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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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O Sul Global conseguirá se libertar da dívida dolarizada?

Em seu livro mais recente, o Michael Hudson opõe o socialismo ao capitalismo financeiro e destrói a 'civilização dos sonhos' imposta pelo 1%

Michel Hudson (Foto: Reprodução/Youtube)
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Por Pepe Escobar, no The Saker

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

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Em The Destiny of Civilization: Finance Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism (O Destino da Civilização: Capitalismo Financeiro, Capitalismo Industrial ou Socialismo), Michael Hudson, um dos maiores economistas independentes de todo o mundo, nos traz o que talvez seja o guia definitivo para entendermos  onde estamos, quem manda e a possibilidade de derrotá-los.

Indo direto ao assunto: Hudson começa com uma análise do ethos do "agarra o dinheiro e sai correndo" e da desindustrialização, uma vez que 90% da receita empresarial dos Estados Unidos "é usada para recompra de ações e pagamento de dividendos com o fim de manter o preço das ações das empresas".

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Isso representa o ápice da estratégia política do "Capitalismo Financeiro": "capturar o setor público e transferir o poder monetário e bancário" para a Wall Street, a City de Londres e outros  centros financeiros ocidentais.

A totalidade do Sul Global consegue reconhecer o modus operandi imperial:  a estratégia do imperialismo militar e financeiro dos Estados Unidos é instalar oligarquias e ditaduras clientelistas e forçar seus aliados a lutarem contra adversários designados, subsidiando assim não apenas os custos bélicos do Império ('defesa') mas também até mesmo os programas de gastos internos da nação imperial". Essa é a antítese do mundo multipolar proposto pela Rússia e pela China. 

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Em suma, nossa atual Guerra Fria 2.0 "vem basicamente sendo travada pelas oligarquias rentistas que apóiam o capitalismo financeiro sediado nos Estados Unidos contra os países que tentam construir uma autossuficiência mais ampla e uma maior prosperidade interna".  

Hudson, prescientemente, nos lembra de Aristóteles, que dizia que é do interesse dos financistas brandir seu poder contra a sociedade em geral: "A classe financeira, ao longo de toda a história,  foi a grande beneficiária dos impérios, ao atuar como agentes cobradores".

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É inevitável portanto que o principal instrumento do poder exercido pelo império sobre o mundo, uma verdadeira "estratégia de subdesenvolvimento", seja financeiro: instrumentalizando as pressões do Fundo Monetário Internacional no sentido de "transformar a infraestrutura pública em monopólios privados e reverter as reformas trabalhistas do século XX" por meio das notórias 'condicionalidades' impostas aos empréstimos.

Não é de admirar que o Movimento Não-Alinhado (MNA) criado em Belgrado, em 1961, e composto de 120 países e 27 observadores tenha-se convertido em tamanha ameaça à estratégia global dos Estados Unidos. Este último, como seria de se esperar, reagiu com uma série de guerras étnicas e com as primeiras encarnações da revolução colorida – fabricando ditaduras em escala industrial, de Suharto a Pinochet.

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O clímax foi uma cataclísmica reunião realizada em 19 de dezembro de 1990, em Houston, "celebrando" a dissolução da União Soviética onde, como nos lembra Hudson, o FMI e o Banco Mundial "estabeleceram diretrizes a serem seguidas pelas lideranças russas, que deveriam impor austeridade e entregar seus bens - não importava muito a quem - em uma onda de "terapia de choque", para permitir  que a suposta magia da livre-iniciativa viesse a criar uma competição vale-tudo neoliberal". 

Perdido em uma selva de dívida romana 

Em grande medida, foi a nostalgia pelo estupro-e-pilhagem da Rússia da era 1990 que desencadeou o que Hudson define como  a Nova Guerra Fria, onde a Diplomacia do Dólar tem que afirmar seu controle sobre todas as economias estrangeiras. A Nova Guerra Fria não é travada apenas contra a Rússia e a China, mas "mas contra qualquer país que resista à privatização e à financialização patrocinadas pelos Estados Unidos. 

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Hudson nos lembra que a política seguida pela China "seguiu praticamente o mesmo trajeto que o protecionismo adotado pelos Estados Unidos de 1865 a 1914 - subsídios estatais para a indústria, investimentos de capital pesados por parte do setor público ... e gastos sociais em educação e serviços de saúde para  aumentar a qualidade e a produtividade da mão de obra. Nos Estados Unidos isso não era chamado de marxismo: era apenas a maneira lógica de perceber a industrialização como parte de um amplo sistema econômico e social". 

