O que você está fazendo aí fora da caverna?
A Olimpíada do Rio é uma oportunidade clássica e ensejo porventura único à desobediência civil, ou melhor, à resistência à la Thoreau ao governo civil do presidente interino Michel Temer – de repetir, agora direto das arquibancadas, o gesto histórico que marcou os Jogos Olímpicos de 1968 no México
O gênio de um leitor de fôlego ou de um apreciador de arranjos consiste secundariamente em vislumbrar o leitmotiv que perpassa dois ou mais temas literários ou musicais, por vezes os mais diversos entre si. O primeiro plano –– evidente –– é sempre a dedicação cotidiana aos próprios temas. Hegel tomava o hábito da leitura de jornais pela manhã cedo como uma verdadeira espécie de “prece matutina do real”.
Há exatos nove anos, em 08/08/2007, Abdelkarim Bayoudh e Ablelbasset Zenzri, capitães dos pesqueiros Morthada e Mohamed El Hedi de origem tunisiana, e o restante de sua tripulação composta ao todo por sete homens, foram detidos na Itália depois de salvar da morte certa, em alto mar, quarenta e quatro imigrantes (oriundos do Sudão, Eritreia, Etiópia, Marrocos, Togo e Costa do Marfim) a bordo de um pequeno bote de borracha à beira do naufrágio, entre eles duas mulheres grávidas prestes a dar à luz e uma idosa bastante enferma, além de uma criança epilética. [1]
A situação era iniludivelmente crítica, e a decisão a ser tomada, demasiado óbvia: ou retornar à sua cidade natal em Monastir, a 145 km de distância, ou conduzi-los ao porto mais próximo, para cuidados médicos, na ilha de Lampedusa, a apenas 50 km, onde foram presos, afinal, todos os sete marinheiros, sob as acusações de contrabando de imigrantes ilegais e de cometimento de crime de desobediência às ordens de não atracar dadas pelas autoridades portuárias sicilianas; eles tiveram ainda suas embarcações apreendidas, as quais findaram imprestáveis no “cimitero delle barche” da Ilha, após anos cobertas de ferrugem, longe dos cuidados dos antigos donos.
Despojados de seus navios, desempregados, endividados, vivendo às expensas da família e ainda sob o risco de serem sentenciados a até quinze anos de prisão em regime fechado, os dois pescadores foram condenados pelo Tribunale di Agrigento em 2009 mas absolvidos pela Corte d’Appello di Palermo pouco mais de quatro anos depois do calamitoso resgate. [2]
Apesar do medo que o destino trágico de Zenzri inspira em seus colegas marujos (confrontar-se com o real traumático da aproximação de imigrantes em situação géricaultiana, sobretudo cientes de que mal nenhum sobreveio a outros pescadores que, em circunstâncias parecidas, deixaram de lhes prestar socorro, enxotando-os com varas e permitindo que morressem afogados), ele próprio não titubeia: “Eu faria tudo de novo”. [3]
O desastre inspirou o filme Terraferma (2011), do diretor romano Emanuele Crialese, premiado no 68° Festival de Cinema de Veneza.
Em 12/02/2015, o Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação em R$50.000,00 (cinquenta mil reais) a título de danos morais sofridos pelo Ministro Gilmar Mendes, em virtude de uma publicação de autoria do jornalista Paulo Henrique Amorim em seu blog “Conversa Afiada”.
Para a Quarta Turma do STJ, tal publicação teria sido “capaz, por si só, de induzir o leitor a acreditar ser o então Presidente do Supremo Tribunal Federal “comparsa” (companheiro, cúmplice, parceiro, co-participante) de atividades criminosas envolvendo banqueiro flagrado na Operação Satiagraha conduzida pela Polícia Federal.” Na ementa do recurso –– REsp n° 1.500.676/DF ––, o Ministro Relator Marco Buzzi houve por bem consignar, sem qualquer reserva ou dissimulação, que a veiculação ultrapassaria ainda “as circunstâncias efetivamente conhecidas acerca dos acontecimentos envolvendo os fatos da referida operação (Satiagraha), passando a ideia de que o "jeitinho brasileiro e a corrupção" alcançam indistintamente a todos os órgãos e poderes, servidores públicos e profissionais de carreira de Estado, incluído aí o guardião da Constituição ora litigante.” [4]
Por fim, o Washington Post (o mais antigo periódico da capital ianque) noticiou, no último dia 07/08/2016, a censura sofrida pelos manifestantes brasileiros nos Jogos Olímpicos Rio 2016. [5] Em vídeo que circula nas redes sociais, um policial aborda torcedoras no Estádio Mineirão, onde se realizava a partida França x EUA de futebol feminino; as senhoras estariam infligindo o art. 28 da Lei das Olimpíadas, [6] que, a bem da verdade, proíbe tão somente mensagens de cunho racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação nos locais oficiais relacionados às competições.
