O que a equipe brasileira de ginástica rítmica tem a nos ensinar?
"A consagração da hegemonia brasileira na ginástica e os expressivos resultados são parte de um processo que vem sendo construído a muitas mãos", diz Nozaki
Neste domingo (05), após 16 dias de competições, o Brasil finalizou sua participação nos Jogos Pan-Americanos de Santiago efetivando sua melhor campanha neste evento esportivo e consolidando marcos históricos que merecem destaque. Com o total de 205 medalhas, dentre elas 66 de ouro, a delegação brasileira encerrou o Pan em segundo lugar no quadro geral, abaixo apenas dos atletas norte-americanos. Esta edição histórica também ficará marcada pelas conquistas majoritárias das mulheres, tanto em relação às medalhas de ouro como na somatória total de medalhas (incluindo as de prata e de bronze), com destaque para as atletas da ginástica rítmica brasileira, modalidade que gabaritou 8 ouros em 8 provas disputadas.
Na categoria individual, a ginasta Bárbara Domingos venceu a disputa geral, seguida da ginasta Maria Eduarda Alexandre, vice-campeã. Ao longo das provas de cada aparelho (bola, arco, maças e fita), as duas atletas alternaram entre si o lugar mais alto do pódio e impressionaram o público com coreografias extremamente técnicas e bem executadas. A equipe individual também contou com a participação da ginasta Geovana Santos, ex-atleta do conjunto brasileiro de ginástica rítmica, que conquistou a medalha de prata na prova de bola, numa emocionante apresentação.
Liderado pela técnica Camila Ferezin e pela auxiliar-técnica Bruna Martins, o conjunto do Brasil foi o campeão absoluto, garantindo o ouro na disputa geral, na prova de 5 arcos e no conjunto misto de bola e fita. As mesmas coreografias apresentadas pelo conjunto já haviam sido fruto de uma bela campanha brasileira nas etapas mundiais da modalidade, garantindo a vaga olímpica do Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024.
A consagração da hegemonia brasileira na ginástica rítmica pan-americana e os expressivos resultados nas etapas mundiais são parte de um processo que vem sendo construído a muitas mãos (pernas e pés) e que tem muito a nos ensinar. No conhecido “país do futebol”, abrir espaço para um esporte predominantemente feminino e com um regulamento extremamente complexo é uma tarefa que demanda muito empenho, muita organização e muito planejamento.
Para entender o sucesso da equipe brasileira de ginástica rítmica, é preciso reconhecer que os ganhos de hoje são fruto de algumas décadas de dedicação árdua daquelas e daqueles que estruturaram pouco a pouco a modalidade pelo país, para além da própria seleção brasileira. Em outras palavras, a consolidação deste esporte numa equipe de ouro, competitiva em nível mundial, é o desdobramento de um longo processo de mobilização social em prol da democratização e da qualificação do acesso ao esporte, no caso, da ginástica rítmica.
Para além da infraestrutura da qual a seleção brasileira hoje goza, com uma equipe multidisciplinar engajada na evolução de cada atleta, com espaço adequado para o treinamento, boas condições de estadia para as ginastas e intercâmbios frequentes com equipes de outros países, a ginástica rítmica brasileira hoje é um projeto coletivo com focos por todo o país. Atualmente os eventos nacionais contam com um padrão bastante alto de organização e infraestrutura, com transmissões em tempo real dos campeonatos, fato que contribui efetivamente para a popularização da modalidade, assim como são frequentes as capacitações dos técnicos pelo Brasil. A ginástica rítmica no Brasil hoje é um projeto que se organiza sob duas perspectivas: a de rendimento, pensada para o desenvolvimento da própria modalidade, e a social, voltada para o desenvolvimento da sociedade, como uma ação educativa e uma experiência sociocultural. E o que temos a aprender com a ginástica rítmica brasileira? Para além do orgulho e da alegria que sentimos diante do espetáculo proporcionado pelas ginastas brasileiras, quais outros ganhos essa experiência pode nos trazer?
A começar, pela superação da lógica neoliberal e meritocrática que reduz o esporte ao atleta e ao alto rendimento, limitando a prática esportiva a poucos e a circunscrevendo como uma mercadoria, utilizada apenas para apreciação do público. É necessário reconhecer o esporte como um direito social que confere dignidade às pessoas e que, portanto, deve ser democratizado e assegurado para além de sua dimensão de espetáculo. É preciso analisar o que se oculta por trás do recorde de medalhas e da participação brilhante das ginastas brasileiras no Pan-Americano, trazendo à tona o conjunto de forças que se unem para consolidar a prática esportiva, sobretudo a partir do papel central do Estado na implementação de políticas públicas, muitas vezes viabilizando o financiamento e patrocínio das equipes.
Atualmente o maior instrumento público voltado ao setor esportivo é a Lei de Incentivo ao Esporte, um mecanismo de isenção fiscal que favorece a captação de recursos para a realização de projetos sociais esportivos, como por exemplo o JEB’s (Jogos Escolares Brasileiros), evento nacional de grande porte que conta com uma grande infraestrutura e diversidade de modalidades. Embora nos discursos apaixonados pelo esporte exista uma série de pontos que justifiquem sua importância social, sua potencial capacidade de correlacionar saúde e educação, seu favorecimento às construções de identidades sociais, é urgente que o entendamos como um direito social que, para ser assegurado, mantido e garantido, precisa de permanente mobilização e luta política. Tivemos recentemente um apelo, descentralizado, pela permanência da ex-Ministra do Esporte Ana Moser, um movimento (quase envergonhado e pouco barulhento) que reivindicou a importância desta pauta para parte da sociedade, uma aversão à fufucalização. Talvez este seja um sintoma indicando que pouco a pouco estamos ampliando a nossa concepção do que é o esporte, de seu papel fundamental na construção de uma sociedade mais democrática, igualitária e que valoriza as políticas sociais à luz dos direitos humanos. Em última instância, que também nos permitamos fruir como espectadores, nada passivos, diante da beleza e da força com que as nossas ginastas colorem a história do esporte brasileiro, um feito que nos encanta, mas que também pode nos inspirar e nos mobilizar a ser mais.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