Mas então o capitalismo financeiro - ou capitalismo de cassino - ganhou fôlego e reduziu a economia dos Estados Unidos a, basicamente, "excedentes de produtos agrícolas do agronegócio, monopólios na tecnologia da informação (desenvolvida principalmente como subproduto das pesquisas militares), equipamento pesado militar e patentes farmacêuticas (baseadas no capital-semente público dirigido ao financiamento de pesquisas), tornando-se capaz de extrair renda monopolística e, ao mesmo tempo, isentando-se em grande medida do pagamento de impostos com o uso de centros bancários offshore". 

Este é o atual Estado do Império: ênfase apenas na classe rentista e na Diplomacia do Dólar", com a prosperidade concentrada no 1% superior das elites estabelecidas. O corolário inevitável é a imposição pela diplomacia dos Estados Unidos de sanções ilegais, unilaterais sobre a Rússia, a China e qualquer um que desafie seus ditames. 

A economia dos Estados Unidos é, de fato, uma capenga cópia pós-moderna do Império Romano tardio: "dependente de tributos externos para sua sobrevivência na economia rentista global dos dias de hoje". Aqui entra a correlação entre um almoço gratuito cada vez mais minguado e o medo mais profundo: "É por isso que os Estados Unidos cercaram a Eurásia com 750 bases militares".   

De forma deliciosa, Hudson retorna a Lactâncio, de fins do século III, autor de Institutos Divinos, onde ele descreve o Império Romano, para ressaltar os paralelos com a versão americana:  

"A fim de escravizar os muitos, os gananciosos começaram a se apropriar e a acumular as necessidades da vida, mantendo-as fortemente trancafiadas para que pudessem guardar para si essas riquezas. Eles agiram assim não por humanitarismo (coisa que não era de seu feitio), mas para amealhar todo o possível como produtos de sua ganância e avareza. Em nome da justiça eles criaram leis injustas e iníquas, a fim de  ratificar  seus roubos e sua avareza frente ao poder da multidão. Desse modo, eles usaram tanto de autoridade quanto da força das armas e da prática do mal mais descarado". 

Socialismo ou barbárie

Hudson coloca de forma sucinta a questão central que o mundo enfrenta nos dias de hoje: se "dinheiro e crédito, terras, recursos naturais e monopólios serão privatizados e concentrados nas mãos de uma oligarquia rentista ou usados para promover prosperidade geral e crescimento. Trata-se basicamente de um conflito entre capitalismo financeiro e socialismo enquanto sistemas econômicos". 

Para levar adiante a luta, Hudson propõe um programa anti-rentista capaz de se converter no Grande Projeto do Sul Global para o desenvolvimento responsável: propriedade pública dos monopólios naturais; controle estatal da infraestrutura básica estratégica; autossuficiência nacional – principalmente em termos de criação de dinheiro e de crédito; proteção trabalhista e do consumidor; controles de capital – para evitar empréstimos e ou denominações da dívida em moeda estrangeira; tributação das receitas não provenientes do trabalho, como a renda de aluguéis; tributação progressiva; um imposto sobre a terra ("que evitará que valor cada vez maior do aluguel da terra seja usado como garantia de empréstimos destinados a elevar os preços reais dos bens imobiliários; uso dos excedentes econômicos para investimentos de capital tangíveis; e autossuficiência alimentar interna.

Uma vez que Hudson parece ter coberto todas as questões, ao final do livro restou-me apenas uma pergunta de ordem geral. Perguntei a ele como ele analisava as atuais discussões entre a União Econômica Eurasiana (UEEA) e os chineses – e entre a Rússia e a China, mais adiante – em termos de sua capacidade de criar um sistema financeiro/monetário alternativo. Seriam eles capazes de vender esse sistema alternativo à maior parte do planeta, e ao mesmo tempo contornar as provocações financeiras do império?

Hudson teve a gentileza de me dar uma resposta que poderia ser vista como um resumo de todo um capítulo do livro: "Para alcançar êxito, qualquer reforma tem que abranger a totalidade do sistema, e não apenas uma única parte dele. As economias ocidentais se tornaram financializadas, deixando em mãos privadas a criação de crédito – que é usada na geração de ganhos financeiros em detrimento da economia industrial … Esse objetivo se espalhou como uma lepra por economias inteiras – contaminando seus padrões de comércio exterior (dependência nas exportações agrícolas e de petróleo e na tecnologia de informação americanas), suas relações trabalhistas (anti-sindicalismo e austeridade), a propriedade da terra (agricultura em grande escala em mãos estrangeiras,  em vez de independência e autossuficiência interna em termos de produção de grãos comestíveis) e a própria teoria econômica (que trata as finanças como parte do PIB e não como um overhead que suga renda tanto da mão de obra quanto da indústria)".