Nada obstante, o portal G1 da Central Globo de Jornalismo –– em episódio de mais realismo do que se permitiria o rei mesmo ––, apressou-se a divulgar, naquele dito dia, que o STF já havia “considerado legal restrição a [sic] manifestação política em estádio”: [7] ora, no debate envolvendo o julgamento da medida cautelar na ADI n° 5.136/DF (dada como precedente pelo G1), ajuizada pelo PSDB em face da Lei da Copa, [8] o próprio Ministro Relator Gilmar Mendes ponderou que é necessário que a sociedade aberta dos intérpretes do ordenamento jurídico –– isto é, exegese não restrita ao aparato estatal –– se aperceba da compreensão de que “as vaias e os apupos também dirigidos a autoridades, às vezes, de maneira muito mais enfática, a rigor, também não são ofensas de caráter pessoal, elas são apenas manifestações de desacordo.” [9]
Qual seria, então, a decorrência lógica conexiva entre a tríade de acontecimentos absurdos aqui relatados resumidamente? Não estaríamos todos de acordo de que, em todas elas, o objetivo precípuo do Estado-Regulador ou do Estado-Juiz é transmitir uma mensagem de ostensiva intimidação: dissuadir os demais pescadores, jornalistas e torcedores do atrevimento apenante de assumir semelhante postura? Parece no mínimo imprudente insinuar oposição às grandes estruturas burocráticas, tais como o serviço público, as forças armadas, a indústria, o partido etc.
Žižek entrevê nesse intento estatal uma passagem clara do barbarismo direto para um paradoxal barbarismo de rosto humano: invocando a formulação do “antissemitismo sensato” defendido pelo escritor fascista Robert Brasillach, o filósofo esloveno correlaciona tal atitude à práxis governamental posterior à rejeição constitucional-virtuosa de marginalizações “insensatas” e inaceitáveis para os padrões democráticos modernos, a saber, o apoio e a adoção oficial de medidas protetoras “sensatamente” marginalizantes.
“(...) Não queremos matar ninguém, não queremos organizar nenhum pogrom. Mas achamos que a melhor maneira de atrapalhar as ações sempre imprevisíveis do antissemitismo instintivo é organizar o antissemitismo sensato.” [10]
É possível imaginar a cena em que o mesmo agente da Força Nacional aborda as sobressaltadas torcedoras com o genuíno sotaque francês de Brasillach: “não queremos matar ninguém, não queremos organizar nenhuma chacina. Mas achamos que a melhor maneira de atrapalhar as ações sempre imprevisíveis das manifestações violentas é organizar a proteção sensata contra os manifestantes.”
Por falar em violência, não é bem verdade que se o STF considerasse factivelmente legal a restrição às manifestações políticas nos locais oficiais das Olimpíadas, nosso brado não deveria ser o mesmo que o do fervoroso abolicionista William Lloyd Garrison, o qual, ao ser objetado por um ouvinte de seus discursos acalorados que a Constituição Americana avalizaria a escravidão –– de fato, ela a autorizou até a promulgação da Décima Terceira Emenda no ocaso do ano de 1865 da Graça do Nosso Senhor Jesus Cristo ––, retrucou que “se assim o é, devemos atear fogo a esse documento”?
As Olimpíadas Rio 2016 são uma oportunidade clássica e ensejo porventura único à desobediência civil, ou melhor, à resistência à la Thoreau ao governo civil do Presidente Interino Michel Temer –– de repetir, [11] agora direto das arquibancadas, o gesto histórico que marcou os Jogos Olímpicos de 1968 no México. Afinal de contas, por que Temer não pode ser chamado, coram lege, daquilo que nós sabemos que ele realmente é?
Žižek nos lembra, a propósito, que o ato de “não mencionar ou ocultar alguma pode criar significado adicional.”
