O silêncio do Brasil diante do genocídio armênio: um dever histórico esquecido
Meus avós, dada a idade avançada, não puderam fugir da morte e foram queimados vivos
O embaixador da Diáspora Armênia, Abraham Kulajian, convidava. De Brasília, vieram os embaixadores da Armênia. Presentes também os cônsules da Síria e o Vigário Patriarcal para a Igreja Ortodoxa Antioquia do Rio de Janeiro, Dom Theodore El Ghandou.
Foi oficiada missa solene na Igreja Ortodoxa de São Nicolao, presidida pelo Bispo Nareg Berberian, primaz da Diocese da Igreja Apostólica Armênia do Brasil, seguida de encontro comunitário no grande salão, com palestra e almoço. Servida, a refinada culinária Armênia. Odores de água de rosas no ar.
Assim, mesclando a delicadeza espiritual à boa gastronomia, mensagens foram trocadas, memórias lembradas, laços se estreitaram.
Não é grande a comunidade Armênia no Rio de Janeiro, mas um forte motivo a une e sustenta: a busca do reconhecimento de um genocídio que não pode se diluir no passado. A barbárie não pode ser ignorada.
Há 110 anos, o extermínio de um povo clama por reconhecimento. E quanto mais o tempo passa, mais o Estado brasileiro se omite.
Em abril de 1915, no coração do antigo Império Otomano, começou a deportação em massa e o extermínio planejado de mais de um milhão de armênios. Homens foram executados sumariamente; mulheres e crianças, arrastadas em marchas forçadas rumo ao deserto sírio; vilas inteiras foram apagadas do mapa. O crime, concebido com precisão administrativa e indiferença moral, inaugurou o vocabulário da barbárie do século XX: o genocídio.
Mais de um século depois, em 2025, o Brasil ainda não reconheceu oficialmente o genocídio armênio.
Trata-se de uma omissão que envergonha um país que se pretende defensor dos direitos humanos e do multilateralismo. A cada década que passa, o silêncio brasileiro se torna mais constrangedor — não apenas por aquilo que cala, mas por aquilo que contradiz.
Coragem em Gaza, silêncio na Anatólia
O governo brasileiro atual demonstrou coragem e sensibilidade ao denunciar publicamente o genocídio em Gaza desde os primeiros dias da ofensiva israelense. Fez o que se esperava de uma nação com tradição diplomática de solidariedade, empatia e busca da paz. Mas não se pode, ao mesmo tempo, denunciar o genocídio presente e ignorar os genocídios passados.
Reconhecer o genocídio armênio — assim como os genocídios indígena e africano — é uma questão de coerência moral e civilizatória.
A dor não prescreve com o tempo, e a justiça histórica tampouco deveria prescrever.
O silêncio como cúmplice da repetição
Negar, relativizar ou simplesmente omitir-se diante de um genocídio é dar autorização simbólica para que ele se repita.
Quando Hitler, em 1939, questionou cinicamente “Quem, afinal, fala hoje do extermínio dos armênios?”, ele sabia que o esquecimento é o mais eficiente dos cúmplices.
Os genocídios se perpetuam porque os anteriores são esquecidos — e a omissão de um Estado alimenta o negacionismo dos próximos.
Por que o reconhecimento importa
Mais de trinta países já reconheceram oficialmente o genocídio armênio: França, Alemanha, Rússia, Canadá, Argentina, Chile, e, mais recentemente, os Estados Unidos, em 2021. Em cada caso, esse gesto simbólico significou mais do que uma declaração política: foi um ato de respeito à memória e uma reafirmação de compromisso com o “nunca mais”.
O Brasil, com sua voz diplomática relevante no Sul Global, poderia desempenhar papel fundamental nessa reconfiguração ética da memória.
Reconhecer o genocídio armênio seria afirmar que a defesa da vida humana não conhece fronteiras nem calendários. Seria dizer que os direitos humanos valem igualmente para os vivos e para os mortos.
Um dever da civilização
A omissão diante do genocídio armênio não é apenas uma falha diplomática — é uma falha moral.
O governo que teve a coragem de denunciar o massacre palestino tem agora a oportunidade de romper um silêncio centenário e colocar o Brasil no lado certo da história.
O presidente Lula, já em seu terceiro mandato, tem mais uma vez a oportunidade de fazer esse gesto humanístico histórico e necessário ainda não manifestado. Não se trata de reabrir feridas, mas de dar voz às vítimas, reconhecer a verdade e reafirmar que a humanidade não é seletiva.
Como brasileiro, filho e neto de armênios, sei o quanto essa cicatriz permanece exposta em muitas famílias em nosso país. Na iminência de sua aldeia ser atacada, meus avós enviaram seus nove filhos para o Brasil - cinco homens e quatro mulheres em fuga do genocídio, seguido da tomada da terra. Eles viajaram a cavalo, camelo, trem e, ao chegar à França, embarcaram no navio para o Rio de Janeiro. Vieram divididos em grupos. Meu pai, o caçula, aos 15 anos, viajou com um sobrinho da mesma idade e uma irmã com 17 anos.
Meus avós, dada a idade avançada, não puderam fugir da morte e foram queimados vivos por não dizer, como exigiam os turcos, “Só Alah é Deus, e Maomé o seu profeta” – ‘Lã ilãha illa Alläh, Muhammadun rasülu Allah”.
Quando se completaram os 100 anos do Genocídio, eu pude, como presidente do Clube de Engenharia do Brasil, levar ao egrégio Conselho Diretor o pedido de autorização para oficiar à ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, o reconhecimento do genocídio na Armênia, que foi aprovado por unanimidade com a concordância do senhor governador.
O Brasil reconhecer o genocídio armênio, 110 anos depois, é reconhecer que toda vida humana importa igualmente, e que a memória é também uma forma de justiça.
Referências históricas
• Convocações e deportações em massa de 24 de abril de 1915 — início do genocídio armênio segundo o Parlamento Europeu e a ONU.
• Declarações oficiais de reconhecimento: França (2001), Canadá (2004), Alemanha (2016), Estados Unidos (2021).
• Relatório da Human Rights Watch sobre negação de genocídios e riscos contemporâneos de repetição (2024).
• Arquivo do Memorial do Genocídio Armênio (Tsitsernakaberd, Yerevan).
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




