O valor do celular
Vamos discutir a questão mais ampla da segurança, que volta à roda dos projetos governamentais, com a força de eleger postulantes a cargos importantes
“O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?”
Introdução
Quem quer que frequente a avenida Paulista nota uma mudança não apenas de sua paisagem, mas também de seu clima. Do espírito da avenida, digamos. Aquele ar de urbanidade autêntica que certos espaços das cidades oferecem, como um fator complementar aos simples equipamentos e áreas públicas e privadas dispostos com finalidades precisas. Os furtos, ali, haviam se tornado tão frequentes, e as notícias sobre a violência praticada em alguns casos, tudo girando em torno de celulares, causaram tanto impacto que as autoridades estadual e municipal de segurança decidiram solucionar o problema fazendo lotar a avenida de policiais, guardas e viaturas.
Em frente ao parque Trianon, assim como num ou noutro ponto, ao longo da avenida, já havia postos da polícia militar, com carros e soldados. Agora, porém, em cada quarteirão da avenida, reproduz-se esse modelo da presença ostensiva, havendo constantes rondas, que se aliam à vigilância feita por câmeras privadas e agentes de segurança privada, que também se postam nos vários prédios comerciais e residenciais, espaços culturais e nos estacionamentos ou rondam as calçadas, parques e as faixas de rolamento.
Sinceramente, tenho dúvida de essa ostensividade da presença ter a capacidade de gerar efetiva segurança ou, ao menos, sentimento de se estar seguro para realizar as tantas tarefas que se processam durante vinte e quatro horas nessa via de circulação e paragem tão importante para a cidade, para as empresas, para as pessoas que moram ou trabalham ali, ou que afluem de todos os bairros, de todo o Estado, do País e do Mundo, para visitar, passear, realizar negócios, divertir-se, expressar-se, ou apenas circular, mover-se.
Mais do que dúvida, tenho quase certeza de que a face policial oficial (aliada à das empresas privadas que dizem prestar esse serviço para guardar o patrimônio de pessoas físicas e jurídicas) não está ali para gerar sensação de segurança. Ou, na remota hipótese de ser esse realmente o objetivo, para mim é evidente que esse sentimento de se estar seguro não se atribui e não se distribui com igualdade.
Vou usar, neste artigo, o exemplo do celular para discutir essa questão mais ampla da segurança, tema mais do que oportuno e legítimo, e que volta à roda dos projetos governamentais, com a força de eleger ou ineleger os postulantes aos cargos do executivo federal, estadual e municipal.
O lugar imaginário do celular e do crime
Começo pelas perguntas que (deveriam ser as) mais óbvias: por qual motivo celulares são alvo dos crimes de furto (e de roubo, que é o de tomar algo de alguém usando de violência ou ameaça) e por que isso ocorre na avenida Paulista e imediações.
Na velha lógica da pretensa segurança oficial, ladrões se apropriam de celulares porque são objetos fáceis de negociar e trocar por drogas. O móvel dos crimes seria o vício das drogas. Ladrõezinhos, diz-se, estariam em busca de dinheiro fácil, para satisfazer o vício.
É importante referir essa lógica, que é errônea, porque, lamentavelmente, tornou-se o lugar comum da opinião das pessoas. Nela está embutida a crença de que o crime divide a sociedade em duas camadas: a dos bandidos e a dos mocinhos, ou, mais precisamente, das mocinhas. Isto é, criminosos e vítimas. Aqueles devem ser apanhados e punidos; estas, devem ser protegidas pelos mocinhos, quer dizer, os policiais. O gênero real das pessoas envolvidas pouco importa, aqui. Trata-se mais de masculinizar o crime e feminizar a vítima, numa versão de velhos mitos originados de estruturas narrativas extremamente discriminatórias e preconceituosas, empregadas à exaustão nos meios de comunicação e de entretenimento. Atividade e passividade, ação e sofrimento são os dois polos dessa relação, mais imaginada do que atual. A maior parte das pessoas não presencia os fatos, por isso, a fantasia cumpre melhor o papel de contar o que ocorreu. Em geral, a verossimilhança satisfaz mais do que a verdade: aceita-se a história do que deveria ou poderia ter ocorrido, em vez do acontecimento efetivo. Por isso, há uma generalização dos papéis pretensamente desempenhados pelas pessoas envolvidas: bandidos que prejudicam, mocinhas que sofrem o prejuízo, mocinhos que as salvam.
