O silêncio dos vivos é a continuação da chacina
Mais que números e perícias, a operação no Rio expõe a história dos que não têm voz. Foucault chamaria isso de “a arqueologia dos silenciados”
Rio de Janeiro, 2025. Nas vielas do Alemão e da Penha, o dia amanheceu com o ruído das metralhadoras e o zumbido dos helicópteros sobre os telhados. Quando o sol se pôs, restava a contagem macabra: mais de uma centena de mortos, dezenas de feridos, nenhuma certeza — exceto a de que o Estado voltou a confundir território com alvo. O governo chamou de operação. O povo chamou de medo.
O filósofo francês Michel Foucault, que dedicou sua vida a compreender as engrenagens invisíveis do poder, provavelmente veria ali um experimento moderno do que ele chamou de sociedade disciplinar. Em “Vigiar e Punir”, Foucault descreve a passagem histórica do castigo espetacular — o suplício público — para o controle contínuo dos corpos. A violência deixou de ser um espetáculo de dor e passou a ser um mecanismo de vigilância permanente.
Em tantas aulas de Sociologia na Universidade de Brasília, Foucault era minha sombra constante. Falávamos de prisões, hospitais, escolas, e eu percebia como o poder que ele descreveu atravessava nossas paredes invisíveis. O Brasil, afinal, é uma sala de aula prolongada: disciplinar, hierárquica, vigilante. E talvez, sem o saber, todos nós sejamos ao mesmo tempo professores e prisioneiros do mesmo sistema que analisamos.
É o que o pensador denominou de panoptismo, inspirado no Panóptico de Jeremy Bentham — uma prisão circular com uma torre no centro, de onde o vigia pode observar todos os prisioneiros sem ser visto. Não há mais açoite, há olhar. Não há mais grilhões, há consciência de estar sendo observado. O poder não precisa mais punir todos; basta que todos acreditem poder ser punidos a qualquer momento.
Nas favelas do Rio, o panoptismo deixou o campo das metáforas e ganhou helicópteros, drones, câmeras térmicas e manchetes que repetem a palavra “suspeito” como se fosse sentença. Os moradores vivem sob a lógica de um olhar que nunca se apaga — o da polícia, o da mídia, o do Estado e, por fim, o deles próprios. Quando a comunidade começa a se autocensurar, o poder cumpriu seu papel: a vigilância foi internalizada.
Mas Foucault foi além. Em sua arqueologia do saber, ele procurou reconstruir a história dos que foram silenciados — os loucos, os presos, os pobres, os desviantes. A civilização ocidental, dizia, se ergueu sobre o exílio dos que não cabiam no discurso da razão. Cada época inventa seus “irracionais” para justificar o controle. No Brasil, essa categoria tem cor, endereço e CEP: o jovem negro do morro, o corpo que apanha, morre e ainda precisa provar inocência depois de morto.
O massacre do Alemão e da Penha não é um erro operacional; é o modo normal de funcionamento de um Estado que administra a morte como política pública. Foucault chamaria de biopoder — o poder que decide quem vive e quem pode morrer. Nas sociedades modernas, o poder não se limita a reprimir: ele gere a vida, regula nascimentos, controla fluxos, define prioridades. No Rio, o biopoder opera ao contrário: o Estado, incapaz de garantir a vida, aprende a administrar o risco da morte.
E há ainda o pós-operação: o silêncio disciplinar. A cidade retoma a rotina, os jornais mudam de manchete, o noticiário volta ao futebol. O esquecimento é parte do mecanismo. O poder moderno — ensinou Foucault — já não precisa de censura explícita; ele se impõe pela indiferença. A barbárie se repete porque encontra, embaixo da violência visível, uma violência ainda mais eficaz: a de quem se acostuma.
Mas o filósofo também lembrou que onde há poder, há resistência. Nas margens desse silêncio, surgem gestos que racham o discurso oficial: moradores que filmam da janela, mães que escrevem os nomes dos mortos em cartazes, advogados populares que exigem perícia, jornalistas independentes que se recusam a usar a palavra “confronto”. Pequenas insurreições de linguagem que devolvem humanidade a quem o Estado insiste em tratar como número.
A arqueologia foucaultiana não é escavação do passado; é escuta do presente. É cavar entre os escombros da verdade oficial para encontrar as vozes que sobrevivem ao medo. Se Foucault estivesse entre nós, talvez dissesse que a favela é o arquivo vivo do Brasil — o lugar onde se acumulam as provas de que a violência é racional, planejada, administrativa. E onde, ao mesmo tempo, germina a resistência mais radical: a de continuar existindo.
A democracia se mede não pelo número de urnas, mas pela capacidade de ouvir quem ficou vivo. O Brasil precisa decidir se quer ser uma sociedade de segurança ou uma sociedade de justiça. Porque enquanto o Estado fala em “retomar territórios”, o território devolve a pergunta essencial: quem retoma o direito de viver?
O massacre de hoje não é o fim — é o método. E o silêncio que o sucede não é paz — é política. O silêncio dos vivos é a continuação da chacina.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
