O "upgrade" semântico do Comando Vermelho e suas implicações nas guerras da extrema-direita
Governador Cláudio Castro adota discurso alinhado à extrema-direita e exporta ao Rio a lógica militar dos EUA sob o pretexto de combater o “narcoterrorismo”
O terrorismo visa à dominação pelo terror. É a prática de atos violentos para impor ideias e sentimentos por meio da propagação de um pavor coletivo. Visto sob essa ótica, o termo se adequa à “megaoperação” do governo do Estado do Rio de Janeiro em Vila Cruzeiro, em 29 de outubro. Ao encurralar uma centena de presumíveis narcotraficantes do Comando Vermelho na mata íngreme de Vila Cruzeiro, que define os limites dos morros da Penha e do Alemão, a “megaoperação” chegou ao final daquele trágico dia batendo todos os recordes de mortos assassinados nessa guerra sem fim que sevicia a cidade do Rio de Janeiro desde os já distantes anos 1980. “Foi a operação policial mais letal da história do Rio”, disse — e repetiu em peso — toda a mídia carioca. Até agora, 121 corpos foram contados, entre eles os de quatro policiais. Um recorde também de queima de arquivo, porque das cruéis execuções da Vila da Penha não sobrou soldado para contar a história. E também não havia chefões entre eles.
Para o governador Cláudio Castro, “terroristas” são os outros. Castro é um aluno amestrado do bolsonarismo, do terror institucionalizado na polícia e da vida miliciana da cidade. Reza na bíblia bem articulada da extrema-direita subalterna e entreguista brasileira, atavicamente ligada à extrema-direita americana, aquela que deseja ver os Estados Unidos bombardeando a Baía de Guanabara. Há pelo menos seis meses, Castro faz campanha junto à gestão Trump para dar um “upgrade” semântico ao Comando Vermelho e rotulá-lo como “organização narcoterrorista” — e, assim, obter uma espécie de licença oficial para invadir o território, matar, aniquilar.
Desde o início do século XXI, o termo “terrorista” vem sendo usado como pedra angular da doutrina de segurança nacional dos Estados Unidos. Justificou a guerra no Afeganistão, a guerra no Iraque, na Síria, e agora justifica a guerra que dizima os palestinos em Gaza. Em dezembro de 2017, quando Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos, ainda não havia completado um ano de seu primeiro mandato, uma nova estratégia de segurança foi divulgada, visando, em última instância, à preservação da liderança militar americana em todos os campos e tabuleiros políticos do mundo. Essa estratégia passou por ajustes em 2022, durante o segundo governo Joe Biden, mas seguiu os mesmos preceitos no que diz respeito ao “terrorismo” a ser combatido: o “terrorismo islâmico”, introduzido na agenda das guerras após o 11 de setembro de 2001, e o terrorismo de “todo tipo de organização criminosa internacional que propaga a violência e o tráfico de drogas e armas”.
Em 2017, o cientista político José Luis Fiori dissecou, com incrível precisão, a Doutrina de Segurança elaborada pelo Departamento de Estado e pelo Pentágono naquele ano. Em seu artigo A Torre de Babel e a Nova Doutrina de Segurança dos Estados Unidos, Fiori esmiuçou as entrelinhas do documento para concluir que as novas diretrizes estratégicas teriam sido produto de uma longa guerra interna dentro do establishment americano e que resultaram numa vitória, ainda incompleta, do seu segmento militar. Isso significa, nas palavras de Fiori, que “os Estados Unidos decidiram abandonar seu projeto de conversão da humanidade a seus próprios valores e se propõem a viver em um sistema no qual qualquer regra é possível, em qualquer momento e em qualquer lugar, contra qualquer rival, inimigo ou aliado anterior: os Estados Unidos devem agora negociar com os demais membros do sistema competitivo internacional com base em seus interesses nacionais e sempre a partir de uma posição de força, abrindo mão da ideia de uma hegemonia ética, moral e cultural”. E, de acordo com os novos preceitos, devem, por fim, exercer o direito à mudança de governos e regimes considerados uma ameaça aos seus interesses.
Isso quer dizer que a sombra dos golpes em série que sufocaram a América Latina nos anos 1960 e 1970 está de volta, desta vez na forma de “guerra contra o narcoterrorismo”. Os sinais dessa guerra já se fazem presentes nas águas claras do Caribe. Do México à Venezuela, elas se encontram a cada dia mais infestadas pelo aparato militar da Marinha americana, e os bombardeios de drones de precisão milimétrica que, como num passe de mágica macabra, fazem desaparecer para sempre pequenos barcos de pesca venezuelanos e peruanos, com sua tripulação de supostos traficantes transportando supostas cargas de drogas a caminho dos Estados Unidos, jamais poderão ser vistos e reconhecidos.
Falta, na equação americana, um país da dimensão e complexidade do Brasil para que a “guerra contra o narcoterrorismo” ganhe proporções continentais — e é este o objetivo dos arautos da destruição a quem o governador Castro serve. A lógica continua sendo a mesma. Vencê-la parece ser o dilema mais expressivo a ser enfrentado pelo governo Lula na encruzilhada em que o Brasil se encontra, porque ele requer um combate externo e outro interno, com suas chagas expostas desde os tempos coloniais. Ano após ano, a percepção de insegurança permanente é o principal elemento de preocupação dos brasileiros. O presidente Lula tem diante de si o desafio de impor uma linha de pensamento e ação que prove que há métodos mais eficazes de combate para além das chacinas permanentes de bandidos. Ano após ano, os chacinados que ensanguentam o chão das comunidades cariocas são quase todos pobres e quase todos pretos. Ano após ano, seguem poupados os verdadeiros mandantes do crime organizado, quase sempre ricos e brancos. São eles os que se alinham às doutrinas de segurança do país ainda mais poderoso do planeta, que volta a bater na tecla da invasão das nações vizinhas com um pretenso combate ao crime organizado — com velhos métodos e nova nomenclatura.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