Mas há uma outra pressuposição nessa lógica antiquada, que gera uma cultura persistente. A de que o crime é praticado por uma só pessoa, que se movimenta sozinha e tem uma vontade particular e privada. No nosso exemplo do celular, o ladrão – que é sempre ladrão, não tem outro papel na vida e nos contextos da existência – quer o celular para vender rapidamente e por preço vil, e, a seguir, comprar droga. É uma visão romântica, digamos, do crime, que dá agência ao que o pratica. As manchetes da mídia fazem uso dessa imagem e os comentários sociais a confirmam. Diz-se que o bandido matou por causa de um celular, que, rigorosamente, vale pouco, sobretudo para ele, próximo ao nada se comparado ao valor da vida humana. O argumento ainda se prolonga e as pessoas dizem que as drogas estão matando a sociedade, pois elas é que movimentam os crimes mais comuns ou banais. Mata-se por pouco.
Há uma contabilidade desigual aí, é claro. As pessoas que comentam isso vivem num ambiente diferente do que o da maioria do povo. Veem apenas os delitos que as afetam diretamente. Não enxergam ou não querem enxergar o contexto maior, a violência a que é submetida a maioria, pelas condições de vida, pelo tratamento que lhe devota a sociedade como um todo, a opressão, a exploração e os atos violentos que vêm de todos os lados, dentro e fora de casa – se é que há casa – na rua – se é que há rua -, no transporte – se é que há transporte -, no trabalho – se é que há trabalho -, nos espaços de lazer – se é que há espaços e tempo de lazer. Inclusive do próprio Estado e de sua polícia, mas também de milícias e do crime... organizado.
Sim, o crime organizado – outra imagem nebulosa na mente das pessoas – introduz um ingrediente essencial na discussão do crime do celular.
É evidente que se pode dizer, também de um ponto de vista tradicional e apenas parcialmente, muito pouco certo, que alguém apenha o celular porque já existe um sistema para receber esse celular e reciclá-lo para que volte a circular de alguma forma, evidentemente ilícita. E cada um dos elos dessa corrente do crime recebe uma remuneração pelo que faz: o que se arrisca e furta ou rouba, o que recebe e paga, o que recicla e vende, o que compra barato, no mercado inoficial, ilegal. Mas também o que protege essa circulação de relações, presta segurança ao crime, de modo ativo ou omissivo – numa forma de corrupção policial ou na forma ilícita da milícia. Aqui, não se pode deixar de observar a porosidade entre o “policiamento” oficial e inoficial.
Pensar assim, porém, significa olhar o mundo de maneira desatualizada. Claro que essa circulação também pode ocorrer. Ela representa, porém, o efeito colateral do crime, sua margem. Nela, o dinheiro envolvido é pequeno, em cada operação. Se fosse apenas isso o que acontecesse, o crime seria menos frequente e mais fácil de coibir, bastando uma atuação mais incisiva policial, quebrando os elos dessa corrente. Nessa visão ultrapassada, o remédio da presença policial ostensiva seria até certo ponto justificável, muito embora outros meios mais inteligentes pudessem resolver a questão: a exigência do registro dos aparelhos e dos chips, para autorizar o uso lícito, por exemplo, como já se fez, mas, sobretudo, a busca de dinheiro que circula nesse processo. Coibir a ação do “empresário”, que mais lucra com essa atividade, seria o remédio definitivo.
A concepção de classe ou hierárquica da sociedade atua aqui, também. A polícia persegue os “trabalhadores” do crime e não as “empresas”. Vigia e prende indivíduos e finge dar satisfação à sociedade, deixando de lado a observação e a coerção sobre as “empresas”.
