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Heraldo Tovani

Professor, formado em História, com pós-graduação em Psicopedagogia e especialização em Psicanálise

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O vazio da verdade sem utopia

No Brasil, o discurso liberal-direitista é mais grave, com maior potencial de confrontos e resultados violentos, pois aqui o inimigo não é externo. Aqui, a pregação extremista afirma que a família idealizada só pode ser construída e defendida com a destruição de professores manipuladores e com o index de obras clássicas, como as do genial Paulo Freire

O vazio da verdade sem utopia (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
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Numa passagem bonita e de grande sensibilidade poética, o escritor uruguaio, Eduardo Galeano fala da utopia, na forma como a enxergava um amigo, cineasta argentino. Perguntam a ele: para que serve a utopia? Galeano diz que o amigo afirmava que nunca alcançamos a utopia, pois essa é sua substância. Ela é, por substância, fugidia. Se caminhamos dez passos em sua direção, ela põe-se mais dez passos à frente, se caminhamos vinte passos ela também o faz, na mesma medida. Então, para que serve a utopia? Ele responde: para isso mesmo, para pôr-nos a caminhar.

Segundo esta visão, inversamente, estacionamos quando deixamos de perseguir a utopia. Deixamos de ser agentes da história e nos rendemos à distópica realidade concreta e, dessa forma, nos tornamos reféns do fatalismo.

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Só a utopia aponta para um futuro a ser construído.

Os planos políticos e de governo, apresentados nessa eleição, assim como os slogans de campanha e os discursos de candidatos são todos miseravelmente distópicos. Penso que qualquer proposta de esquerda que abandona a utopia não pode ser chamada de esquerda.

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Os planos para a economia, por exemplo, são de uma pobreza utópica lamentável e reducionista. Partem de um real concreto e ali permanecem. Estacionados em um discurso de “fazer rodar a engrenagem da economia”, não apontam para onde rodará essa engrenagem, para qual nova direção, para qual nova forma de reprodução da riqueza. São todos reacionários, no sentido em que não tiram das mãos dos mesmos de sempre a capacidade de reprodução do capital. Continuam nas mesmas mãos os instrumentais, os maquinários que produzem a riqueza.

Se é verdade que só a utopia aponta para o futuro, também é verdade que o real concreto aponta para o passado. Quando abandonamos a utopia, só o que nos resta é a reprodução do presente, que é, do mesmo modo, apelo ao passado.

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Até a concretude do materialismo dialético de Karl Marx resgatava um real construído a partir da luta de classes cotidiana e apontava para uma utopia a ser perseguida.

A psicanálise lacaniana entende o real como algo construído pelo desejo, pelo gozo. O real, para Lacan, é constituído pelas escolhas – determinadas pelo princípio do prazer- que fazemos em nossa constituição, como sujeitos de desejos. Dito de outra forma, o real é resultado das fantasias de uma história passada. E é aí que o sujeito vacila, pois não existe base concreta, epistemológica, verificável que justifique as escolhas feitas pelo princípio do prazer. São fantasias inverificáveis de real o que chamamos de realidade.

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Cometendo a heresia de parodiar Karl Marx que dizia que a “Ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”, poderíamos dizer que a fantasia de realidade dominante é a fantasia da classe dominante. E ela é tão mais poderosa hoje do que havia sido no tempo de Marx.

Ali, onde o sujeito vacila, existe uma falta, um hiato, um resto de desejo não satisfeito que ficou no passado, algo escapou, algo foi deixado para trás e assombrará este sujeito por toda a sua existência. A busca desse desejo não sabido e não identificável é o que põe em movimento o nosso psiquismo, é o que determina nossas paixões, é uma busca constante e inalcançável de algo cujo outro nome poderia ser utopia.

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Mas, por fatalidade, utopia não é seu único nome possível. Se apontado para a construção de um futuro é, sim, utopia. Mas também pode-se voltar a uma “busca do tempo perdido”, voltar-se ao passado, quando éramos felizes e não sabíamos. Não sabíamos justamente porque essa felicidade é fantasia, ela não existiu, a falta sempre foi a angústia onipresente. Mas fantasiamos e acreditamos no tempo idílico, onírico, feliz e pacífico que nunca existiu. Quando olhamos para o passado, nossa busca deixa de ser utópica, seu outro nome é distopia.

É aí, na fantasia distópica, que a proposta de construção de um passado projetado para o futuro alcança entusiastas. É aí que as propostas conservadoras, direitistas e fascistas se assentam.

