que produziu bolsonarismo. 

A prisão de Bolsonaro é histórica. Mas não encerra nada. O Brasil só derrotará o fascismo quando derrubar não apenas o galho, mas a árvore inteira — suas raízes, seu tronco, seus frutos envenenados.

2026: a encruzilhada entre Democracia e Teocracia 

A eleição de 2026 não é apenas mais um capítulo da política brasileira. É o juízo histórico de uma nação inteira. De um lado, o projeto democrático-popular, adotado por Lula nos seus três governos, reconhecido pelas pesquisas como favorito, em 2026, e sustentado pela reconstrução de direitos, pela recomposição da soberania nacional, pela valorização das instituições e pela promessa de um Brasil real, plural, vivo, com espaço para a diversidade, a ciência, a cultura e a dignidade. 

Do outro lado, uma aliança sombria entre a extrema-direita cristofascista; direita liberal autofágica; centro-direita fisiológica; e o subterrâneo militar-empresarial que nunca aceitou 1988. Forças que operam em ritmos diferentes, com discursos distintos, mas convergem para o mesmo destino: recolonizar o Brasil, reduzir sua democracia à obediência econômica, entregar sua soberania espiritual às máquinas evangélicas importadas dos EUA e reinstalar o país como periferia disciplinada do capitalismo global.

E o fazem com uma arma que a esquerda tradicional ainda subestima: o poder emocional e teológico dos púlpitos e dos altares. Uma máquina que produz ressentimento, culpa, medo, esperança distorcida e uma moralidade artificial que transforma milhões de cidadãos em soldados de uma guerra que eles sequer sabem que estão travando.

Enquanto Lula propõe um país com pão, vacina, escola, emprego, livro, universidade, soberania, futuro e alegria, a extrema-direita e seus aliados oferecem apocalipse, vingança, ódio, um “líder-mártir” e um projeto de nação submetido à vontade de um Deus armado.

Uma escolha muito difícil?

A escolha entre estes dois projetos de poder se aproxima. Em 2026, o projeto democrático-popular do governo Lula e do campo progressista de um lado; e o projeto conservador-autoritário da extrema-direita e da direita liberal, de outro, disputarão não apenas um governo, mas o destino da própria democracia. A decisão pode ser no primeiro turno, em outubro, ou no segundo, em novembro de 2026. O ano que já começou.  

O recado de Lula aos eleitores

Ao tratar do cenário político eleitoral nesta terça-feira 8, o presidente Lula afirmou que a continuidade das políticas sociais depende diretamente do resultado das próximas eleições.

 “Depende da qualidade dos deputados, das deputadas, dos senadores, dos governadores e do presidente da República que vocês elegerem”, disse.

E alertou, do jeito Lula de ser, com a metáfora: “nunca deu certo colocar raposa para tomar conta de galinheiro”.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.