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Flávio Ricardo Vassoler

Doutor em Letras, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (Estados Unidos). É autor de várias obras, como O evangelho segundo talião, Tiro de misericórdia, Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo

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O que seria da existência sem as coisas que não existem?

"Imaginemos o poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa, por detrás dos óculos e do bigode, em um café lisboeta", propõe Flávio Ricardo Vassoler

(Foto: Luanna Falcão)
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Ilustração de Luanna Falcão. Sigam seu Instagram: @luanna.artworks

Em homenagem a Antônio Abujamra (1932-2015), o idólatra da dúvida, este texto, desde seu título – isto é, desde o rosto-máscara do ator –, encarna e interpreta um aforismo do saudoso apresentador de Provocações: “O que seria do mundo sem as coisas que não existem?”.

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Imaginemos o poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa, por detrás dos óculos e do bigode, em um café lisboeta.

Aos soslaios – e com a pena sempre à mão –, Pessoa tenta auscultar os sussurros alheios como se cada um de seus heterônimos pudesse se esgueirar pelas demais mesas.

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Ocorre que Pessoa já não precisa capturar as vozes para entreouvir os diálogos. (Quem lê cara desnuda o coração.)

Que dizer daquele senhor que olha fixamente para seu copo inerte de conhaque como se ele próprio estivesse parafusando a tampa de seu caixão?

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Mas quem é aquele homem – nem jovem nem idoso, ainda sob o chapéu, o sobretudo inadvertidamente sobre o colo –, quem é aquele homem que, no canto do café, entrincheirado do mundo, vai amontoando folhas e rascunhos, aquele homem que escreve com ímpeto e que parece recitar as palavras de sua criação, como se as palavras tivessem que escapar do claustro da imaginação para poderem merecer o papel – quem é aquele homem que eu nunca vi? Quem é ele?

Súbito, Bernardo Soares, uma das pessoas de Fernando, vai até o escritor e lhe responde com o eco de sua dúvida:

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– Meu caro Fernando, ele é você.

(Tenho em mim todos os outros do mundo: Fernando Pessoas e a casa de espelhos de si mesmo.)

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Sem ser convidado pelo anfitrião de seu próprio corpo, Bernardo senta-se à mesa do poeta, bem à sua frente.

(Será que Bernardo só consegue dizer o que Pessoa cria? Ou será que Fernando só consegue criar o que Soares lhe diz?)

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Bernardo Soares dá uma coçadinha no lóbulo esquerdo.

Fernando Pessoa resvala o lóbulo direito.

Fernando Pessoa saca um cigarro.

Bernardo Soares lhe oferece um isqueiro.

De soslaio, Fernando vê um rascunho na mão esquerda de Bernardo.

Com o canto do olho, Bernardo vê uma folha não mão direita de Fernando.

Súbito, pai e filho (corpo e alma, corpo e sombra) sentenciam:

– Ah, quer dizer que você andou escrevendo?

Pessoa quer ler a criação de Soares.

Soares quer ler a composição de Pessoa.

Súbito, unha e carne sentenciam:

– Você primeiro!

Chega o garçom com dois conhaques oferecidos pelo senhor agourento, leitor ávido de Fernando Soares – ou seria de Bernardo Pessoa?

O senhor lhes faz uma saudação solene com a gravidade de um cortejo fúnebre.

Os agnósticos Fernando Pessoa e Bernardo Soares fazem, ao mesmo tempo, o Pelo Sinal da Santa Cruz – Pessoa, católico, com a mão direita, da esquerda para a direita; Soares, ortodoxo, com a mão esquerda, da direita para a esquerda.

Súbito, o garçom sugere que Fernando Pessoa e Bernardo Soares decidam quem vai ler primeiro por meio de uma disputa de par ou ímpar.

– 1, 2, 3 e... já!

Fernando e Bernardo apresentam, simultaneamente, os punhos cerrados do número 0.

Impasse entreolhado no café lisboeta: e agora, 0 é par ou 0 é ímpar?

Para dar fim à guerra fria de Pessoa e Soares, o garçom, pragmático e escolado, pergunta a Fernando e a Bernardo:

– Quem se sentou à mesa primeiro?

Soares olha para Pessoa.

O garçom prossegue:

– Logo, quem é o convidado?

Fernando olha para Bernardo.

O garçom arremata:

– Assim, é de bom tom que o convidado, a receber a hospitalidade do anfitrião, dê início ao sarau em nosso café lisboeta.

– Pois muito bem – Bernardo Soares abre a folha em sua mão esquerda.

Ávido, Fernando Pessoa apruma os ouvidos.

Assim falou Bernardo Soares:

– Deus é o existirmos e isto não ser tudo.

Fazendo o Pelo Sinal com ambas as mãos, o garçom zarpa dali.

Fernando Pessoa apoia o queixo sobre a palma da mão esquerda e cofia o bigode, levemente, com o indicador direito.

Bernardo Soares não se faz de rogado:

– E então, Fernando, o que acha?

 – Fiquei aqui imaginando o que Dostoiévski diria do teu aforismo, Bernardo.

– É mesmo? E o que você acha que o russo diria?

– Que Deus e o diabo estão em luta, e o campo de batalha é o coração do homem.

– Eita! Então você acha que Dostoiévski entreveria Cristo e o grande inquisidor, João Batista e Herodes em meio à trincheira do meu aforismo? Ora, meu caro Fernando, diga-me por quê – fiquei curioso.