Se o crime é “organizado”, isso significa que se se estrutura na forma empresarial, corporativa. A ação de segurança – se fosse realmente pública e cidadã – teria condição plena de desvendar essa rede e impedir que o crime, nessa composição complexa, continuasse a ocorrer. Em vez de gastar o dinheiro que o estado arrecada para exibicionismo policial, que sequer tem eficácia, isto é, não gera nem segurança nem confiança. A segurança é confundida com arbitrariedade por quem faz essa pseudopolítica.
O lugar real do celular e do crime
O celular, contudo, não é buscado porque é celular.
Ver o aparelho apenas como um telefone, que faz e recebe chamadas, ou, ainda, permite a comunicação por SMS (short message service, ou serviço de menagens curtas), é antiquado, como todo mundo sabe ou deveria saber.
O aparelho é procurado porque se tornou smartphone, quer dizer, um hardware (equipamento), a parte física da informática, um objeto material, que serve, essencialmente, como um material cujo funcionamento é controlado por algo que não é material: um firmware e outros softwares. Isto é, um sistema operacional ou microprograma, que cuida do funcionamento do aparelho, e que armazena dados e um sem-número de programas, que são os aplicativos que as pessoas instalam em seu telefone móvel, para acessar vários serviços, cuja utilidade faz deles e do instrumento que os porta essenciais para qualquer ato da vida contemporânea.
Muito bem, a grande maioria desses programas é fornecida por prestadores de serviços – sobretudo de ordem bancária ou, de modo geral, financeira. Esse fornecimento não é gratuito, como aparentemente se apresenta. Muito menos os aplicativos são fornecidos pelos prestadores de serviços para a simples comodidade da pessoa que é dona do smartphone: a consumidora.
Quero me ater aos serviços de administração de contas correntes (bancárias ou não, pois hoje há ativos valiosos que circulam por meio do uso desses aplicativos).
O acesso ao aplicativo conecta o possuidor de valores mobiliários (não apenas dinheiro, mas títulos que representam valores variáveis ou móveis, que são adquiridos, vendidos, transferidos, no intuito de obter remuneração, valorizar o dinheiro que representam) ao administrador desses valores, o banco ou a instituição financeira.
Todo mundo deve ter em mente que, antigamente, as pessoas guardavam suas moedas em bancos e realizavam as operações de pagamento e recebimento por meio dos bancos. Essas operações ocorriam no interior das agências bancárias, onde havia pessoas encarregadas do serviço de caixa, em direção às quais, os correntistas faziam suas filas, esperando sua vez de atendimento. Pagar esses empregados e preservar seus direitos trabalhistas era considerado custoso pelos donos dos bancos. Além disso, as pessoas consumidoras, que iam às agências, eram vítimas de crimes, dentro e nas imediações das agências. As próprias agências, onde se guardava muito dinheiro, assim como os carros-fortes que as serviam, assim como aos outros pontos de comércio, constituíam alvos de assaltos. Os velhos filmes contam histórias emocionantes sobre esses crimes. Ninguém tem muita afeição pelos bancos – a não ser nas propagandas, que mostram atrizes e atores apaixonados por determinadas marcas financeiras e pelas pessoas que gerenciam suas contas. Bancos são instituições em que, basicamente, troca-se dinheiro, como na velha história em quadrinhos, da tirinha AC, em que o cliente indagava ao banqueiro quanto custavam as conchas. Ao lhe ser respondido que o preço unitário das conchas do banco era de duas conchas do cliente, este dizia que queria comprar cinquenta conchas e pagava cem conchas por elas. O último quadrinho mostrava o banqueiro satisfeito, entregando uma pequena sacola, contendo cinquenta conchas, ao cliente, enquanto esse, também satisfeito, fazia-lhe a entrega de uma sacola bem maior, contendo cem conchas. Claro que estou simplificando demais, omitindo o fator tempo, que faz com que o cliente entregue as cem conchas ao banco, de modo parcelado. Mas, essencialmente, as operações realizadas são semelhantes a essa, com a cobrança adicional de taxas pela prestação do serviço, o que diminui ainda mais o tamanho da sacola entregue pelo banco ao cliente.
