Os Estados Unidos de volta para o futuro
Alguém está vendo por aí o Dr. Brown com o DeLorean voador para nos salvar?
Atribui-se a Oscar Wilde a frase “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. Falecido em 1900, o dramaturgo irlandês não assistiu De Volta para o Futuro Parte II, de 1989, ou a posse de Donald Trump como 47º Presidente dos Estados Unidos, neste 20 de janeiro de 2025. Mas gostaria de juntar essas três peças, separadas por mais de um século, para uma pequena reflexão atemporal. Há spoilers para quem está há 36 anos sem assistir esse clássico ou não sabe o que aconteceu na última eleição americana.
No clássico de 1989, escrito por Bob Gale e dirigido por Robert Zemeckis, os personagens Marty McFly e Dr. Brown viajam de 1985 para 2015, para tentar evitar que o futuro filho de McFly cometa um roubo e seja encarcerado. Enquanto tentam cumprir essa missão, Marty tem a ideia de pegar, antes de voltar para 1985, um livro com resultados esportivos, o que viabilizaria que enriquecesse fazendo apostas esportivas (não, a reflexão não é sobre as bets, mas também poderia ser). Dr. Brown desautoriza Marty, dizendo que não havia criado a máquina do tempo para ganhar dinheiro, e eles jogam fora o livro.
Ocorre que, enquanto Brown e McFly falavam sobre a máquina e o livro com os resultados esportivos, atrás de uma porta ouvindo tudo estava Biff Tannen. Tannen, um idoso em 2015, havia sido, em fases anteriores da saga (mais precisamente em 1955 e em 1985), o grande antagonista de McFly e de sua família. Biff é um típico bully que, porém, no final feliz da Parte I, passara a ser submisso aos McFly, em 1985. O Biff de 2015 percebe a oportunidade de enriquecer a partir da ideia de Marty e, num momento de descuido do protagonista e do Dr. Brown, pega o DeLorean, volta a 1955, entrega o livro a si próprio (60 anos mais jovem) e retorna a 2015, deixando o carro no lugar.
Após resolverem a questão do filho de Marty, ele e o Dr. Brown, sem perceber o que Biff havia feito, voltam a 1985, imaginando que encontrariam tudo como haviam deixado. E aí se abre a interessante reflexão. O cenário que os protagonistas encontram em 1985 é de guerra civil. Desordem total nas ruas, milícias agindo a céu aberto e todos atirando em todos. No centro da cidade, onde antes havia uma torre e o Palácio da Justiça, há uma grande torre com um Cassino, chamada “Biff Tower”. Entrando na torre, Marty percebe que Biff era a pessoa mais poderosa da cidade, pois havia enriquecido a partir de acertos sucessivos em apostas a partir dos anos 1950. A distopia incluía Biff ter eliminado o pai de Marty, feito sua mãe se casar com o próprio Biff, e ter passado a dispensar a ela (e a todos, aliás) um tratamento bastante violento.
O choque, para quem assiste o filme quase 40 anos depois, é que toda a construção do personagem Biff Tannen é inspirada nas atitudes e mesmo na estética de Donald Trump. Bob Gale inclusive confirma essa inspiração direta, embora, é claro, Trump em 1989 fosse um empresário excêntrico e não tido (salvo por outros artistas visionários como os criadores de Os Simpsons…) como um futuro Presidente dos Estados Unidos. Não deixa de ser genialmente assustador, porém, o exercício que os autores de De Volta para o Futuro Parte II fazem sobre o que aconteceria com uma cidade se alguém como Trump concentrasse enormes poderes. Lembremos, reflexão feita há 36 longos anos.
Há muito a debater a partir dessa semelhança entre as duas figuras, valendo inclusive indicar o livro de 2018 “Sad! Donald 'Biff' Trump is President: The striking similarities between Donald Trump and bully Biff Tannen from Back to the Future II”, de Paul Orwell. Porém, a semelhança que mais me chama a atenção é entre a cena em que Biff aponta uma arma para Marty, no topo da Biff Tower, e uma declaração de Trump, dada em janeiro de 2016.
Na cena do topo da torre, Marty, encurralado no parapeito da torre e tentando evitar que Biff puxe o gatilho, alega que ele não deveria cometer o ato, pois seria preso, identificariam o projétil e a arma. Biff responde que nada aconteceria, pois é o dono da polícia. Ele só não mata seu próprio enteado (spoilers e mais spoilers…) porque o Dr. Brown aparece com o DeLorean voador e o salva. Distopia aberta, todos os poderes concentrados nas mãos de um vilão capaz de tudo e o herói salvo por um Deus ex machina.
Já Trump, em 2016, afirmou o seguinte: “Tenho os eleitores mais leais. Alguma vez vocês viram algo assim? Eu poderia parar na metade da Quinta Avenida, disparar contra as pessoas e não perderia eleitores”. Um vilão capaz de projetar um ato como esse a caminho da Presidência dos Estados Unidos. Pois é, às vezes fica parecendo que Bob Gale de fato tem a máquina do tempo.
Uma forma de olhar para as ameaças que pairam sobre o futuro dos Estados Unidos e em certa medida de outras partes do mundo é pensar que, se Trump não foi punido pela tentativa de golpe de janeiro de 2021 e volta mais fortalecido ainda ao poder, a ameaça no momento talvez seja quase como a da cena do topo da Biff Tower. Ou pensar que, se em 2016 a fala sobre atirar nas pessoas na Quinta Avenida fosse retórica, talvez agora seja menos. Alguém está vendo por aí o Dr. Brown com o DeLorean voador para nos salvar?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