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Mas não podemos acreditar que o sujeito de desejo do qual falamos seja apenas um sujeito de si para si, sem as relações sociais que o determina, o influencia, o manipula e o aliena.

Ele rende-se cotidianamente à propaganda que o explora e o faz servil, utilizando, justamente, dessa falta, desse desejo que nunca se realiza.

A propaganda massiva do sistema político-econômico dominante o faz submisso aos apelos de uma felicidade que não é a sua, mas que ele acredita ser.

A mais recente ordem econômica, do liberalismo ultrarradical, para estabelecer seu domínio psicossocial, precisa criar uma fantasia de realidade, onde valores impessoais como família idealizada, pátria, ordem pública, segurança, tradição, respeito a valores estabelecidos e o combate ao mal sejam bandeiras disseminadas a toda população. Ou seja, a construção de um ideal de país que encontre combatentes dispostos a encarar o inimigo, em nome de um bem comum, imposto como salvacionista.

Nos EUA, de Donald Trump; na Alemanha, do partido nazista AfD (Alternativa para a Alemanha); no Reino Unido, do Brexit ou na França, onde a direitista Marine Le Pen conseguiu 34,5% dos votos, na última eleição, um mesmo mote de discurso direitista pode ser visto em comum a todos, o combate ao “inimigo externo”, ao imigrante, via de regra.

No Brasil, o discurso liberal-direitista é mais grave, com maior potencial de confrontos e resultados violentos, pois aqui o inimigo não é externo.

Aqui, a pregação extremista afirma que a família idealizada só pode ser construída e defendida com a destruição de professores manipuladores e com o index de obras clássicas, como as do genial Paulo Freire. A Pátria deve ser defendida da venezuelização com o combate aos inimigos militantes da esquerda. A ordem pública e a segurança devem ser defendidas com o armamento da população e com a autorização para a polícia matar. A tradição e o respeito a valores estabelecidos devem combater o empoderamento da mulher e o discurso de gênero. Para o combate ao mal, deve-se construir, na impossibilidade de um discurso xenofóbico, um inimigo interno e, neste caso, os melhores e preferenciais alvos são o Partido dos Trabalhadores, a CUT, os movimentos sociais e sindicatos.

Mas, como a partir da fantasia de um real concreto, só o passado é possível, nenhuma das propostas da extrema direita aponta para o futuro. Seu ideal, no Brasil, é a restauração dos valores da ditadura militar, que vigorou no país de 1964 a 1985.

É assim que uma campanha fascista para a presidência da república consegue tão forte adesão na sociedade. Apontando para o passado, como o lugar de busca da falta que angustia o sujeito do desejo.

Esperaríamos das forças de esquerda, frente a consolidação do distópico, um olhar voltado para um futuro a ser construído. Mas, a armadilha da fantasia de real nos aprisionou a todos.

Formular projetos e propostas políticas ou eleitorais, programas, slogans e discursos a partir do real concreto é apenas permanecer na fantasia de realidade da classe dominante - e ela sempre aponta apenas para o passado. O real concreto só permite reproduzir a mesma fantasia dominante de real concreto, pois essa fantasia é a única substância que existe no real.

Nosso tempo atual está recheado de calúnias, inverdades, difamações e notícias manipuladas. E, frente aos ataques da extrema direita, uma narrativa do passado recente vem sendo construída e ganhando força de verdade. Só tímidos sussurros respondem a esse discurso. Quase não o ouvimos.

Crentes em uma justiça quase divina, olhamos para esse presente esperando que o passado se revele por si só.

É comum ouvirmos que a história revelará a verdade.

Porém, nos livros e cursos de história aprendemos que o passado só pode ser construído pelas narrativas do presente. Vale a máxima: Quem cala consente. Ou, mais que isto, quem cala corrobora.

Faz-se necessário e urgente criarmos uma nova narrativa dos últimos anos passados.

Sem uma utopia que aponte para a construção de um futuro, não teremos instrumentais para construir nossa narrativa do passado.

Uma nova narrativa do passado só será possível se, por nossas utopias, ousarmos propor um futuro, posto como obra de nossas ações. Ou, dito de modo inverso, só poderemos construir um futuro se o passado nos der o degrau de ascensão.

Uma nova narrativa do passado só será possível se for posta na construção de um futuro.

“O Brasil feliz de novo” ou um novo Brasil feliz?

Eduardo Galeano nos convida a olharmos a utopia com o único intuito de fazermos nossa jornada. É na jornada que descobrimos a nossa verdade.

Sem a jornada não há verdade. Sem utopia não há jornada. https://youtu.be/9iqi1oaKvzs

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