Essa instituição bancária, contudo, desmaterializou-se. Deixou de ser uma agência, um hardware caro e pesado, e passou a ser um software, um aplicativo que cabe no celular de cada um. Não bastou a eletronização da agência, nos caixas automáticos (ATM, automated teller machine), que também passaram a ser visados para o cometimento de crimes, em geral, extremante violentos, como latrocínios e sequestros.
É bom lembrar que as instituições bancárias acabaram por ser responsabilizadas - apesar de sua resistência por meio de grandes bancas de advocacia e muitos lobbies nos tribunais superiores - por essas ações criminosas, uma vez que a jurisprudência foi paulatinamente entendendo que era dever delas estabelecer condições de segurança para as pessoas que iam às agências ou aos caixas automáticos. Afinal, o serviço era prestado com intuito lucrativo e os espaços postos à disposição dos clientes eram não só de propriedade dos bancos, como também eram guardados por eles ou por empresas contratadas para esse serviço de segurança patrimonial (o patrimônio policiado é o dos bancos) e não pessoal.
O surgimento do aplicativo de administração de recursos financeiros correspondeu a um benefício para a empresa administradora, e com o entendimento de que ela é responsável pela segurança dos consumidores e consumidoras de seus serviços, portanto, das operações que são realizadas em agências, caixas e programas eletrônicos ou informáticos.
Isso ficando claro, não preciso acrescentar que os recursos que circulam por meio do emprego desses aplicativos financeiros (não apenas bancários) são extremamente elevados. Praticamente a maior parte das operações financeiras se realiza por meio deles.
O que busca a pessoa que se apropria do smartphone de outras? O aparelho ou esses recursos?
A resposta me parece evidente. O celular não vale o preço de sua transação, mas o acesso a esses recursos. Esse valor é altíssimo. Dependendo do caso, dezenas, centenas, milhares de vezes superior ao preço do celular.
E para que se tenha, de modo ilícito, acesso a esses valores, é necessário o emprego de conhecimento, de habilidade, somente possíveis a um conjunto de pessoas e não ao “ladrãozinho que quer trocar o celular por droga”, não é?
O aparelho é buscado por seu valor real: o acesso aos aplicativos, que, por sua vez, permitem que haja o comando e a apropriação dos recursos financeiros do portador do celular.
Para se apropriar desses recursos, é preciso romper a barreira de segurança dos softwares. Hackear, comunicar-se com máquinas que respondem aos aplicativos e transferir os recursos para várias contas, de tal sorte que não seja possível reaver os valores de quem se apropriou deles ilicitamente, e muito difícil realizar o rastreamento.
Respondida a primeira pergunta, o encaminhamento da solução da segunda torna-se simples: por que a avenida Paulista e seu entorno são mais procurados? Evidentemente, são lugares que oferecem as vítimas ideias para essa atividade criminosa muito bem planejada e organizada. Há ali um número de pessoas que circulam e que oferecem aparelhos com acesso a contas de valor expressivo, em várias instituições. Há ali, hospedadas na infinidade de hotéis da região, ou visitando escritórios e empresas que ficam nas imediações, pessoas que procedem de vários lugares do Mundo, em geral a trabalho, muita vez a lazer, visitando os ótimos museus e parques que ficam na própria avenida.. Esses visitantes têm dificuldade – além da já natural de quem perde um instrumento essencial para todas as atividades cotidianas – para se defender e informar o crime, suspender o acesso às inúmeras contas administradas por inúmeros aplicativos instalados em seus smartphones.
A atividade concentra-se em dado espaço da cidade, que abre as portas a tanta facilidade de ganho. Ganho que é disseminado por um conjunto enorme de outras pessoas que executam, dirigem, participam e usufruem dessa atividade organizada. Não são pequenos furtos, mas apropriações realizadas com objetivo diverso.
