Os Estados Unidos abandonam o barco de sua própria invenção
A predileção pelo unilateralismo implicará numa renúncia ao exercício do poder brando, sem o qual a convivência internacional se tornará especialmente áspera
A decisão do governo Trump de mandar sua agência de ajuda internacional - a USAID - para o espaço significa uma virada de página de 70 anos do uso da mão branda para o pulso duro de seu projeto hegemônico americano. C’est fini!; ou como se costuma dizer às crianças de língua espanhola ao final da leitura de um conto: “Colorin, colorado, este cuento está terminado”.
A mídia internacional vem noticiando quais são as dolorosas consequências desta decisão para um amplo conjunto de países, principalmente aqueles que dependem dessa ajuda para as suas necessidades essenciais, como alimentação, saúde e educação. Esta dependência tende a variar entre 35% e 10% quando é calculado o seu peso absoluto do PIB, mas pode chegar a 90% se o foco for colocado sobre áreas específicas de carências de um país pobre e vulnerável. Entretanto, o impacto da decisão da administração trumpista não deve levar a que se acredite que a ajuda internacional americana fosse um mar de rosas e muito menos um descomprometido baú da felicidade. As condicionalidades e segundas intenções sempre estiveram presentes. “Dar para tomar”, como indicava o título do livro de David Sogge, um autor veterano da literatura crítica sobre cooperação internacional.
A ajuda externa dos Estados Unidos nasceu de um repolho chamado Plano Marshall em 1945. Desde sua origem, tratou-se de um instrumento da política externa que atendeu a interesses econômicos e reforçou a capacidade de Washington de assegurar lealdades e aquiescências convergentes com suas prioridades estratégicas. Durante toda a Guerra Fria, a contenção da União Soviética foi a principal. Depois veio a guerra contra o terror e depois a rivalidade com a China.
A ideia de que primazia internacional deveria implicar transferência de recursos que provinham dos bolsos dos pagadores de impostos - utilizado muitas vezes como um sinônimo de cidadania nos EUA - tem sido matéria de controvérsia desde longo tempo. Enquanto alguns questionavam o porquê de tal gesto altruísta, outros o defendiam por seu sentido instrumental para ganhar corações e mentes em diferentes partes do planeta. No âmbito acadêmico, Samuel Huntington se somou aos questionadores dessa política, enquanto George Kennan advogava sua funcionalidade política e moral. A visão realista, professada por Hans Morgenthau, apenas admitia a ajuda externa como uma opção sem discussão em casos de crises humanitárias. Qualquer outro formato era questionável, podendo prestar-se a se tornar numa fonte de corrupção e/ou favorecimento de projetos que atendiam mais aos inimigos do que aos interesses de poder americano. Qual seria então a vantagem de melhorar as condições dos países em desenvolvimento? Era a indagação de Morgenthau.
A reconstrução europeia após a Segunda Guerra, promovida pelo Plano Marshall, custou aos Estados Unidos 2,5% de seu PIB. Foi o único compromisso de ajuda externa do país, aceito internamente como parte de um consenso bipartidário - entre democratas e republicanos - para dar sustento a um projeto de liderança internacional que assegurasse preeminência junto a seus aliados e superioridade frente ao inimigo soviético. Neste embalo foi criada a Organização para a Cooperação Econômica Europeia, que em 1961 se transformou na OCDE; uma entidade que congregava economias industrializadas em torno de marcos regulatórios comuns relacionados a um amplo leque de atividades financeiras, comerciais, monetárias e produtivas.
A ajuda internacional foi reconhecida como área específica de atuação dos países membros, que aderiram aos princípios ordenadores estabelecidos pela Comissão de Ajuda para o Desenvolvimento (CAD). Cada membro deste fórum passou a dispor de sua própria política de ajuda, implementada por sua respectiva agência que adotava critérios gerais articulados com as ênfases e prioridades de suas políticas externas. Desde então, os Estados Unidos tornaram-se o principal doador de assistência internacional em termos absolutos, mas nunca em termos relativos. Já em 2023, por exemplo, enquanto sua contribuição ao volume de recursos dos doadores-CAD representasse aproximadamente 35% (US$ 72 bilhões), o peso destes mesmos como percentual de se seu PIB era em média de .024% (10% do que fora com o Plano Marshall). Estes números contrastam em todos os sentidos com os de outros países do grupo, especialmente os escandinavos que se sobressaem como cooperantes internacionais. A Noruega, por exemplo, cuja assistência internacional neste ano representou apenas 3,7% do total dos membros DAC, contribuiu com 1,09% de seu PIB. (Fonte:OECD).
A partir da administração Trump 2.0 é de se prever uma retração da voz americana no CAD como também em diversas agências da OECD. De fato, a predileção pelo unilateralismo implicará numa renúncia ao exercício do poder brando, sem o qual a convivência internacional se tornará especialmente áspera, com enormes prejuízos para o mundo e para própria sociedade americana. O fechamento da USAID não significa o desaparecimento da ajuda internacional americana. Haverá sim uma redução significativa e sua disponibilização, que se fará com menor controle e transparência, como parte de transações(delas) assimétricas. O conceito de “programas de ajuda” será substituído pela contabilização de gastos que atendem a decisões atrelados às agendas externas, a maioria bilaterais, deste governo. Um exemplo serão os custos dos acampamentos transitórios de imigrantes rastreados para deportação, o combustível para transportá-los, e o que mais for necessário. Esta revisão conceitual e prática para o funcionamento de uma máquina estatal eficiente de Elon Musk: saber escolher de onde tirar e para onde direcionar recursos governamentais. Também se pode antecipar um uso confuso de fundos privados em arranjos externos improvisados. Neste cenário, a ajuda externa oficial, que já inspirava questionamentos das elites políticas e econômicas americanas, tornou-se uma vítima fácil.
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