– Procuremos traçar, então, a genealogia do teu Gênesis.

– Fiat lux, Fernando, traga-me a luz.

– Você diz que Deus é o existirmos, isto é, Deus bem poderia ser o criador do céu e da terra. Ora, o que há de mais obscurantista em Dostoiévski bem gostaria de não dar ouvidos a Charles Darwin, mas eis o que, a meu ver, a primeira parte do teu aforismo sugere ao, digamos, sacralizar a existência.

– Hum…

– Mas, como bem sabem as personagens demoníacas de Dostoiévski – a legião de niilistas e homicidas, de mitômanos e suicidas, de ateus e bufões –, se a vida for apenas o existirmos aqui e agora; se a morte for o dead end da vida; se, em suma, a vida não for eterna – ou, por outra, se Deus não existir –, tudo se torna permitido. Assim, meu caro cristão Bernardo, eis o alfa (Deus é o existirmos) e o ômega (e isto não ser tudo). Você quer o Gênesis sem o Apocalipse, ou, por outra, você quer que o Apocalipse ofereça ao Gênesis a outra face.

– Bravo, Fernando, bravo!

– Calma, Bernardo, calma: bem está o que acaba bem.

– Não acabou?

– Não, ainda não. Submetemos o grande inquisidor e Herodes à pia batismal de Cristo e João Batista. Agora, precisamos submeter Cristo e João Batista ao calvário deste mundo.

– Ora, caro Fernando, diga-me como – fiquei curioso.

– Procuremos traçar, então, a genealogia da tua apostasia.

– Fiat lux, Fernando, traga-me a luz.

– Nietzsche, leitor de Dostoiévski e leitor do teu aforismo, Bernardo, tomaria a vereda antípoda e esquerda da tua encruzilhada. Senão, vejamos: você diz que Deus é o existirmos – para Nietzsche, a existência, desprovida de qualquer redenção transcendente, só pode se tornar a deificação da imanência, a ode ao aqui e agora, a sacralização do instante-já. Se o teu aforismo acabasse aqui, caro Bernardo, Nietzsche convidaria você para escalar a montanha de Zaratustra. Ocorre que você deu sequência ao aforismo, Bernardo, e Nietzsche, o herege, já não consegue lhe perdoar por isso. Deus é o existirmos e isto não ser tudo. (A ira de Nietzsche chega a tal ponto que o alemão, para excomungar a contrarreforma da segunda parte do teu aforismo, Bernardo, lança mão do ateísmo de um de seus travessões contumazes para separar o joio do trigo: Deus é o existirmos – e isto não ser tudo.) Mas como é que isto pode não ser tudo, Bernardo, se o instante-já (o aqui e agora, tudo aquilo que nos resta e nos escapa) é a única coisa de que (já não) dispomos? Nietzsche vira Dostoiévski de ponta-cabeça e diz ao russo e a você, Bernardo: com o arremate do teu aforismo, com a vontade anacrônica – a nostalgia mórbida da cruz e dos santos sepulcros – de que haja algo para além desta vida, Nietzsche te chama de niilista, Bernardo, Nietzsche sentencia que, ao imaginar um vir-a-ser idílico e ao projetar a continuação da existência como um salto vital rumo à eternidade do nada, você mina a vinculação do homem com a fugacidade de tudo aquilo que a ampulheta ainda não fez escoar pelo Hades de seu pescoço de vidro.

– Eita! Mas e agora, Fernando, quem é que tem razão: Dostoiévski ou Nietzsche?

– Talvez ambos, talvez ninguém…

– Ora, Fernando, como assim?

– Talvez, e não mais do que talvez, uma facção zombe da outra – e ambas tenham razão.

O sorriso de soslaio de Fernando Pessoa aponta para a direita.

O sorriso de soslaio de Bernardo Soares aponta para a esquerda.

Chega o garçom com mais dois conhaques oferecidos pelo senhor agourento, leitor ainda mais ávido de Bernardo Pessoa – ou seria de Fernando Soares?

O senhor lhes faz outra saudação solene com a gravidade de um cortejo fúnebre.

Os agnósticos Bernardo Soares e Fernando Pessoa fazem, ao mesmo tempo, o Pelo Sinal da Santa Cruz – Soares, católico, com a mão direita, da esquerda para a direita; Pessoa, ortodoxo, com a mão esquerda, da direita para a esquerda.

Súbito, o garçom sugere que Fernando Pessoa leia seu rascunho, já que Bernardo Soares cumprira sua parte.

Pessoa limpa a garganta e vai abrindo a mão direita para resgatar seu rascunho com a mesma morosidade do ninho que não quer se apartar de seus filhotinhos.

(Dessa vez, o garçom Vasques permanece junto à mesa – ora, quem, em sã consciência, perderia um recital de Fernando-Pessoa-ele-mesmo?)

Súbito, Fernando Pessoa interpela Bernardo Soares:

– Deus é o existirmos e isto não ser tudo?

– É.

Com o dedo em riste, Fernando Pessoa volta a interpelar Bernardo Soares:

– _Deus é o existirmos e isto não ser tudo? _

– Talvez…

Então, qual um italianão com as veias da testa e da têmpora sobressaltadas e as mãos em polvorosa, Fernando Pessoa recita o eco de seu aforismo para Bernardo-Soares-eu-mesmo:

– E o que seria da existência sem as coisas que não existem?

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