O valor dos dados presentes no aparelho - que cada usuário pensa estarem garantidos, pelas senhas e várias barreiras postas pelos administradores desses dados e dos recursos, por meio dos aplicativos - é o que determina que um conjunto de pessoas se arrisque a cometer esses crimes, que seguem um curso sempre idêntico e célere. Apanhar o celular, ultrapassar a senha inicial de acesso, fazer modificações para que o dono não consiga ter acesso mais a dados e à própria conta junto à administradora do serviço de chamada, encontrar os aplicativos, abrir e acessar, emitir ordens. Outros passos também podem ser percorridos, como se apropriar de dados pessoais da pessoa dona do telefone móvel, abrir contas, fazer empréstimos, obtendo mais recursos, utilizar cartões de crédito ou mesmo fazer emitir outros cartões, obter dados de pessoas presentes nas listas de contato da antiga dona, buscar receber recursos dessas e de outras pessoas. Enfim, as possibilidades caminham no ambiente e na velocidade da imaginação.
Como se trata de algo que não é improvisado, mas planejado e estruturado, consegue-se fazer isso tudo em questão de minutos. A vítima fica à mercê dessas habilidades, que não são dotadas pelo pobre “ladrãozinho que quer fazer dinheiro fácil para comprar drogas.” As “empresas” criminosas que realizam isso treinam seus “trabalhadores” criminosos.
Quem deve se responsabilizar pelas perdas sofridas pelas vítimas?
Aqui, o raciocínio jurídico é o mesmo que antes sustentava as decisões judiciais que determinavam aos bancos que ressarcissem seus clientes e os usuários que tivessem sido furtados ou ludibriados em fraudes. A instituição financeira deve pagar, pois não soube estabelecer um regime efetivamente seguro, que preservasse a incolumidade do cliente, da pessoa que usa esses serviços, postos à disposição para a comodidade das instituições financeiras, para que realizem melhor sua atividade e aufiram mais lucro, a menor custo. Enfim, é o risco de sua atividade que determina a sua responsabilização, aliado ao dever de assegurar as pessoas de que os valores estão bem guardados. Há vários contratos envolvidos na relação entre a instituição financeira e os usuários, mas a base de todos eles é o contrato de depósito.
De uma situação de insegurança para políticas de segurança
O ambiente digital, portanto, modifica a configuração do que chamamos de segurança. Ultrapassa as fronteiras físicas que imaginamos quando pensamos nessa palavra. Para ter segurança, não é possível mais estabelecer barreiras naturais ou artificiais entre as pessoas. O mundo digital não conhece esses obstáculos.
O smartphone é apenas um meio material, talvez um pequeníssimo portal, que abre caminhos para uma infinidade de lugares e tempos reais e digitais, permite a comunicação entre pessoas e entre máquinas. Esses vários caminhos são os aplicativos, que abrem outras tantas infinitas possibilidades de informação e comunicação.
O poder de que a pessoa se sente imbuída, ao realizar atos de informação e comunicação, ativa ou passivamente, ao emitir comandos, a partir de um instrumento que cabe em seu bolso e na palma de sua mão, é diretamente proporcional à vulnerabilidade que acompanha essa posse.
A digitalização do mundo torna o sentimento das pessoas, que passam a depender das máquinas, ambíguo, ao repartir capacidade e incapacidade de tal sorte que a sensação de insegurança cresce exponencialmente, diante da capacidade de se comunicar, na ilusão da proximidade, e da incapacidade de se encontrar, na realidade da distância.