Hudson adverte que, "para se libertarem da dinâmica do capitalismo financeiro predatório patrocinado pelos Estados Unidos e seus satélites, os países estrangeiros têm que ser autossuficientes em termos de produção de alimentos, de energia, de tecnologia e de outras necessidades básicas. Para tal é necessária uma alternativa ao 'livre-comércio' dos Estados Unidos e a seu 'fair trade' ou comércio justo, ainda mais nacionalista, por ver como 'injusta' qualquer concorrência estrangeira a indústrias de propriedade norte-americana). Isso exigirá uma alternativa ao FMI, ao Banco Mundial e à Organização Mundial de Comércio (da qual a Rússia acabou de se retirar). E, infelizmente, essa alternativa exigirá também uma coordenação militar como a da OCX [Organização de Cooperação de Xangai], como defesa contra a militarização do capitalismo financeiro centrado nos Estados Unidos".

Hudson vê alguma luz no fim do túnel: "Quanto à sua pergunta de se a Rússia e a China conseguirão "vender" essa visão de futuro ao Sul Global e aos países eurasianos, creio que isso deva ficar bem mais fácil até o final do verão. Um efeito colateral (não-programado) da guerra da OTAN na Ucrânia é o aumento brusco dos preços da energia e dos alimentos (e também dos custos de transporte). O que criará um forte déficit na balança de pagamentos de muitos países do Sul Global e de outras regiões, gerando uma crise que eclodirá assim que vencerem suas dívidas em dólar para com acionistas  e bancos". 

O principal desafio a ser enfrentado pela maior parte dos países do Sul Global é evitar o não-pagamento das dívidas: "o aumento da taxa de juros pelos Estados Unidos elevou a taxa cambial do dólar não apenas frente ao euro e ao yen japonês, mas também frente às moedas do Sul Global e de outros países.  Isso significa que uma fatia muito maior de sua renda e de suas receitas exportadoras tem que ser gasta no pagamento do serviço de suas dívidas externas - e eles só conseguirão evitar a inadimplência caso abram mão de alimentos e petróleo. Então, qual será sua escolha? O FMI pode oferecer a criação de direitos especiais de saque (SDR) para capacitá-los a efetuar o pagamento - e afundar ainda mais na dívida dolarizada sujeita aos planos de austeridade do Fundo e a suas exigências de que os países vendam uma parcela ainda maior de seus recursos naturais, de suas florestas e de sua água". 

Então, como se libertar da dívida dolarizada? "Eles precisarão de uma massa crítica, que não estava disponível na década de 1970, quando a Nova Ordem Econômica Mundial começou a ser discutida. Mas hoje, ela está se tornando uma alternativa viável graças ao poder da China, aos recursos da Rússia e de países aliados como Irã, Índia e outros do Sudeste Asiático e da Ásia Central. Suspeito, portanto, que um novo sistema econômico mundial esteja surgindo. Se essa ordem tiver êxito, o século passado - desde o fim da Primeira Grande Guerra e da bagunça deixada por ela - parecerá um longo desvio da história, e haverá então uma volta ao que pareciam ser os ideais sociais básicos da economia clássica – um mercado livre de proprietários rentistas, monopólios e finanças predatórias".  

Hudson conclui insistindo no verdadeiro significado da Nova Guerra Fria:  

"Em suma, trata-se de um conflito entre dois sistemas sociais distintos, cada um com sua própria filosofia sobre o funcionamento das sociedades. Eles serão planejadas pelos centros financeiros sediados em Nova York e apoiados pelos neocons de Washington ou adotarão o tipo de socialismo proposto em fins do século XIX e inícios do século XX – um 'mercado' e uma sociedade livres de rentistas? Os monopólios naturais, como terra e recursos naturais, serão socializados e usados para financiar o crescimento interno e a habitação ou serão deixados à mercê dos interesses financeiros, convertendo renda em pagamento de juros e devorando as receitas dos consumidores e das empresas? E, acima de tudo, os governos irão criar seu próprio dinheiro e usar o sistema bancário para promover a prosperidade interna ou irão permitir que os bancos privados (cujos interesses financeiros são representados pelos bancos centrais) retirem o controle dos tesouros nacionais? 

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