O voto do povo
A escolha por Barrabás foi uma farsa processual antidemocrática.
Diz-se com desdém “esse povo brasileiro”, relegando-o a fracassado e inepto. Há preconceitos contra “o povo”. Alguns agem como se dele não fossem parte. A propaganda da ultradireita ressuscita o velho jargão de que o povo não sabe votar:
“Tá vendo, eles votaram até em Barrabás...”
Mais um produto da cozinha do diabo, de fato distorcido. Os chefes do templo queriam se livrar de Jesus. Para os sacerdotes, o rabino era mais perigoso do que o ladrão de estradas Barrabás, o qual assaltou o próprio templo. Aquele roubo noturno, antes do toque da trombeta do amanhecer, era insignificante diante da nova ameaça.
O templo não era somente o ouro da arca, mas toda a política de recolher contribuições de peregrinos judeus e não judeus, esses chamados de gentios. Havia lugares restritos aos judeus, nos quais gentios não podiam cruzar sob pena de morte. Contudo, Herodes arquitetou a esplanada dos gentios, onde os não judeus podiam oferecer sacrifícios.
Para todo o serviço do templo, contavam-se mais de quinhentas pessoas. Funcionários do templo: aqui estão os eleitores de Barrabás. Tal lugar era um centro lucrativo de negócios, fé e peregrinação o ano todo. Para os ricos de Jerusalém, havia uma entrada lateral à esquerda, evitando-se o pátio fétido dos gentios. Na frente do templo, havia lojas para comprar sacrifícios e trocar moedas a doar, mas os vendedores e cambistas se apropriaram indecorosamente também do pátio interior com seus animais e bancas. O templo, desde sempre, recebeu críticas de profetas e observações severas do Talmude. Os profetas diziam que os sacrifícios não eram coisas que, por natureza, pudessem ser dadas, pois todas pertenciam a Deus. Uma monstruosidade esses sacrifícios de animais. O pátio dos gentios fedia a excrementos e urina. Nesse grande afluxo de gente nas peregrinações, não havia banheiros e as fezes de camelos se misturavam às dos humanos. As moscas faziam a festa. Quem chegava sadio saía doente.
Um dia, Jesus resolveu derrubar bancas, espalhar as moedas pelo chão, soltar dos engradados aves, carneiros e desatar bois à venda para sacrifícios. Tudo com apoio popular. Nem o chefe da guarda agiu nesse alvoroço; ficou amedrontado. Caifás aproveitou o episódio e conseguiu maioria no Sinédrio. Matariam o rebelde, sem “tumultos entre o povo”, antes da Páscoa, quando afluiriam milhares de peregrinos, merda, xixi, escarros e doenças pela falta de mínimas condições de higiene. Se Jesus estivesse no templo no dia da Páscoa, o estrago poderia ser maior. O povo seguiria Jesus, temiam os sacerdotes; por isso, matá-lo antes.
A escolha por Barrabás foi uma farsa processual antidemocrática, nas dependências do templo, na fortaleza Antônia, de cartas marcadas pelos sacerdotes. Lá o povo não participou; os sacerdotes coagiram seus funcionários ao voto no criminoso Barrabás.
Essa fake do “eleitor do Barrabás” é ressuscitada pela ultradireita para desqualificar o voto popular, constranger a democracia e os direitos sociais, desanimar a sociedade civil e deixá-la alheia à realidade, no celular de pegadinhas. Se houvesse democracia naquele país teocrático ainda hoje, o povo votaria em Jesus, não em Barrabás.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