O isolamento gera insegurança. Sobretudo descobrir que, enquanto a ação de consumo gera lucro para as empresas que oferecem os aplicativos, a comunicação encontra canal aberto e uma “simpatia” parecida com a do vendedor diante do freguês. A palavra freguês, enfim, é utilizada para significar tanto o cliente contumaz, quanto aquele que perde continuamente na relação de jogo, na relação de troca, portanto. Quando a relação se torna tensa, porque o freguês se vê diante de um prejuízo maior do que espera, superior ao tolerável, a situação de comunicação muda radicalmente de figura. Vem o desamparo, o desprezo e mesmo a ofensa direta. Quantas vezes não assisti a isso nas ações judiciais que julguei, em primeira e segunda instância. Nelas, é comum o administrador dos recursos tentar imputar ao dono dos recursos a culpa pelo golpe que sofreu. É uma situação semelhante ao que ocorre no mundo real, quando se diz que a vítima foi responsável por ter sido lesada. Que ela provocou o ataque que sofreu, ou que não agiu como se esperava diante do crime, não procurou denunciar o que sofria, demorou para noticiar que o crime ocorreu, etc. Sim, é absurdo, mas essa tentativa sórdida de se eximir da responsabilidade acusando quem foi prejudicado, ferido, ameaçado, lesado, é, apesar de saltar aos olhos seu caráter cruel e oportunista, muito comum. Pior, ainda engana muita gente que julga destituída de empatia pelas pessoas, de compreensão do que ocorre no mundo.
A pergunta, agora é: será que colocar policiais, guardas e viaturas nas ruas resolve essa situação e o sentimento de insegurança que a acompanha?
A resposta é claramente negativa.
Se é assim, então, a pergunta se torna: por qual motivo essas pessoas uniformizadas e armadas e os carros oficiais estão lá? E por que não são tomadas medidas verdadeiramente eficientes para impedir o cometimento desses crimes complexos, apenas na aparência banais?
Isso tudo não é feito em benefício das pessoas que têm seus celulares surrupiados e violados.
Trata-se, aqui, em verdade de duas coisas.
A primeira diz respeito a uma opção de “política” de “segurança” “pública”. Se é equivocada, é preciso saber por que foi escolhida.
A segunda, descobrir qual o motivo real de policiais, guardas e viaturas estarem lá. Apenas para dar impressão de segurança? Ou haveria um outro motivo, mais importante para quem decide fazer isso?
Vamos lá, então, à investigação dessas duas coisas. O que encontrarmos definirá a solução do problema.
Pelo que disse até aqui, a conclusão é a de que o dinheiro público está sendo mal-empregado. Pior, está sendo usado em benefício de quem não precisa. Isso porque são as instituições financeiras que devem buscar soluções de segurança para seus aplicativos, em parceria com quem os desenvolve. A segurança dos usuários é questão de responsabilidade dessas instituições. Cabe a elas usar parte de seus vultosos ganhos em benefício de seus clientes, ou seja, de quem lhes proporciona os lucros.
O Estado não pode gastar para garantir a segurança patrimonial e dos recursos dessas instituições, fingindo guardar cidadãos e cidadãs.
Trata-se, portanto de uma falsa política. É uma mera decisão administrativa que faz um cálculo errado do que é necessário para preservar o espaço público. Teoricamente, caberia até uma ação popular constitucional para reaver esse dinheiro gasto sem propósito nem interesse público, fazer os governantes que adotam medidas caras e inúteis como essas devolverem o que gastaram aos cofres públicos, para que os recursos sejam empregados em verdadeiras políticas públicas. Essa decisão administrativa errônea do ponto de vista da eficiência não é pública, portanto, é contrária à Constituição.
Não traz segurança, mas finge fazê-lo. Por quê? Há dois motivos, ambos nocivos, mas o que vou analisar por último denota uma índole anticonstitucional muito mais grave e perigosa que o primeiro, que também contraria a lei e a Constituição.
