TV 247 logo
    Roberto Santana Santos avatar

    Roberto Santana Santos

    Professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (EDU-UERJ). Doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política

    2 artigos

    HOME > blog

    “O Último Pub”: duas gerações da classe trabalhadora se encontram no último filme da carreira de Ken Loach

    Ao longo dos seus 88 anos de vida e seis décadas de carreira, o cineasta britânico sempre dedicou suas obras à classe trabalhadora e aos males do capitalismo

    “O Último Pub” (The Old Oak, 2023), dirigido por Ken Loach (Foto: Divulgação)

    Ken Loach sempre teve lado. Ao longo dos seus 88 anos de vida e seis décadas de carreira, o cineasta britânico sempre dedicou suas obras à classe trabalhadora e aos males do capitalismo. Sua crítica ao capital, no entanto, parte da exposição do resultado da exploração capitalista no cotidiano da vida das pessoas, o que impacta e conscientiza o espectador, permitindo compreender a dominação e a marginalização a partir da encenação de processos sociais, os quais estamos todos inseridos direta ou indiretamente.

    No clássico “Kes” (1969), Loach materializa como uma família trabalhadora amassada pela pobreza pode se tornar um lugar cruel para a infância, lembrando o segundo capítulo do “Manifesto Comunista”, onde Marx e Engels retrucam a acusação (tão presente nos nossos dias) de que os comunistas querem destruir a família. Quando, na verdade, são as condições de vida do capitalismo que criam as famílias disfuncionais para boa parte dos trabalhadores. Mais recentemente, no vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “Eu, Daniel Blake” (2016), Loach escancara a precarização da vida sob o neoliberalismo, a partir das humilhações e violências burocráticas de subcidadãos sem seguridade social.

    Em “Você não estava aqui” (2019), o diretor apresenta um retrato brutal do trabalho por plataforma (representado por um personagem que faz entregas de compras da internet, estilo Amazon) e como essa ocupação corrói toda a vida familiar que praticamente inexiste para o “motorista parceiro”, disponível o tempo todo para um patrão desmaterializado. Em “O Último Pub” (The Old Oak, 2023), Loach demonstra mais uma vez estar atento aos acontecimentos recentes, explorando imigração, xenofobia e fascismo a partir da vida cotidiana.

    O cenário é a comunidade de Durham, no nordeste da Inglaterra, outrora uma importante região mineradora, agora decadente devido ao processo de desindustrialização. As mudanças estruturais promovidas pelo neoliberalismo estão por toda a parte: o niilismo e a amargura de ex-operários que somente têm o bar como diversão; a ausência de políticas públicas que poderiam dar um novo rumo para a cidade, após a perda de sua vocação original; uma juventude sem perspectiva que cultiva um ultra individualismo com sua música alta e cachorros ferozes sem focinheira, pouco se importando com a coletividade; o galopante custo de vida sem contrapartidas sociais, representado pelo aumento do preço dos aluguéis promovido por imobiliárias que são propriedade, como diz um personagem: “de pessoas que ninguém sabe quem são e que nunca estiveram aqui”.

    É nesse quadro de amargura e ressentimento que chega um grupo de famílias sírias refugiadas da guerra civil em seu país. São o “outro”. Diferentes, que falam outra língua, possuem outra fé e praticam outros costumes. A hostilidade dos locais é imediata. O questionamento também: por que é promovido moradia e cuidados (ainda que precários) para forasteiros, se até aquele momento tudo isso foi negado aos que ali já estavam? Ao longo do filme, os vizinhos que pareciam ranzinzas, mas pacatos, passam a se comportarem de maneira cada vez mais agressiva e intolerante.

    Loach captura com maestria como o fascismo toma forma como fenômeno de massas, retratando a crise generalizada que produz o ressentimento que por sua vez busca no “outro” a explicação para todo mal. Esse “outro” (judeus, comunistas, muçulmanos, gays, intelectuais, imigrantes, …) é um corpo estranho que precisa ser eliminado para a restauração de uma pureza e de uma ordem perdida. O diretor joga os holofotes sobre como a irracionalidade e o recalque manipulados pelo fascismo são um poderoso instrumento de controle de classe, ao retratar como boa parte daqueles ex-operários, com passado sindical combativo, não conseguem perceber que foram as transformações do capital que arruinaram seu modo de vida e que a vizinhança já estava deteriorada e arruinada muito antes da chegada dos refugiados.

    Um neoliberalismo em decomposição, sem nada a oferecer às grandes massas a não ser sofrimento de todas as formas, foi o que abriu caminho para o ressurgimento da extrema-direita no século XXI. O embrutecimento do tecido social impede os pobres habitantes de Durham de desenvolverem empatia com os recém-chegados. Entretanto, ao atentar para as condições de vida da região, percebe-se que os locais não viviam tão melhor quanto as famílias sírias e que, para além das diferenças culturais, possuem muito mais em comum do que imaginam.

    É a partir da solidariedade, sentimento tão caro para a organização de classe, que Loach mostra a saída para a reinvenção das lutas sociais e de resistência à tentação fascista. Essa solidariedade começa pela amizade entre Tommy, proprietário do bar “O Velho Carvalho”, único espaço de socialização restante na cidade, e Yara, fotógrafa, aparentemente única refugiada síria fluente em inglês, e por isso, elo importante da comunidade. A principal cena do filme se passa nos fundos do bar, onde Tommy apresenta a Yara as fotos que retratam as grandes mobilizações sindicais de outros tempos, compartilhando uma história de luta dos mineiros. Yara, fascinada pela memória dos trabalhadores locais, sugere a Tommy, ao ver a frase “Quando você come junto, fica junto”, a criação de uma cozinha solidária para atender a todos que precisem de comida barata, independente de serem sírios ou ingleses.

    O diálogo entre os personagens promove o encontro entre gerações e tradições de luta da classe trabalhadora, onde um se reconhece no outro e se conscientizam que, mesmo entre tempos, culturas e propostas de organização diferentes, todos pertencem a uma mesma coletividade classista e precisam estar juntos. Logo, o espaço ganha vida, promove a integração entre os grupos e movimenta uma rede de doações. A ação concreta serve de estopim tanto para o aumento da violência daqueles que se entregaram à irracionalidade de extrema-direita, quanto para o arrependimento dos que percebem se comportarem contra tudo que defenderam por toda uma vida.

    Ken Loach mais uma vez expõe como o capitalismo neoliberal cansa as pessoas e é cruel com quem é bom. Por ser empático, Tommy é hostilizado. Os amigos de ontem, viram radicais de direita hoje (quem nos últimos tempos não tem um parente ou conhecido outrora amável que de repente virou uma metralhadora de absurdos?). O “Último Pub” representa de maneira cristalina e acessível a precarização total da vida pelo neoliberalismo e como o fascismo se espraia lentamente através de atos cotidianos promovendo explicações falsas sobre problemas reais.

    Mais do que fazer sinal de armas com os dedos, camisas amarelas ou discursos autoritários, são nas violências das relações diárias que se reproduz a distopia fascista. Apresentado como seu último filme (será?), Ken Loach faz o alerta, mas também dá o recado de que somente a organização e a união dos diversos setores da classe trabalhadora conseguirão vencer não só a extrema-direita, como superar a ordem do capital que nada tem a oferecer às grandes maiorias da humanidade. Como diz Tommy: “Não se trata de caridade. É solidariedade. Algo que fazemos juntos”.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

    ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

    ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

    iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

    Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: