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Wadih Damous

Presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro

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O verdadeiro legado da Lava Jato

"A operação 'lava jato', que parece estar vivendo seu ocaso, reuniu grupos operadores da Justiça criminal com claríssimas opções políticas, quando não eleitoreiras", escreve o advogado e ex-deputado Wadih Damous

Deltan Dallagnol, Polícia Federal e FBI (Foto: Agência Brasil | Reuters)
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Do "lavajatismo" se pode dizer aquilo que velha anedota diria de uma obra recém-lançada: trouxe coisas novas e coisas boas; só que as boas não são novas e as novas não são boas. A operação "lava jato", que parece estar vivendo seu ocaso, reuniu grupos operadores da Justiça criminal com claríssimas opções políticas, quando não eleitoreiras. Deltan Dallagnol ensaiou candidatar-se à Procuradoria-Geral da República na vaga que acabou sendo ocupada por Augusto Aras e também cogitou seriamente de disputar o Senado em 2018, como revelou o site The Intercept Brasil na "vaza jato". Sergio Moro foi ministro da Justiça do governo que ajudou a eleger.

Antes desses dois e na esteira da desenfreada acumulação de poder punitivo pelas agências de persecução penal brasileiras, Joaquim Barbosa, uma espécie de precursor do "lavajatismo", já vinha pavimentando caminhos que sinalizavam para o uso político da toga. Haver se notabilizado como juiz criminal tecnicamente ruim, mas implacável, o credenciou a uma badalada e cortejada pré-candidatura presidencial. Isso tudo graças ao apoio entusiasmado da mídia nacional, que em certos momentos celebrava em uníssono as inovações de legalidade muito questionável que esse grupo de pessoas impôs à sociedade brasileira.

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Conta-se, em Direito e processo penal, pelo menos meia dúzia dessas novidades preocupantes — coisas boas que não são novas e coisas novas que não são boas. Não houvesse o Supremo Tribunal Federal acolhido as ADPFs 395 e 444, assistiríamos até hoje aos abusos das conduções coercitivas, decretadas para espetacularizar investigações e ferir direitos individuais. Vimos a deturpação de conceitos jurídicos consolidados, como conexão e prevenção, produzir a competência mais ampla e universal do mundo em matéria penal. Por alguns anos, parecia existir somente um juiz criminal no país apto a processar e julgar casos rumorosos, independentemente da existência de fio probatório, e não apenas narrativo, entre as evidências recolhidas em uma e outra investigação. Os propósitos políticos da operação soçobraram qualquer argumentação de base jurídica. Ainda no processo, experimentamos a completa banalização de prisões preventivas, acionadas simbolicamente e transformadas em instrumentos de chantagem a delatores em potencial, cujos relatos sustentavam isoladamente novas prisões preventivas, num círculo vicioso que acabaria por transformar o Ministério Público Federal e a própria Justiça Federal nas agências mais poderosas e arbitrárias de nossa pós-democracia.

O Direito Penal não sofreria menos. A começar pela nova teoria do ato indeterminado no crime de corrupção, gestada na Ação Penal nº 470 com a finalidade confessada de criminalizar dinâmicas políticas inerentes ao presidencialismo de coalizão. Como dissecou tão bem Fernando Teixeira, em artigo primoroso, "de um crime envolvendo a mercantilização de atos estatais, a corrupção passiva passou a ser entendida como o recebimento de recursos por agentes públicos desconsiderados contextos e motivações" [1]. E como a maior parte dos candidatos a postos eletivos tem que fazer uma campanha e recebe doação para fazer essa campanha, tais doações passaram a ser um elemento de suspeição. Claro que importaram aos processos de criminalização somente as doações em dinheiro. Aquelas doações eleitorais simbólicas e espirituais, presentes, por exemplo, nas intervenções do general Villas Bôas em período pré-eleitoral e mesmo nas articulações de Deltan Dallagnol com grupos políticos conservadores, o que também revelou a "vaza jato", foram desconsideradas.