“Quando, em fevereiro de 2003, Colin Powell discursou na assembleia da ONU para defender o ataque ao Iraque, a delegação dos Estados Unidos pediu que a grande reprodução de Guernica de Picasso na parede atrás da tribuna fosse coberta com um ornamento visual diferente. Embora a explicação oficial fosse que Guernica não fornecia o pano de fundo visual adequado para a transmissão televisiva do discurso de Powell, ficou claro para todos o que a delegação dos Estados Unidos temia: que Guernica, que imortaliza os resultados catastróficos do bombardeio aéreo alemão à cidade espanhola durante a guerra civil, desse origem a “associações do tipo errado” se servisse como pano de fundo para o discurso de Powell defendendo o bombardeio do Iraque pela força área muito superior dos Estados Unidos. É isso que Lacan quer dizer quando afirma que o recalque e o retorno do recalcado são um único e mesmo processo: se a delegação dos Estados Unidos tivesse se abstido de pedir seu ocultamento, provavelmente ninguém associaria o discurso de Powell à pintura exibida atrás dele. Foi precisamente esse gesto que chamou atenção para a associação e confirmou sua veracidade.” [12]
E aqui podemos tomar uma sábia lição prática dos transcendentalistas e reformistas da Nova Inglaterra, cujo otimismo neoplatônico subsistiu contiguamente, mais tarde, a um condizente radicalismo político, sobretudo em Emerson –– que, de resto, admirava e financiava as campanhas do “terrorista” avant la lettre John Brown, o precursor da Guerra da Secessão. Reza a lenda que quando Thoreau foi preso em meados de 1846 por se recusar a cumprir a lei segregacionista do poll tax (e assim deixar de recolher o imposto que eventualmente subsidiaria a guerra contra o México), Emerson o visitou na cadeia e teria lhe indagado: “O que você está fazendo aí dentro?”. Thoreau então contestou: “O que você está fazendo aí fora?”. [13]
A permanência intacta no interior do espaço público é, por vezes, a amostra perfeita de uma violência já impassivelmente consumada.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] http://www.independent.co.uk/news/world/europe/tunisian-fishermen-face-15-years-jail-in-italy-for-saving-migrants-from-rough-seas-5329328.html
[2] http://www.ilfattoquotidiano.it/2011/09/26/prosciolti-i-due-pescatori-che-nel-2007salvarono-44-profughi-nel-canale-di-sicilia/160076/
[3] http://www.taz.de/Bootsfluechtlinge-in-Tunesien/!5111543/
[4] DJe de 24/02/2015, itálico nosso. –– E o que dizer da reação dos juízes do Paraná, capitaneados pelo próprio presidente da respectiva associação dos magistrados estaduais, os quais ajuizaram dezenas de ações de reparação milionária de “danos morais” como forma de retaliação à publicação no jornal Gazeta do Povo, do dia 17/02/2016, de reportagem acerca da remuneração percebida por cada um dos magistrados do Estado do Paraná, nos meses de janeiro a dezembro de 2015, em contraste com o instituto do teto remuneratório constitucional? “Todos os magistrados, sem exceção, protocolizaram petições iniciais idênticas em sua descrição dos fatos, nos fundamentos jurídicos e nos pedidos, diferindo apenas quanto à qualificação das partes. (...) a propositura de ações simultâneas em mais de uma localidade implica embaraço ao direito de defesa, uma vez que as audiências foram designadas para datas próximas ou mesmo em dias coincidentes, o que obriga o preposto, a advogada da empresa jornalística e os jornalistas que participaram da elaboração da matéria a se deslocarem, em conjunto, para comarcas remotas do interior. (...) ao invés de uma pauta jornalística, passaram a responder por uma pauta de audiências espalhadas pelo Estado do Paraná.” (Vide relatório da Reclamação n° 23.899/DF, STF, Relatora Ministra Rosa Weber, DJe de 27/05/2016, itálico nosso). Essa não é a subversão fisiológica do “uso público da razão” kantiano em seu estado mais puro?
[6] Lei Federal n° 13.824, de 10 de maio de 2016.
[7] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/olimpiadas/rio2016/noticia/2016/08/stf-ja-considerou-legal-restricao-manifestacao-politica-em-estadio.html
[8] Lei Federal n° 12.663, de 05 de junho de 2012.
[9] Acórdão na MC na ADI n° 5.136/DF, STF, Plenário, DJe n° 213 de 30/10/2014, p. 23, itálico nosso.
[10] Citado em Žižek, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo Editorial, p. 50.
[11] Gjentagelsen, aqui no sentido filosófico kierkegaardiano.
[12] Žižek, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 29.
[13] Citado em Žižek, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, p. 133.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