O primeiro motivo está gastar o dinheiro pertencente a todo mundo, aos cidadãos e cidadãs, ao povo apenas para benefício privado (em substituição daqueles que deveriam ter esse gasto, privadamente, e não onerar os cofres públicos com medidas desse tipo) e para benefício próprio. Sim, governantes e administradores que fazem isso estão gastando o dinheiro público para dar uma aparência de que cuidam da segurança, isso para o fim mesquinho de angariar apoio (de recursos para suas campanhas – exatamente dessas empresas financeiras que são beneficiadas, que economizam o dinheiro que têm o dever de aplicar em segurança, - e para obter votos de eleitoras e eleitores que são enganados por essa fake-security, se me permitem essa expressão, associada à fake-news). Sim, governadores, prefeitos e secretários estaduais e municipais da área da segurança estão criando falsa sensação de segurança e contando mentiras a respeito disso. Mais grave, estão deixando de cuidar da segurança e deixando as pessoas sem segurança.
É a negação de uma política pública obrigatória, o descumprimento de um dever.
O segundo motivo tem a ver com o fato de essa ocupação por forças policiais não tem como desígnio nem como efeito criar segurança, mas ameaçar a população, com a ostensiva invasão do espaço público, de uma avenida que se tem notabilizado por ser espaço de livre expressão do povo, por um aparato que, histórica e socialmente, tem-se posto como inimigo do povo – falo do verdadeiro povo, aquele que corresponde a maioria de nós, indígenas e afrodescendentes, periféricos, pobres, LGBTQIA+, que vêm à avenida em busca de segurança para se expressarem, para poderem agir naturalmente, sem receio de serem molestados. E a avenida e seus lugares têm sido esse espaço de acolhimento da diferença e presença popular. As estatísticas de violência e atos arbitrários por parte dos aparelhos chamados de segurança estatal mostram dados preocupantes e inadmissíveis, pois a atuação dessas forças tem sido seletiva, preconceituosa e discriminatória. Sua presença indevida em um espaço como a avenida causa temor e não leva a segurança senão patrimonial e de poucos, em detrimento da imensa maioria.
Digo que essa é uma anticonstitucionalidade ainda mais grave porque ela quebra os liames democráticos que deveriam existir entre todos nós. E descumpre a Constituição, negando direitos, deveres e políticas públicas.
Conclusão
Anticonstitucionalidade é um termo que grafei e tenho utilizado. É mais grave e mais importante do que a inconstitucionalidade, posta nos textos normativos e empregada pelos juristas. Significa a negação militante de cumprir e fazer cumprir a Constituição, mas, também, de preservar os laços constitucionais que unem o povo em sua diversidade.
As medidas tomadas espacialmente pelos governos paulista e paulistano possuem esses vícios e são anticonstitucionais.
Não é à toa que as forças sociais que apoiaram e escolheram esses governantes e seu modo ilegítimo de atuar correspondem ao processo de implantação, no Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo em outros Países, de um regime autoritário, antirrepublicano, antidemocrático, de vinculação e de expressão de extrema-direita, que, aqui, tomou, até o presente, o nome de bolsonarismo. Os planos e as ações desses governantes têm vinculação com a violência e a desigualdade.
Enfim, há medidas mais eficazes e jurídico-políticas para resolver o problema da segurança. Aqui, procurei mostrar como deve ser conduzida a análise da questão da segurança, por meio do exemplo dos crimes do celular.
Uma verdadeira política de segurança é pública e cidadã. Serve à segurança pessoal de todos e não de uma minoria. Recusa soluções demagógicas e eleitoreiras. Não põe o dinheiro público para satisfazer o interesse privado de uma minoria, protegendo o patrimônio de quem tem patrimônio, em detrimento e, muita vez, contra aqueles que nada ou muito pouco possuem. A verdadeira política pública cidadã é constitucional.
É, sim, necessário que um governo republicano, democrático e constitucional seja e aja de tal forma que um cidadão não tenha medo de nenhum outro cidadão, que o povo não tenha medo do povo, não tema o próprio governo e não seja enganado por ele. Que o governo não permita que alguns explorem a maioria, e que atue em favor de todos, sobrelevando o bem da maioria. Que o povo não tenha medo da polícia, que tem o dever constitucional e legal de o proteger. Política pública de segurança cidadã deve seguir esses pressupostos, sob pena de ser apenas afronta contra o Estado Democrático de Direito.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