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Alvejaram os empresários "sujos". "Sujos" porque desejosos de manter boas relações com as estruturas de poder, dado comum às democracias representativas em países de base capitalista. Toda e qualquer doação financeira empresarial, que, por vezes, deixou de ser registrada por comodismo fiscal ou mesmo para camuflar relações políticas, o que configuraria no máximo crime eleitoral, se transformou em razão de desconfiança. Os dois elementos teóricos centrais a este processo — "1) a adoção da tese da corrupção/enquanto 'crime formal' como forma de relativizar a necessidade de descrição precisa de elementos constitutivos do tipo, como acordo corruptivo e ato estatal; 2) a tese de que é suficiente elencar um conjunto de atos estatais hipotéticos (indeterminados) como bem de troca para estabelecer uma operação corruptiva" [2] — consagram a lógica daquela teoria canônica, segundo a qual quem está obrando ilicitamente responde por tudo de errado que acontecer, o que não é uma verdade de Direito Penal. Socorremo-nos outra vez do artigo citado para concluir o ponto: "a indeterminação do tipo corrupção-suborno pode levar a consequências imprevisíveis, criando risco para a estabilidade institucional e um problema de insegurança jurídica com suas consequências típicas" [3].

Nesse campo do inovacionismo teórico em Direito Penal, houve também a importação acrítica da teoria da cegueira deliberada, dispensável a quem já dispunha de uma sofisticadíssima dogmática do dolo eventual, repleta de disputas riquíssimas e de densa base filosófica, como a que há entre o cognitivismo, hoje predominante na Alemanha, e o voluntarismo. Poderiam ter incorporado a sólida crítica de Renato Silveira, catedrático da USP, para quem "a utilização da teoria da cegueira deliberada como parâmetro de ampliação do conceito de dolo eventual é extremamente problemática, pois nem toda a situação de ignorância deliberada implica, necessariamente, em dolo eventual" [4], de tal forma que "apesar de poder se dizer que todo dolo eventual se enquadraria no que se entende por cegueira deliberada, o inverso não é verdadeiro, e isso porque não se pode ter a substituição do conhecimento atual pela cegueira deliberada, pois seriam dois critérios distintos, não intercambiáveis (como expressado no caso United States vs. Jewell)" [5]. E, por último, as penas elevadíssimas, que abandonaram, sem grandes constrangimentos teóricos, critérios racionais de fixação das reprimendas e a própria noção de "termo médio", importante limitador do poder punitivo. Alcançou-se a cifra faraônica de três mil anos de penas.

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Estão em curso expedientes salvacionistas gerados por esse jeito torto de fazer política, do que é exemplo o gerontopunitivismo melindrado e tardio contra cardeais do tucanato. Investidas policialescas de âmbito nacional, colocadas em prática para legitimar projetos de poder, violentos do ponto de vista real e simbólico, não são bem uma novidade na nossa história. Fizera-o, certamente pela primeira vez, o visitador do Santo Ofício de Lisboa ao Brasil colonial. Heitor Furtado de Mendonça, em 1591, percorreu as terras recém-descobertas para inquirir colonizadores e nativos que ameaçavam e contrariavam a fé católica. Embaixo de ameaças de penas espirituais, estimulavam-se denúncias mútuas acerca de hábitos judeus, pagãos ou desvio das práticas sexuais tidas como "normais". Não há nada de novo sob o Sol.

Não há esquecer que nem só o Direito Penal e o processo penal foram alvejados de morte. A economia — com quebra de empresas e milhares de desempregados — também foi alvo dessa política de terra arrasada. Mas essa é uma outra história a ser contada em outra ocasião.

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[1] Crítica à “Teoria do Ato Indeterminado”: dinheiro e poder na microdinâmica da corrupção-suborno. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 169, ano 28, p. 41-80. São Paulo, Ed. RT, julho 2020.

[2] Idem.

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[3] Idem.

[4] Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. Boletim do IBBCRIM, ano 21, nº 246, maio de 2013.

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[5] Idem.

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